1) Introdução:
Os termos moradia e habitação não raro são utilizados indistintamente, tanto nos debates sociais quanto nos textos acadêmicos e documentos legais. Não menos freqüente é a identificação da habitação com o direito que a ela se refere, bem como com o direito à moradia.
Neste sentido, o artigo XXV da Declaração Universal do Direitos Humanos (1948) dispõe que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de prover o bem-estar a si e a sua família, incluindo a habitação como um dos critérios para o alcance desse padrão.
Já o Pacto Internacional dos Direito Econômicos, Sociais e Culturais (1966), fazendo referência ao mesmo direito afirmado na Declaração Universal, prevê, em seu artigo 11-1, a moradia.
Por seu turno, o artigo 6º da Constituição Federal garante o direito à moradia, ao passo que o inciso IV, artigo 7º, também da Constituição, determina que o salário deve ser tal que atenda à necessidade de moradia do trabalhador e de sua família.
Em âmbito doutrinário, Letícia Marques Osório (2004, p. 19) fala de um déficit acumulado de moradia, ao passo que as publicações oficiais do Ministério das Cidades sempre repetem o termo déficit habitacional. Ainda, Loreci Nolasco (s.d., p.2), quando afirma que:
“O direito à moradia consiste na posse exclusiva e, com duração razoável, de um espaço onde se tenha proteção contra a intempérie e, com resguardo da intimidade, as condições para a prática dos atos elementares da vida: alimentação, repouso, higiene, reprodução, comunhão”.
Na tentativa de compreender o direito fundamental incluído na Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional 26/2000, bem como os seus desdobramentos, imprescindível se faz a distinção conceitual.
2) Direito à moradia X Direito à habitação
Analisando superficialmente os termos habitação, moradia, morada e mesmo casa, constata-se que não se apresentam nuanças significativas a ponto de distingui-los. No entanto, dependendo do contexto em que se utiliza algum dos termos referidos, obtém-se significado específico.
Adotando o termo morada como exemplo, quando se afirma: a) “Bem-vindo à minha morada”, indica-se um espaço ocupado pelo sujeito, uma estrutura material que o abriga e que serve como sua referência para a vida social; por sua vez, quando se afirma: b) “Na minha morada não há ônibus”, indica-se o local ocupado pelo sujeito em um contexto mais amplo que no primeiro caso, isto é, refere-se não só àquela estrutura material que o abriga, mas também ao seu entorno; enfim, quando se afirma: c) “Todo homem precisa de uma morada”, indica-se uma necessidade decorrente da própria situação humana que independerá da referência a um local específico.
Sérgio Iglesias de Souza (2004, p. 45), percebendo tal problemática, distinguiu da seguinte forma as situações descritas anteriormente: “Moradia’ é o elemento essencial do ser humano e um bem extrapatrimonial (...) ‘habitação’ é o exercício efetivo da moradia sobre determinado bem imóvel”. O autor justifica que tal distinção se dá em razão do parâmetro que é utilizado para reconhecer as duas situações, assim:
(...) No caso da habitação, o enfoque é o local, o bem imóvel, ou seja, o objeto verbi gratia, porque se exerce a habitação numa hotelaria, numa casa de praia, em flats etc. E, no caso do conceito de moradia, concebemo-la sob o enfoque subjetivo, pois pertence à pessoa o exercício da moradia, sendo-lhe inerente (SOUZA, 2004, p. 46).
No entanto, o citado autor não aduz qualquer razão para que se considere tal distinção. Ademais, a utilização dos conceitos propostos não refere ao entorno da estrutura material que abriga o sujeito.
Por outro lado, as aplicações da proposta de diferenciação entre habitação e moradia ganham sentido quando se fala de um direito relacionado às situações narradas anteriormente.
Em outras palavras: a) caberia falar de um direito que reconhece a proteção daquela estrutura material que abriga e serve de referência ao sujeito? b) caberia falar de um direito que diz respeito às condições da localidade em que se insere tal estrutura? c) caberia falar de um direito, decorrente da própria situação do homem, que se refere tanto à sua fragilidade frente às intempéries e conseqüente exigência de um abrigo, quanto à necessidade de eleger um ponto referencial a partir do qual possa se relacionar, independentemente da consideração de um local específico?
