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Aplicação do caráter punitivo do dano moral nas relações de consumo

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2 Caráter punitivo do dano moral no direito do consumidor

Apesar de dispor de uma lei especial que visa protegê-lo dos danos originários das relações de consumo, são comuns os casos em que o consumidor tem seus direitos da personalidade infringidos pelos interesses econômicos dos empresários. Diante do desrespeito às normas de proteção ao consumidor, inúmeras são as demandas judiciais em busca da reparação dos danos causados. Porém, o desequilíbrio inerente à relação de consumo não é suprimido com a fixação dos valores indenizatórios baseados na mera compensação do dano moral.

Nesse contexto, surge a necessidade de se utilizar outros meios capazes de exercer de forma eficaz a proteção do consumidor, a exemplo dos punitive damages. Todavia, o seu emprego deve ser adequado aos moldes do sistema jurídico brasileiro e apenas voltado às condutas de natureza grave que precisam ser tratadas com maior rigor pelo Poder Judiciário.

Nesse diapasão, cabe destacar alguns dos pressupostos para a aplicação excepcional da função punitiva nas indenizações por dano moral oriundas das relações de consumo. O principal requisito é a efetiva ocorrência do dano moral, uma vez que a responsabilidade civil pressupõe um dano causado a terceiros que deve ser reparado.

O dano moral ocorre quando configurada a afronta aos direitos da personalidade e ao princípio da dignidade humana, provocando um abalo moral na vítima. Dessa forma, a indenização punitiva serve como proteção jurídica à agressão de tais direitos previstos constitucionalmente.

Por outro lado, é importante delimitar as situações passíveis de reparação por dano moral, evitando a banalização do instituto e, consequentemente, o argumento que os elevados valores das indenizações podem suscitar a “indústria do dano moral”. Assim, no caso concreto, o julgador deve analisar se o fato ocorrido foi capaz de geral o dano moral suscetível de indenização.

Outro pressuposto é a existência de dolo ou culpa grave na conduta do causador do dano. É fato que, em regra, a análise do aspecto subjetivo da conduta do fornecedor não é condição para a configuração da responsabilidade civil no direito do consumidor. Não obstante, esse critério é essencial para que se possa considerar a utilização da função punitiva para fins de indenização, tendo em vista que apenas o comportamento grave é merecedor de punição.

De acordo com Sérgio Cavalieiri Filho[19], entende-se por dolo uma conduta intencional dirigida à concretização de um resultado ilícito. Pode-se dizer, então, que o autor do dano teve a intenção de gerar o resultado lesivo. São os casos em que o fornecedor do produto ou prestador do serviço quer ou assume o risco de violar os direitos do consumidor, visando sempre a obtenção do lucro em sua atividade.

Já a culpa grave caracteriza-se pelo fato do agente agir com “grosseira falta de cautela, com descuido injustificável ao homem normal, impróprio ao comum dos homens.”[20] É o caso das empresas que agem de forma imprudente ou negligente de forma reiterada, sem buscar a melhoria da sua atividade para melhor atender as necessidades do consumidor e obstar a ocorrência de danos.

A culpa também pode ser classificada em culpa leve e culpa levíssima. A primeira ocorre “se a falta puder ser evitada com atenção ordinária, com o cuidado próprio do homem comum, de um bonus pater familias.”[21] A segunda é definida como a “falta de atenção extraordinária, pela ausência de habilidade especial ou conhecimento singular.”[22]

Sendo caracterizada a culpa leve ou a levíssima, não há que se falar em conduta que justifique a indenização punitiva, uma vez que não houve intenção em provocar o dano, nem displicência injustificada. É nesse sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como disposto na decisão do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino[23]:

Na análise da intensidade do dolo ou do grau de culpa, estampa-se a função punitiva da indenização do dano moral, pois a situação passa a ser analisada na perspectiva do ofensor, valorando-se o elemento subjetivo que norteou sua conduta para elevação (dolo intenso) ou atenuação (culpa leve) do seu valor, evidenciando-se claramente a sua natureza penal, em face da maior ou menor reprovação de sua conduta ilícita.

Portanto, o aspecto determinante na avaliação da conduta do lesante é a sua reprovabilidade. Por esse motivo, atuação dolosa ou com culpa grave do agente enseja um valor indenizatório maior que a negligência ou imprudência de grau menor.

