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A tutela específica do consumidor

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15/03/2004 às 00:00
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4. A tutela ressarcitória na forma específica do consumidor

4.1 O ressarcimento na forma específica no direito brasileiro

O direito brasileiro sempre aceitou a dupla forma de ressarcimento: ou o ressarcimento na forma específica ou a indenização em dinheiro. Ou melhor, como sublinha Pontes de Miranda, "em nenhum lugar do Código Civil ou do Código Comercial se diz que a indenização há de ser precipuamente em dinheiro". (38)

Adverte Pontes de Miranda que, na ação que objetiva reparar o ato ilícito, "o pedido pode dirigir-se à restauração em natura, e somente quando haja dificuldade extrema ou impossibilidade de se restaurar em natura é que, em lugar disso, se há de exigir a indenização em dinheiro". (39) Nesse sentido, Aguiar Dias, em livro escrito há mais de duas décadas, frisou que o direito material confere o direito ao ressarcimento na forma específica, deixando ao ofendido a opção pelo ressarcimento em equivalente (40): "Assim, por exemplo, se o responsável é obrigado a reparar, pode proporcionar ao prejudicado a prestação que resultará na reparação econômica natural. Exemplos: a) o do carro destruído ou roubado, quando depositado na oficina do próprio construtor. Supondo que a reparação pecuniária não satisfaça ao prejudicado, pelo fato de não ser possível obter com ela um carro igual, deve admitir-se que exija do responsável a construção de um carro exatamente igual ao primeiro. Assim como se pode obrigar o indivíduo que rompe uma vidraça a substituí-la por uma nova, assim se deve proceder no exemplo acima; b) o do inquilino de uma parte da casa que tem dois andares exatamente iguais. Responsável o proprietário pela impossibilidade da continuação do contrato, não lhe bastará em certos casos, como o da extrema dificuldade de conseguir habitação no lugar, que indenize o inquilino pecuniariamente. Parece certo que, se dispõe o senhorio de um andar livre, exatamente igual ao que o inquilino teve de abandonar, deve cedê-lo em cumprimento da locação". (41)

A tutela ressarcitória na forma específica sempre foi admitida pelo direito material (42). O que faltava eram técnicas processuais capazes de conferir-lhe real efetividade. O que não existia, em outras palavras, eram os arts. 461 e 461-A do CPC e 84 do CDC.

Portanto, é errado afirmar que o direito material não permite o ressarcimento na forma específica. Essa modalidade de ressarcimento, segundo o direito material, pode se dar mediante um fazer ou a entrega de coisa da mesma espécie da destruída. O problema nunca esteve no plano do direito material.

4.2 As razões da prioridade do ressarcimento na forma específica sobre o ressarcimento pelo equivalente

Quando o lesado pode requerer tutela ressarcitória na forma específica ou tutela ressarcitória pelo equivalente pecuniário, ele poderá optar sempre pela primeira, salvo as hipóteses de excessiva onerosidade. Isso quer dizer que nos casos em que a tutela ressarcitória na forma específica for concretamente possível, ela somente será excluída por opção do próprio lesado, ou quando o ressarcimento na forma específica, ainda que possível, não for justificável ou racional, em vista da sua excessiva onerosidade.

Se o lesado tem direito ao ressarcimento, cabe a ele escolher a forma de reparação, ou o ressarcimento na forma específica ou o ressarcimento pelo equivalente. Mas, quando o ressarcimento na forma específica for impossível diante da situação concreta, ou configurar uma forma excessivamente onerosa (43), o ressarcimento deverá ser pelo equivalente monetário.

Se há direito à reparação do dano e direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional (art. 5.º, XXXV, da CF), cabe perguntar qual é a tutela idônea para o ressarcimento. A tutela adequada ao dano, como é evidente, é aquela que proporciona a efetiva reparação. Como a tutela adequada é, antes de tudo, a tutela que efetivamente repara o dano, não há como impor ao lesado o equivalente em pecúnia, a não ser nos casos de onerosidade excessiva. Aludindo à impropriedade do ressarcimento pelo equivalente, adverte Jorge Mosset Iturraspe que em alguns casos resultará odioso admitir que com dinheiro "tudo é possível", e que aquele que não cumpre sua obrigação ou destrói bens pode se liberar da sua responsabilidade pagando uma soma em pecúnia (44). De acordo com Iturraspe, esta tese é "materialista en exceso y aferrada a una defensa de la libertad del deudor inadmisible" [45].

