Capa da publicação Novo CPC, dever de fundamentar e robô DoNotPay
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O dever de fundamentar no novo Código de Processo Civil ou a viabilidade do robô DoNotPay?

07/07/2016 às 15:59
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Este artigo tem como escopo exigir dos julgadores o dever de fundamentação das decisões. Também, como mero comparativo afirma que, para magistrados que não motivam suas decisões talvez fosse mais barato e eficaz contratar o robô DoNotPay.

Principio com a verve do inolvidável Mestre Lênio Streck:

“O que o Mito da Caverna tem a ver com o novo Código de Processo Civil (NCPC)?
Cena 1. Piteco correndo atrás de um pequeno dinossauro. Ambos passam em frente a uma caverna. De fora ouve-se gritos, exclamações, palmas: “— Bravo, Viva, Muito bem, clap, clap, clap”.  Ouve-se também o diálogo: “— Essa foi linda!” “— Pena que tenha passado tão depressa”. “-—Vem vindo outra”. “— Que feia essa”. Vaias.

Cena 2. Isso faz com que Piteco, com seu tacape na mão, resolva investigar o que ocorre dentro da caverna. Entra e vê o seguinte: Três marmanjos sentados olhando para a parede, vibrando ou vaiando as sombras que se projetavam a partir da entrada da caverna. “— Que forma mais feia”. “— Fica parada o tempo todo”. “— Uh, fora”.

(...)

Cena 7. Passa-se o tempo. Milhares de anos. E lá vem o personagem Neopiteco voltando para a sua casa. Ainda lá fora, ouve seus parentes dizendo: “— Bravo! Lindo!”. E Piteco pergunta, adentrando o recinto: “— O que estão fazendo”? “— Que pergunta mais boba”, diz o seu irmão “, sem tirar o olho da TV. “— Como se existisse outra coisa para fazer”, grita seu pai, sem desgrudar da TV. “— Estamos contemplando o fantástico show da vida”, complementa seu irmão”, com os olhos vidrados espelhando as imagens televisivas”. Fim da estorinha...”[1]

E prosseguindo preleciona:

“...A questão é saber se, de fato, isso tem de ser assim. Temos agora uma nova oportunidade de ver se a doutrina pode voltar a doutrinar. Vamos ver se os doutrinadores (e os lidadores do direito lato sensu) vão continuar a achar que as sombras são sombras. Vamos ver se vão expulsar as inovações do CPC (falo naquelas paradigmáticas, como a exigência de coerência e integridade, a garantia de não surpresa, a necessidade de, na sentença, o juiz examinar todas aas teses das partes e, finalmente, a retirada do livre convencimento). De que modo os juristas lidarão com isso?  Piteco será expulso? Ou os juristas abrirão os olhos e se darão conta de que decisões devem ser controladas. E que isso é democracia...” (Inocorrentes reticências e grifos).

Agora, narro que: era uma vez, em 05 de outubro de 1988, quando, em um Estado Democrático de Direito, mais precisamente na República Federativa do Brasil, apareceu a seguinte norma constitucional:

“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

(...)

X - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação” (inocorrentes parênteses e reticências)

Não foi falta de esforço legislativo, bastando que se tome como exemplo esta regra do revogado Código de Processo Civil:

“Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:

(...)

§ 1º Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento...” (não figuram no original parênteses e reticências)

Essa mesma disposição legal foi trasladada para o Novel Código de Processo Civil:

Art. 298.  Na decisão que conceder, negar, modificar ou revogar a tutela provisória, o juiz motivará seu convencimento de modo claro e preciso.

Porém, o hodierno Código de Ritos com redobrada preocupação lançou, em seu art. 489, o seguinte preceito:

“... § 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento...” (negritou-se)

Com todo o respeito, se os magistrados – com honrosas exceções – gostassem de fundamentar, por certo, nem a Constituição Federal e, muito menos, as leis infraconstitucionais posteriores, imporiam tal dever a eles. Contudo, o Código de Processo Civil recém nato, traçou a pecha de nulidade para o descaso à motivação das decisões judiciais.