Tais questionamentos que, evidentemente, apresentam situações que devem ser enfrentadas pelos atores sociais, resolvem-se conceitualmente na adoção da proposta de Sérgio Iglesias de Souza (2004, p. 28-46), a qual se insere o termo habitat, sugerido pelo documento Habitat e Desarrollo Humano, de autoria do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (2004, p. 40-42), no intuito de completar a lacuna conceitual que a simples adoção dos termos moradia e habitação deixaria[1].
Assim, por habitação se entende a estrutura material que abriga e serve de referência para uma pessoa ou para uma família; por habitat se entendem as condições da localidade em que se encontra a habitação; e, por moradia se entende uma exigência que decorre da própria situação humana, referente à necessidade de o homem proteger-se das intempéries e possuir um espaço que sirva como referencial para sua vida social.
Na tentativa de esclarecer um pouco mais as relações entre o direito à moradia e a habitação, a analogia com o direito à alimentação parece ser útil: a materialização do direito à alimentação se dá com o alimento, com a comida. No entanto, o direito à alimentação não é o mesmo que a comida. Esta última é o objeto que permite a satisfação do direito. O mesmo se dá com o direito à moradia, que se concretiza na posse de uma habitação, seu objeto satisfativo.
Em outras palavras, não seria apropriado dizer que o direito à moradia de uma pessoa é sua casa, sua habitação. Pelo contrário, a estrutura material que lhe serve de abrigo é o objeto que satisfaz a necessidade permanente dessa pessoa de efetivar o seu direito à moradia.
Por fim, em se tratando de direito de habitação uma dupla consideração deve ser feita: a) em sentido amplo se entende a materialização do direito à moradia, isto é, a satisfação da necessidade humana de possuir um local que lhe confira proteção e um ponto de referência; b) em sentido estrito, se entende o instituto do direito real de habitação (previsto nos artigos 1.414 a 1.416 do Código Civil brasileiro de 2002), podendo ser definido como sendo um direito real de caráter personalíssimo, consistente no asseguramento da utilização imediata do bem imóvel com a destinação específica de nele habitar[2].
3) Direito à habitação adequada: os critérios do Cômite Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU
Na proposta da delimitação do direito à moradia e dos seus termos conexos, cabe uma última indagação: existiriam parâmetros para que se considerasse o efetivo gozo desse direito? Isto é, existiriam parâmetros para que se pudesse afirmar que uma habitação e as condições do habitat em que se insere são adequados?
Os componentes daquilo que seria uma habitação adequada são descritos pelo Comentário Geral n.4 do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, de 1991.
Segundo o entendimento manifestado no documento, não se pode confundir a “habitação” com um simples teto, isto porque: 1) há vinculação do direito à moradia com os demais direitos humanos previstos em outros documentos internacionais, como: o direito à segurança, à paz, à dignidade, de modo que a habitação deve preencher tais requisitos, que não são satisfeitos com a mera presença de um teto; e 2) dado o contexto internacional em que se afirma a necessidade de que todos possuam uma habitação – que envolve o compromisso de os Estados promoverem uma vida digna –, aquela deve ser compreendida como sendo uma habitação adequada.
Ainda de acordo com o documento, a adequação da habitação (e aqui se considera também o que foi definido como habitat, uma vez que o documento não segue tal distinção) será mensurada a partir da especificidade de cada local, aqui entendidas as condições climáticas e geográficas, o contexto social entre outros fatores.