Outro requisito a ser averiguado na conveniência da função punitiva é a obtenção de lucro por meio do ato ilícito. Se a partir do dano o ofensor lucrou de alguma forma, a indenização punitiva deve ser aplicada, independentemente de dolo ou culpa grave. O propósito, pois, é impedir que o dano, além de prejudicar o consumidor, seja vantajoso para o seu responsável.

É esse o entendimento de Gustavo Andrade[24]:

Imagine-se que, em determinadas situações, o dano moral pode decorrer de culpa simples. A despeito da ausência de intenção lesiva ou da especial reprovabilidade da conduta lesiva, o agente, em consequência do ilícito praticado, vem a obter lucro. Não é razoável que alguém possa manter essa vantagem ilicitamente obtida à custa da lesão a bem integrante da esfera não patrimonial de outrem. Aqui, embora ausente o requisito da culpa grave, a indenização punitiva deve ser aplicada para restabelecer o imperativo ético que permeia a ordem jurídica. A existência de lucro ilícito constitui, assim, pressuposto da indenização punitiva independente da culpa grave.

Desse modo, a prática do ato ilícito, com ou sem culpa, não pode ser proveitoso para quem o praticou, pois seria uma forma de estímulo a práticas semelhantes. Esse fator dissuasivo é uma das justificativas para a majoração da verba indenizatória.

Analisados os pressupostos para a aplicação do caráter punitivo da indenização por danos morais nas relações de consumo, cabe analisar de que forma a função punitiva é abordada nas decisões oriundas da jurisprudência pátria.

2.1 Posicionamento da jurisprudência brasileira 

De forma geral, a jurisprudência brasileira tem adotado como fundamento a função punitiva da indenização por danos morais provocados nas relações de consumo. O entendimento majoritário é que o quantum indenizatório fixado deve ser o suficiente para compensar a ofensa moral sofrida, inibir a prática de novas condutas abusivas e punir o agente causador do dano pela sua conduta.

À guisa de exemplo, alguns julgados foram selecionados com o intuito de visualizar a forma como o dano moral é aplicado com a função punitiva.

No caso da Apelação Cível nº 0314893-0[25], o Tribunal de Justiça de Pernambuco manteve a condenação ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). No caso em tela, a parte autora propôs ação em face de uma administradora de cartões e de uma renomada editora por ter o seu nome incluído em órgãos de proteção ao crédito em função de dívida relativa à assinatura de revista não contratada.

Com a primeira Ré, foi homologado acordo no valor de R$ 4.000,00 (quatro mil reais) de indenização por dano moral. Já em relação a segunda ré, o acordo firmado, no qual a editora se comprometia a cessar o envio de revistas não solicitadas e não efetuar outras cobranças, não foi cumprido.

No julgamento, o Tribunal entendeu que o valor arbitrado em 1º instância deveria ser mantido, pois atendia ao caráter punitivo da indenização por dano moral, bem como ao intuito de desestimular a prática de novos ilícitos. A Relatora Juíza Virgínia Gondim Dantas Rodrigues retrata-se ao instituto do punitive damages em seu voto, analisando a sua incidência na jurisprudência e utilizando-o como base para sua fundamentação.

Do julgado, depreende-se que o Tribunal não poderia majorar o valor indenizatório, pois não houve recurso por parte da autora. Porém, é oportuno analisar que a Reclamada agiu de má-fé com a autora de forma reiterada, visto que além de cobrar por produto não solicitado, não cumpriu o acordo pactuado após o início da demanda, demonstrando total desinteresse em relação aos interesses da consumidora. Isto posto, para se obter a efetiva função punitiva, o julgador de primeiro grau poderia ter atribuído uma reprimenda mais severa.

Em outra decisão[26], o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios conferiu o caráter desestimulador da indenização por dano moral com o fim de advertir a empresa lesante e reprimir o incentivo à impunidade e o desrespeito ao consumidor.

No caso em tela, a autora relatou que foi atingida por uma barra de ferro dentro do estabelecimento comercial da demandada no momento em que foi verificar o preço de um produto. Em decorrência do acidente, declarou ter sofrido profundo corte na coxa, o que gerou abalos físicos e psíquicos. Trata-se, portanto, de responsabilidade por acidente de consumo em virtude de defeito do serviço.