Entrementes, o mau exemplo já vem a galope, advindo da Corte da Cidadania, por enquanto com gênese em apenas um membro, cuja ementa e excerto do voto, no tanto que interessa, restam aqui, encontram-se aqui respectivamente colacionados:

“...O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão...” (STJ, EDcl no MS 21.315/DF, Rel. Ministra Diva Malerbi. Primeira Seção, julgado em 08/06/2016, DJe 15/06/2016) (ausentes reticências)

Trecho do voto:

“Os embargos de declaração, conforme dispõe o art. 1.022 do CPC, destinam-se a suprir omissão, afastar obscuridade ou eliminar contradição existente no julgado. O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão...” (ausentes reticências)

As palavras mágicas encontradas para não fundamentar chamam-se: “motivos suficientes”. Eis a grande questão que envolve o Piteco e a caverna como um todo. Antes de avançar no tema, frente à jurisprudência supra, cotejando-se a ementa e o voto, a ilustre Desembargadora convocada no Superior Tribunal de Justiça (STJ), Diva Malerbi, não apontara nenhum motivo, menos ainda se era suficiente. Parece que se está diante da caverna alienada pela sombra, porque sequer cuida-se de um televisor!

Insta salientar que, o mesmo Diploma Adjetivo Civil, para os que postulam em juízo, exige:

“Art. 319.  A petição inicial indicará:

(...)

III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido...” (apôs-se parênteses e reticências)

“Art. 336.  Incumbe ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir”

“Art. 1.010.  A apelação, interposta por petição dirigida ao juízo de primeiro grau, conterá:

(...)

III - as razões do pedido de reforma ou de decretação de nulidade...” (não figura na fonte os parênteses e as reticências)

“Art. 1.016.  O agravo de instrumento será dirigido diretamente ao tribunal competente, por meio de petição com os seguintes requisitos:

(...)

III - as razões do pedido de reforma ou de invalidação da decisão e o próprio pedido...” (idem quanto aos parênteses e as reticências)

Desta feita, o causídico, seja particular ou público (aqui abrangido o Ministério Público) tem o dever de fundamentar os seus pleitos, não se contentando com meros “motivos suficientes” (sombras da caverna visitada por Piteco). Exemplifico: se houver uma permuta de imóvel com valor superlativo ao gizado no art. 108 do Código Civil, realizada por escrito particular, há de se ter o oferecimento do óbice, na contestação, de que tal transação é nula por defeito de forma.

Curiosamente, e este articulista já assistiu isso – e não é o cenário pintado por Piteco -, o órgão judicante sequer analisou o fato daquela alienação mútua ter se dado por intermédio de um pacto abrangido pelo art. 166, IV, da referida Lei Civil; muito menos, admitir-se-á que, em embargos de declaração, o magistrado se contente em não colmatar a omissão, talvez com a nefasta pena: “O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão”.

Indago, o que seria esse tal motivo suficiente? Suficiente para quem? Para o Neopiteco ou seus familiares?

Porque, a meu modesto modo de ver, joeirando o ato postulatório/recursal, ter-se-á os fatos e fundamentos jurídicos que compõem o litígio. Essa escolha não pode ser aleatória pelo julgador, mas sim explicitada[2]. Dito de outro modo, ele deve elencar, no ato decisório, os fatos títulos da demanda[3] e, quanto a estes, examiná-los um a um. Do contrário, estar-se-á dando vida às sombras da parede da caverna.

Meu receio é que a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) ensine os juízes a fundamentarem sua decisão e, de uma penada só, o STJ derrua todo esse cabedal epistemológico, jogando o Direito fundamental à motivação da sarjeta.

Não se pode deslembrar, outrossim, que a figura do juiz existe para dar explicação ao jurisdicionado, ou seja, aquele deve, através do ato que profere fazer com que esse entenda o que ocorrera. Será tão bem fundamentado na decisão, quando, por exemplo, a parte for uma pessoa de apequenadas letras, ainda sim, bem compreendê-la.

É certo, que muitos advogados são prolixos, possuindo o dom da complicação, com redação extensa e sem objetividade, mas, não menos certo, é que existem juízes que não fundamentam as suas decisões, escondendo-se no famigerado “motivo suficiente” da convicção!

Lamentável, ainda mais, é que os magistrados investiram-se, como agentes estatais para em substituição às partes dizerem o direito. Entrementes, ao não fundamentarem suas resoluções não dizem o direito, criam no espírito das partes uma confusão revoltante e, graças aos vencimentos que auferem, deixam o Estado mais pobre, o jurisdicionado desconsolado e o advogado, máxime quando este agitou embargos de declaração, com inenarrável travo da impotência.