Tratando da preferência do ressarcimento na forma específica sobre o ressarcimento em dinheiro, adverte João Calvão da Silva, perante o direito português, que a primeira forma de ressarcimento "é preferível, pois afasta e remove integralmente o dano real ou concreto, reconstitui o estado de coisas anterior à lesão, restabelece a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação – dando à vítima aquilo de que foi privada. É o modo ideal de ressarcimento". (46)

Lembre-se que o art. 461 do CPC afirma que "a obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente" (§ 1.º), ao passo que o art. 84 do CDC preceitua que "a conversão da obrigação em perdas e danos somente será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente" (§ 1.º). Não se diga que tais normas dizem respeito apenas às obrigações contratuais, pois os arts. 461 do CPC e 84 do CDC devem ser interpretados como fontes de técnicas processuais capazes de permitir a efetiva tutela dos direitos, seja a tutela específica da obrigação contratual inadimplida, ou, ainda por exemplo, a tutela ressarcitória na forma específica. Ademais, como o princípio constitucional da efetividade, insculpido no art. 5.º, XXXV, da CF, incide de iure condendo e de iure condito sobre a estrutura técnica do processo, cabe ao intérprete ler as normas processuais à luz desse princípio, de modo a privilegiar a interpretação capaz de propiciar a efetividade da tutela dos direitos.

Nesse sentido, se é evidente que a tutela ressarcitória na forma específica deve prevalecer sobre a tutela ressarcitória pelo equivalente pecuniário, não há como deixar de entender que a alusão à "obrigação", presente nos arts. 461 e 461-A do CPC e 84 do CDC, também abarca o dever de reparar o dano, e assim aponta para a possibilidade do uso das técnicas processuais neles previstas quando a necessidade for de reparação na forma específica .

Aliás, a prioridade do ressarcimento na forma específica nem mesmo precisaria estar previsto na lei, uma vez que é imposição que decorre da própria natureza dos direitos e do direito fundamental à efetividade da tutela jurisdicional. De modo que, ainda que nada estivesse presente na lei quanto à forma de ressarcimento, ao lesado sempre deveria se dar a opção do ressarcimento na forma específica, a qual, em relação aos direitos transindividuais, nem mesmo constitui opção, mas sim obrigação, pois o legitimado à sua tutela não pode preferir dinheiro no lugar da reparação em natura.

4.3 O escopo do ressarcimento na forma específica

Se a tutela ressarcitória em pecúnia visa a dar ao lesado o valor equivalente ao da diminuição patrimonial sofrida ou o valor equivalente ao do custo para a reparação do dano, ou ainda pode constituir uma resposta contra o dano acarretado a um direito não-patrimonial, a tutela ressarcitória na forma específica é aquela que, em princípio, deve conferir ao lesado a situação que existiria caso o dano não houvesse ocorrido.

Tratando da tutela ressarcitória na forma específica, fala o § 249 (47) do CC alemão em obrigação de reconstituir a situação que existiria se o dano não houvesse ocorrido. (48) A tutela ressarcitória na forma específica, com efeito, deve proporcionar um resultado equivalente ao da situação que existiria caso o dano não tivesse acontecido. Não basta, em outras palavras, o restabelecimento da situação que era anterior ao do dano. Como o bem protegido deve ser integralmente tutelado, é necessário que se estabeleça uma situação equivalente àquela que existiria caso o dano não houvesse sido praticado. [49]

Acontece que, em algumas hipóteses, o ressarcimento na forma específica não é concretamente possível. E, em outras, constitui apenas parte da integralidade do ressarcimento. Assim, por exemplo, no caso de corte indevido de árvores. Se é possível determinar o plantio de árvores semelhantes às indevidamente cortadas, essa determinação certamente não será capaz de ressarcir a totalidade do dano. Por isso, o ressarcimento na forma específica deverá ser cumulado com o ressarcimento em dinheiro.

Por outro lado, é certo que, em alguns casos, não é possível a reparação do dano in natura, embora seja possível a reparação do dano através de um meio não pecuniário. Assim, por exemplo, no caso de lesão à honra, quando se pensa na publicação ou na transmissão da retificação. Parece, entretanto, que a reparação in natura e a reparação através de um meio não pecuniário podem ser englobadas na noção de tutela ressarcitória na forma específica, compreendida como a tutela que objetiva estabelecer uma situação equivalente, ou mais perto da equivalente, àquela que existiria caso o dano não houvesse ocorrido, ou ainda como a tutela que visa a reparar o dano através de um meio diferente do pecuniário.