Nessa situação, restou demonstrado um descuido injustificado da Ré pela falta de sinalização quanto à desmontagem do arcabouço metálico que causou o dano, caracterizando a reprovabilidade da conduta e legitimando a condenação por danos morais arbitrada em Primeira Instância, no valor de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) e confirmado pelo Tribunal, reconhecendo a função punitiva, que nas palavras do Relator Desembargador Alfeu Machado é a “punição pecuniária àquele que, na relação de consumo, lhe causou dano, por ter desrespeitado às normas protetivas e mandamentais insertas no Código de Defesa do Consumidor.”

Outro caso alusivo ao defeito do produto[27] foi um acidente provocado por fogos de artifício que ocasionou a perda de dois dedos da mão esquerda de um consumidor. O valor estabelecido para reparação do dano moral foi de R$ 25.000,00(vinte e cinco mil reais), que segundo o Relator Desembargador Victor Ferreira “foram razoavelmente fixados para o caso concreto, cumprindo as funções de compensar os profundos danos sofridos pelo Apelado, inibir novas práticas lesivas e punir a Apelante pela prática do ilícito.”

Em que pese o entendimento dos desembargadores, considerando-se a capacidade econômica das rés, é visível que as indenizações fixadas são insuficientes para puni-las ou coibir outras práticas danosas. Os prejuízos gerados foram graves e a atitude das empresas irresponsável, motivo pelo qual os valores pecuniários deveriam ser mais elevados.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, também utiliza a função punitiva como fundamento de suas decisões. Contudo, se posiciona apenas de forma excepcional, visando impedir que o valor fixado seja irrisório ou exorbitante e, ainda, evitar a discrepância entre as decisões dos diversos Tribunais brasileiros. Não cabe a esse Tribunal a análise do mérito, dada a impossibilidade do reexame das provas em recurso especial, mas tão somente a avaliação acerca do valor arbitrado.

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Nesse sentido:

AGRAVO REGIMENTAL. PLANO DE SAÚDE. ILEGALIDADE DA NEGATIVA DE COBERTURA A TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. DANO MORAL CONFIGURADO. REDUÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO. DESCABIMENTO. 1. É pacífica a jurisprudência da Segunda Seção no sentido de reconhecer a existência do dano moral nas hipóteses de recusa pela operadora de plano de saúde, em autorizar tratamento a que estivesse legal ou contratualmente obrigada, por configurar comportamento abusivo, sem que, para tanto, seja necessário o reexame de provas. 2. A fixação dos danos morais no patamar de R$ 6.000,00 (seis mil reais) cumpre, no presente caso, a função pedagógico- punitiva de desestimular o ofensor a repetir a falta, sem constituir, de outro lado, enriquecimento indevido. 3. Agravo Regimental improvido.[28]

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INSCRIÇÃO INDEVIDANO CADASTRO DE INADIMPLENTES. DANO MORAL. REQUISITOS CONFIGURADORES.PRETENSÃO DE AFASTAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE REEXAME DEPROVAS. SÚMULA 7/STJ. QUANTUM INDENIZATÓRIO. VALOR RAZOÁVEL. AGRAVOIMPROVIDO. 1. O entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça é deque o valor estabelecido pelas instâncias ordinárias a título de indenização por danos morais pode ser revisto tão somente nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou exorbitante, distanciando-se dos padrões de razoabilidade, o que não se evidencia no presente caso. Desse modo, não se mostra desproporcional a fixação em R$ 15.000,00 (quinze mil reais) a título de reparação moral, decorrente das circunstâncias específicas do caso concreto, motivo pelo qual não se justifica a excepcional intervenção desta Corte no presente feito, como bem consignado na decisão agravada. 2. Agravo interno a que se nega provimento.[29]

A partir dos julgados observados, percebe-se que o propósito dos julgadores não é se aproximar do instituto dos punitive damages, uma vez que o acréscimo na condenação para fins de punição não é arbitrado de forma autônoma como ocorre na prática norte-americana. De outro modo, um único valor é determinado sem especificar quanto é atribuído para que cada uma das funções da responsabilidade civil seja alcançada.

Como consequência, os valores conferidos aos danos morais ainda são reduzidos quando comparados com aquele instituto. Isso faz com que a intenção de punir não seja alcançada pela indenização. Nesse sentido, cabe adequar a finalidade punitiva ao sistema jurídico brasileiro, de modo que satisfaça os objetivos pretendidos.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Rhayra Ribeiro Carvalho. Aplicação do caráter punitivo do dano moral nas relações de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4767, 20 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50654. Acesso em: 23 abr. 2024.

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