No entanto, o documento estabelece standards, padrões que devem ser observados independentemente do contexto. Assim, a habitação adequada abrangeria:
a) segurança legal da posse – a garantia na permanência se coloca como condição sine qua non para que a pessoa viva dignamente. De fato, o constante risco de despejo forçado ou mesmo de esbulho possessório – sem a possibilidade de recorrer à prestação jurisdicional para que se determine a reintegração de posse – impede a efetivação do direito sob comento;
b) disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infra-estrutura – no contexto do direito à cidade, urge garantir o acesso universal a todos os serviços essenciais, tais como saneamento básico, segurança pública, transporte etc.;
c) custo acessível – dado que, além de morar, o homem deve comer, vestir-se, educar-se entre outras necessidades, deve-se ter em conta que os custos com a habitação não sejam de tal monta que impeçam o homem de satisfazer todas as suas exigências. Segundo o estabelecido no documento, tal critério deve ser tomado como uma das prioridades dos governos, colocando-se como obrigação, inclusive, a disponibilização de verbas para garanti-lo (o mesmo se diga quanto aos materiais de construção);
d) habitabilidade – a habitação deve ser tal que garanta a integridade física de seus moradores, aqui compreendidos a proteção contra as variações climáticas, a proteção contra o risco de deslizamento, o baixo índice do risco de contrair doenças etc.;
e) acessibilidade – especial atenção deve ser conferida àqueles que não têm condições de adquirir a própria casa, tais como idosos, deficientes físicos, doentes terminais etc., uma vez que se coloca como obrigação do Estado a criação de condições para que todos possam gozar de uma habitação;
f) o documento ainda trata da adequação cultural da habitação, bem como da proteção contra interferências arbitrárias ou ilegais para que seja resguardada a privacidade da família.
Conclusão:
Com base nos elementos desenvolvidos, pode-se apontar as distinções conceituais entre direito à moradia, enquanto direito fundamental inserido no Texto Fundamental pela Emenda Constitucional 26/2000, identificado com a necessidade humana de possuir um espaço que ofereça proteção e referência para a vida social; direito à habitação, entendido como materialização do direito à moradia, vale dizer, o direito de possuir um local para exercer o direito à moradia, e habitação digna, entendida como aquela que cumpre os requisitos mínimos exigidos pelo Comitê Sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas.
Bibliografia citada no texto:
LORENZETTI, Maria Sílvia Barros. A questão habitacional no Brasil. Câmara dos Deputados, Brasília, jul. 2001. Disponível em: < http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/1469>. Acesso em: 10 abr. 2016.
NOLASCO, Loreci Gottschalk. Direito Fundamental Social à Moradia: Aplicação, Limites e a Responsabilidade do Estado Brasileiro. Brasília, s.d. Disponível em: <http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/100807.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2016.
OSÓRIO, Letícia Marques. O direito à Moradia adequada na América Latina. In: ALFONSIN, Betânia; FERNANDES, Edésio (org.). Direito à Moradia e Segurança da Posse no Estatuto da Cidade: Diretrizes, Instrumentos e Processos de Gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 17-39.
ONU. Comentário geral nº4, do Comitê sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais: o direito à habitação adequada. 1991. <http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/moradia/trabalhohabitacaopronto.html#7>. Acesso em: 10 abr. 2016.
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 20.ed. São Paulo: Forense, 2006. v.4.
SOUZA, Sérgio Iglesias de. Direito à Moradia e de Habitação. São Paulo: RT, 2004.
UN-HABITAT. Habitat e Desarrollo Humano. Disponível em: http://www.onuhabitat.org/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=1176&Itemid=183>. Acesso em: 10 abr. 2016.
Notas
[1] O documento, no entanto, opta por não distinguir os termos, sob o argumento de que tal opção poderia causar confusões, dado que os documentos internacionais não se utilizam dessa distinção. No texto original: “(...) En esta perspectiva, sería más conveniente teóricamente sustituir el concepto de vivienda por el concepto de hábitat; mantenemos, empero, el concepto de vivienda solo con el fin de no introducir confusiones con las líneas estratégicas y misionales de la actuación de las Naciones Unidas en el mundo donde se habla ‘del derecho a la vivienda” (UN-Habitat, 2004, p. 41).
[2] Neste sentido vide Caio Mário da Silva Pereira (2006, p. 17). Poder-se-ia falar ainda em um direito ao habitat, ao entorno da habitação, ou num sentido mais amplo, em um direito à cidade.