4.4 O direito do consumidor ao ressarcimento na forma específica

O CDC, ao lado da responsabilidade pelos vícios de qualidade ou quantidade dos bens ou serviços, trata da responsabilidade pelos danos causados pelos ditos "acidentes de consumo". Nessa linha, o art. 12, caput, do CDC afirma que "o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e risco". No mesmo sentido, embora referindo-se aos "serviços", diz o art. 14, caput, do mesmo Código que "o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos".

Nessas hipóteses, para ficar caracterizado o dever de ressarcir, é preciso restar demonstrado o defeito do produto ou do serviço, o dano e a relação de causalidade entre o defeito e o dano. A responsabilidade dispensa a investigação de culpa, e assim é dita objetiva, embora possa ser excluída nas hipóteses dos §§ 3º dos art. 12 e 14 (50). Constatado o dever de ressarcir, o ressarcimento pode se dar na forma específica ou em dinheiro.

Lembre-se que o direito do consumidor é um direito fundamental. O art. 6º do CDC arrola, como direitos básicos do consumidor, "a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos" (art. 6º, VI), bem como "o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessitados".

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Comentando tais dispositivos, escreve José Geraldo Brito Filomeno que "no âmbito da reparação, o que o Código se prontifica a fazer é dotar o consumidor, sobretudo organizado, de instrumentos processuais dos mais modernos e eficazes" (51). De modo que não há dúvida, diante do teor do art. 84 do CDC, que a multa pode ser utilizada para compelir o réu a reparar na forma específica.

No entanto, na hipótese de incapacidade técnica do demandado, poderia surgir a dúvida relativa à possibilidade do uso da multa para pressioná-lo a custear a reparação. Porém, no caso de direito do consumidor, em relação ao qual é estabelecido expressamente o direito à reparação e ao adequado processo ressarcitório, bem como o dever do Estado de dotá-lo de instrumentos processuais efetivos, há razões de sobra para concluir que a multa processual pode ser utilizada para que o direito ao ressarcimento na forma específica constitua realidade.

Como escreve Clayton Maranhão, estando a sociedade de consumo exposta a riscos inevitáveis, cujos exemplos marcantes são o da colocação no mercado de produtos ou serviços com periculosidade inerente (art. 8º, CDC) e de produtos ou serviços cujo desenvolvimento da ciência é limitado sobre o seu alto grau de nocividade à saúde, só descoberto posteriormente à sua colocação no mercado (art. 10, §1º, CDC), não há como impedir que danos possam vir a ocorrer. Nessa linha, a necessidade de efetiva reparação do dano está diretamente ligada à noção geral de expectativa legítima do consumidor e ao princípio geral da segurança dos bens de consumo. (52)

Maranhão, ciente de que o ressarcimento do dano, nas novas relações de consumo, deve priorizar a forma específica, e que essa modalidade de tutela somente possui real sentido quando é efetiva, apresenta o seguinte exemplo: "O dano à saúde decorrente de erro médico tem sido muito freqüente. Uma dessas situações refere-se ao esquecimento de instrumentos cirúrgicos no corpo do paciente, havendo um caso real, já apreciado pela jurisprudência, em que foram necessárias cinco cirurgias, a última delas estética reparadora de deformidade. No caso concreto, a paciente foi submetida a uma simples cirurgia para retirada de cálculos na vesícula, recebendo alta cinco dias depois. Sentindo fortes dores, retirou de seu abdômen um objeto metálico da dimensão de uma agulha, reinternando-se por quatro vezes sucessivas no mesmo hospital, onde foi submetida a tantas intervenções para retirada de objetos esquecidos em seu abdômen na primeira cirurgia. Por conseqüência, contraiu deformidades estéticas que exigiram uma sexta intervenção cirúrgica reparadora. Não bastasse, apresentou problemas de locomoção em razão de mais um erro profissional: a enfermeira quebrara a agulha quando aplicava uma injeção. Diante de tanta negligência, demandou em face do hospital e da equipe médica. Como arcou com todas as despesas, pleiteou indenização pela soma em dinheiro correspondente. Contudo, poderia muito bem ter invocado o art. 84, §§ 3º, 4º e 5º, para pleitear ressarcimento na forma específica, com pedido de antecipação de tutela, consistente: i) na ordem de fazer dirigida ao hospital, sob pena de multa, sem despender qualquer soma em dinheiro, pois tudo deveria correr às custas do referido estabelecimento; ou então ii) na ordem de fazer dirigida ao hospital, no sentido de entregar soma em dinheiro diretamente a outro hospital e equipe médica de confiança, indicados pelo consumidor lesado, e nomeados pelo juiz, nos valores que se fizessem necessários para a realização das cinco cirurgias reparadoras do dano biológico, incluído o dano estético" (53).