Será que é tão difícil fundamentar? Creio que não, basta, insisto, que o órgão julgador faça uma coleta dos argumentos jurídicos relevantes, extraídos das peças levadas a cabo pelo causídico ou pelo parquet, para, após isso, traçar comentários sérios sobre eles, jurisdicizando-os. É fácil assim! 

Não posso crer, derradeiramente, que os juízes, levianamente não leiam os argumentos das partes. No entanto, se eles continuarem se contentando com os tais “motivos suficientes”, vou ser constrangido, moral, exegética e juridicamente crer que eles não leram. Talvez aí, sempre muito respeitosamente, fosse melhor o Estado contratar o novel robô DoNotPay, porque este tem apresentado excelente performance, a saber:

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“...o sistema já analisou 250 mil casos, tendo obtido uma taxa de sucesso de 64%...”[4]

A forma para se dispensar a aquisição do anelado robô, se daria com a fundamentação das decisões, pondo pá de cal sobre um conceito antitético à democracia, qual seja, o autoritarismo. Somente assim, com toda certeza, estar-se-á prestigiando, mais do que o Direito, mas sim a justiça. Com isso, por óbvio, dar-se-á sentido a este regramento do Código da Magistratura Nacional:

“Art. 2º Ao magistrado impõe-se primar pelo respeito à Constituição da República e às leis do País, buscando o fortalecimento das instituições e a plena realização dos valores democráticos”.

 Pois bem. Entre indignado e estupefato, quando me defronto com ato judicial encetado pelo Superior Tribunal de Justiça, debulhando que: “O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão”, pergunto:  que tal trocar o magistrado avesso à fundamentação pelo robô DoNotPay?

Um juiz compenetrado de sua função, para poder produzir um ato decisório fundamentado - e isso pode se dar de modo conciso, desde que abranja todos os fatos títulos da demanda -, deve compulsar os autos do processo, folha a folha. Porque do contrário, novamente, meu espírito se torna muito afeito ao citado robô, já que este, exemplificativamente deve “...perguntar coisas como se havia sinais claros de estacionamento e depois guiar o reclamante pelo sistema oficial...”[5]. E, na decisão não fundamentada? O magistrado indagou o quê? Nada! Seria o robô em tela menos eficaz e menos caro do que ele? Seu voto vai para quem, nesse cenário de impeachment judicial?


Notas

[1] NCPC: Cobrar fundamentação dos juízes é “utopia totalitária”?. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mar-12/senso-incomum-ncpc-cobrar-fundamentacao-juizes-utopia-totalitaria. Acessado em 27 de junho de 2016. Ausentes parêntese e reticências na fonte.

[2] Vide: “10) A fundamentação sucinta não se confunde com a ausência de fundamentação e não acarreta a nulidade da decisão se forem enfrentadas todas as questões cuja resolução, em tese, influencie a decisão da causa.” Consistente em Enunciados da Enfam, disponível  no seguinte endereço eletrônico: http://jucineiaprussak.jusbrasil.com.br/noticias/356147981/extra-novo-cpc-a-enfam-divulgou-62-enunciados-que-servirao-para-orientar-a-magistratura-nacional?utm_campaign=newsletter-daily_20160701_3639&utm_medium=email&utm_source=newsletter , acessado em 07/07/2016.

[3] São aqueles donde derivam diretamente as consequências jurídicas. Exemplo de fatos periféricos/irrelevantes se antevê, quando alguém está transitando com um veículo que colide com outro, possuir ou não Carteira Nacional de Habilitação.

[4]  “Robô advogado” já venceu 160.000 apelações contra multas de trânsito. Disponível em: http://examedaoab.jusbrasil.com.br/noticias/354856640/robo-advogado-ja-venceu-160000-apelacoes-contra-multas-detransito?utm_campaign=newsletterdaily_20160628_3617&utm_medium=email&utm_source=newsletter, acessado em 30 de junho de 2016.

[5] Idem. 

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Sobre o autor
Emerson Odilon Sandim

Procurador Federal aposentado e Doutor em psicanalise

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANDIM, Emerson Odilon. O dever de fundamentar no novo Código de Processo Civil ou a viabilidade do robô DoNotPay?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4754, 7 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50464. Acesso em: 20 abr. 2024.

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