O hospital poderia dizer que o uso da multa somente é possível quando o infrator for titular de capacidade técnica suficiente para realizar a reparação. Porém, se o infrator possui, antes de mais nada, o dever de reparar o dano na forma específica, e se essa reparação, diante do caso concreto, somente pode ser realizada se for por ele custeada, é lógico que essa obrigação de pagar (de custeio da reparação) deve ser vista como uma simples obrigação acessória ao dever de reparar. Se não for assim, o dever de reparar o dano terá sido transformado em obrigação de pagar. Ou em outras palavras: o direito ao ressarcimento na forma específica somente existiria quando o infrator tivesse condições técnicas suficientes. Ora, o ressarcimento na forma específica constitui direito básico do consumidor, e assim não devem importar as qualidades daquele que cometeu o dano. Com efeito, a especial qualidade do infrator não pode servir para retirar a efetividade do direito de ressarcimento do lesado.

Ao apresentar o exemplo do erro médico que exigiu várias cirurgias, Maranhão, além de ter deixado claro – como mencionado ao final do exemplo narrado acima – que a ordem poderia ser dirigida para obrigar o próprio hospital a realizar as cirurgias, evidenciou que a ordem sob pena de multa poderia ser endereçada para obrigar o demandado a custear o valor da reparação do dano. Disse que o lesado poderia, invocando o art. 84 do CDC, postular tutela ressarcitória na forma específica, inclusive na forma antecipada, consistente em "ordem de fazer dirigida ao hospital, no sentido de entregar soma em dinheiro diretamente a outro hospital". (54) Na realidade, em um caso como esse, se não for viável o ressarcimento na forma específica mediante o uso da multa, porém apenas o recurso ao mecanismo da antiga execução por sub-rogação, o processo civil estará aceitando a morte do paciente lesado (55) e transformando o direito à reparação específica em direito à herança.

Lembre-se que tanto o art. 461 do CPC, quanto o art. 84 do CDC, afirmam literalmente que a tutela específica possui preferência às perdas e danos. Ora, se em relação às obrigações contratuais de fazer, existe nítida preferência pela tutela específica em relação à tutela pelo equivalente monetário, podendo o juiz, diante de um pedido de tutela de uma obrigação de fazer fungível inadimplida, ordenar sob pena de multa - como fez questão de recentemente reafirmar o novo art. 287 do CPC (56) -, não há motivo para pensar que a multa não possa ser utilizada em relação ao dever de reparar o dano.

Conclusão contrária estaria admitindo que aquele que for reconhecido como obrigado a uma prestação fungível pode ser compelido a fazer sob pena de multa, mas não aquele que o juiz afirmar que tem o dever de reparar o dano. Seria o mesmo que concluir que somente o direito decorrente de uma obrigação de fazer, mas não o direito à reparação do dano, merece tutela jurisdicional efetiva. Tal conclusão, como é evidente, não tem sustentação alguma, não apenas diante do direito material, mas igualmente em face do direito processual. Basta interpretar o CPC e o CDC à luz da Constituição Federal, percebendo que eles contêm normas que instituem instrumentos processuais para a tutela dos direitos dependentes de um fazer, e não simplesmente para a tutela das obrigações.

4.5 Da tutela ressarcitória na forma específica dos direitos individuais homogêneos

De acordo com o art. 81, III, do CDC, é possível o uso da ação coletiva para a tutela de "direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum". Ou seja, se há violação em massa de direitos individuais existe o que o CDC chama de "direitos individuais homogêneos", autorizando-se a sua proteção na forma coletiva, à semelhança do que ocorre por meio da "class-action" no sistema norte-americano. Com explica Kazuo Watanabe, "origem comum não significa, necessariamente, uma unidade factual e temporal. As vítimas de uma publicidade enganosa veiculada por vários órgãos de imprensa em repetidos dias ou de um produto nocivo à saúde, adquiridos por vários consumidores num largo espaço de tempo e em várias regiões, têm, como causa de seu danos, fatos com homogeneidade tal que os tornam a ‘origem comum de todos eles". (57)

Porém, ainda que indiscutível a possibilidade de tutela ressarcitória na forma específica dos direitos individuais, alguma dúvida poderia haver acerca da viabilidade de uma ação coletiva voltada à tutela ressarcitória na forma específica dos direitos individuais homogêneos.

Isso porque o art. 95 do CDC, ao referir-se àquela que seria, em princípio, a sentença destinada à tutela de direitos individuais homogêneos, afirma que, "em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados".

A sentença de condenação genérica, de acordo com elaboração doutrinária já fixada há bastante tempo, é aquela que condiciona a execução forçada à prévia liquidação do valor devido. O próprio parágrafo único do art. 97 do CDC, embora vetado por razão estranha àquela que aqui interessa, estabelecia que a sentença do art. 95 deve ser liquidada, ocasião em que deveria ficar provado o "montante" do dano".

Contudo, na hipótese de tutela ressarcitória específica de direitos individuais homogêneos, não cabe pensar em sentença condenatória e, muito menos, em liquidação do valor do dano. Nesse caso, porque a tutela não objetiva dar aos lesados os valores equivalentes aos seus danos, mas sim a reparação na forma específica dos danos que foram ocasionados a cada um dos prejudicados, não há que se falar em liquidação dos valores dos danos.

Na hipótese de ressarcimento na forma específica, a sentença coletiva é declaratória e não mandamental, pois não instaura a execução - ordenando, por exemplo, o demandado a fazer, isto é, a exercer uma atividade capaz de permitir a reparação na forma específica dos danos acarretados aos titulares dos direitos individuais. Essa sentença se limita a declarar o dever de ressarcir. Porém, na fase que a sucede – que pode ser chamada de "liquidação de sentença" – deve ser provado o dano e a sua qualidade e extensão, não importando o seu valor.

A sentença que julga a "liquidação da sentença" é que assumirá natureza mandamental, devendo ordenar que o demandado repare na forma específica ou custeie a reparação a ser feita por terceiro, que nesse caso deverá ser indicado pelo juiz. É desnecessária, em vista da própria natureza da sentença mandamental, a propositura de ação de execução, que somente tem cabimento no caso de "condenação" (cf. artigos 95 e 98, CDC).

O fato de a "ação coletiva para a defesa de interesses individuais homogêneos" ter sido ligada, em princípio, à sentença de condenação genérica (art. 95, CDC) e à ação de execução (art. 98, CDC), obviamente não tem o condão de eliminar a possibilidade de uma ação para a tutela ressarcitória na forma específica de direitos individuais homogêneos. O que há de diferente, nesse caso, é que a "liquidação", por objetivar o ressarcimento na forma específica, além de apenas definir o dano e não o seu quantum, desemboca na técnica mandamental, dispensando a ação de execução.

Mas, como a forma de ressarcimento do dano deve ser deixada ao critério do lesado, ele deve ter a opção de solicitar, diante do caso concreto e de suas condições pessoais, ressarcimento na forma específica ou ressarcimento pelo equivalente. É por essa razão que a sentença da ação coletiva é declaratória, ao passo que, quando se objetiva ressarcimento na forma específica, a "liquidação" deve culminar em sentença mandamental, e no caso em que se deseja ressarcimento em pecúnia a "liquidação" deve condenar ao pagamento de soma em dinheiro, fixando a sanção executiva e abrindo oportunidade para a ação de execução.

Como se vê, no caso em que se postula a reparação de direitos individuais homogêneos, a sentença ficará limitada, no caso de procedência, a declarar o dever de indenizar, não podendo tratar da forma do ressarcimento. Isso, como já dito, deve ficar ao critério do lesado, que assim deve ter a oportunidade de escolher, na chamada fase de "liquidação", a forma de ressarcimento de sua preferência. Por esse motivo, o lesado ou seu sucessor, depois de proferida a sentença declaratória coletiva, pode optar entre a tutela ressarcitória pelo equivalente (execução por quantia certa) e a tutela ressarcitória na forma específica (técnica mandamental).

Entretanto, justamente porque o ressarcimento na forma específica pode não abarcar a totalidade do dano, o legitimado coletivo também pode postular a fixação da responsabilidade do réu pelo dano que não poderá ser ressarcido através da tutela na forma específica. Nesse caso, a vítima ou seu sucessor poderá requerer (na fase de "liquidação", evidentemente), ao lado da reparação na forma específica, a condenação ao pagamento do valor equivalente ao do dano incapaz de ser ressarcido na forma específica. Como é óbvio, esse dano, o nexo de causalidade e o seu valor deverão ser provados na chamada fase de "liquidação".

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. A tutela específica do consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 251, 15 mar. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4985. Acesso em: 26 abr. 2024.

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Trabalho escrito para a coletânea em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover.

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