2. DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM: BREVES APONTAMENTOS.
O significado de direitos humanos ou fundamentais tem certamente suas fontes em processos históricos muito distantes no tempo, mas foi ao fim do medievo e no começo da Idade Moderna que eles assumiram um contorno mais significativo. Na substituição do pluralismo jurídico e político pelo pluralismo social e econômico, quando o poder político medieval é substituído por um poder central e burocratizado, empoderado com o monopólio do uso da força, o Estado soberano, é que surge como espaço para demandas de proteção de uma esfera de autonomia privada, apta ao desenvolvimento das potencialidades individuais, sem interferências externas, inclusive do próprio Estado (SAMPAIO, 2010).
O sistema dos direitos humanos é formado por três matrizes (Sampaio, 2010), a saber: a liberdade religiosa, as garantias processuais e o direito de propriedade, sendo os três grandes modelos de desenvolvimento desses direitos a Inglaterra, os Estados Unidos e a França. A matriz da liberdade religiosa vem desde a Idade Média, quando da Carta do Convênio entre o Rei Afonso I e os Mouros de Tudella em 1119 - assegurava a liberdade de trânsito dos Mouros e o respeito aos seus costumes religiosos - passando pela Magna Carta em 1215, que garantiu a liberdade da Igreja na Inglaterra, com a separação da Igreja Anglicana da Igreja Católica Apostólica Romana e por toda a Europa o cisma da cristandade com as ideias de Lutero e Calvino. Essa tolerância da liberdade religiosa haveria de ser repeitada e protegida pelo Estado. A matriz do garantismo processual se dá com a criação de ferramentas processuais que restringiam a arbitrariedade dos governantes no sentido da racionalização gradual das penas. Suas raízes estão desde a pré-história dos direitos: Deuteronômio, juízes entre as partes e imparciais (cap. XVI, 18, 19 e 20) pessoalidade e relativa proporcionalidade das penas (cap. XXIV, 16 e cap. XXV 1-3); garantia de um acusador legal (VI Concílio de Toledo de 638); punição à denunciação caluniosa e à violação da casa (Decretos da Cúria de Leon de 1188); proporcionalidade dos castigos, devido processo – um juízo legal de iguais ou conforme a lei do país (Magna Carta de 1215); a não privação dos bens senão conforme o direito e por um processo legal (Código de Magnus Erikson da Suécia); o habeas corpus, garantia assegurada aos barões pela Magna Carta de 1215 (art. 39).
Já na matriz do direito de propriedade se verifica que, de certo modo, todos os sistemas jurídicos desenvolveram formas de proteção da propriedade. Os Decretos da Cúria de Leon de 1188 traziam instrumentos legais que asseguravam aos titulares de haveres a tutela contra a expropriação ou destruição arbitrárias. O Pacto de 1º de agosto de 1291 entre o Vale de Uris, de Schwytz e de Unterwald (que deu origem à Confederação Suíça) trazia garantias contra invasões, danos e roubos por terceiros. O processo revolucionário que culminou com a independência norte-americana e constitucionalização do país foi conduzido, em larga escala, por grandes proprietários e comerciantes na defesa de seus interesses dominiais. A propriedade se destaca como instrumento de aferição do mérito individual (inclusive político) e portanto há de ser protegida, visto o pleno desenvolvimento da sociedade. Porém, (Cretella Jr., 1995, p. 174) esse mesmo direito de propriedade, que nasce absoluto, no decorrer dos tempos, vai “sofrendo limitações legais inspiradas em motivos de ordem pública, privada, ética, higiênica ou prática”. Assim, os direitos humanos surgem quando o paradigma societário muda em direção ao individualismo e vindo a reboque a reflexão sobre os limites do poder.
Para Alexy (2007), os direitos do homem são institutos definidos por meio de cinco características: universalidade; fundamentalidade; abstratividade; moralidade e prioridade.
A universalidade indica que o titular dos direitos é cada pessoa como pessoa, é todo e qualquer ser humano. A fundamentalidade infere que o objeto de determinado direito não é toda e qualquer fonte de bem-estar, mas sim apenas aqueles interesses e carências fundamentais. A abstratividade refere a um campo vasto, abrangente e amplo, e não a ocorrências ou situações pontuais e individualizadas. A moralidade trata da validez moral do direito posto, que pode ser sintetizada na sua justificação perante o outro. Por derradeiro, a prioridade encontra-se estabelecida perante o direito positivo isto é, consoante a validez moral do direito este não pode ser objeto de desrespeito ou lesão por quaisquer normas do direito positivo, contratos ou sentenças judiciais. Essa validez moral dos direitos do homem exige, em regra, a sua positivação no catálogo de direitos fundamentais da Constituição, o que vai lhe conferir, seguramente, mais eficácia em sua imposição perante a sociedade que se encontra sob a égide daquela Lei Maior.
Sarlet (2008, p. 35) aduz que “o termo 'direitos fundamentais' se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado”. Assim, o que traz a vestimenta especialíssima da fundamentalidade a determinado postulado é nele se estabelecer uma validez moral e, ainda, se fixar no direito constitucional positivo do Estado. Nesse diapasão, Piovesan (2008, p. 59), “considerando os princípios da força normativa da Constituição e da ótima concretização da norma, à norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê, especialmente quando se trata de norma instituidora de direitos e garantias fundamentais.”
Os direitos do Homem podem ser entendidos, ainda consoante o pensamento de Alexy (2007), como relações onde coexistem três variáveis: o titular, o destinatário e o objeto. Dessa forma, o titular do direito de liberdade é o cidadão; o destinatário é o Estado e o objeto é a omissão de intervenções estatais na liberdade do cidadão. Dessa relação corresponde uma “relação-deveres de três variáveis”; Se o cidadão tem perante o Estado um direito a isso, logo, o Estado obriga-se perante o cidadão, a omitir tais imposições: “Essa relação-direitos de três variáveis forma algo como o centro lógico da dogmática dos direitos fundamentais.”
De outra banda, o objeto dos direitos fundamentais não se exaure apenas na omissão do Estado quanto a intervenções no mundo da vida do cidadão, porquanto também se compreende, ainda, como prestações positivas no sentido da garantia ao exercício de determinados direitos. Nesse sentido, Mendes (2008, p. 255) infere que “a autoridade do Estado é exercida sobre homens livres. Em algumas situações, o indivíduo tem o direito de exigir do Estado que atue positivamente, que realize uma prestação”.
No trato da dignidade da pessoa humana, fonte moral dos direitos fundamentais do Homem, Sarlet (2007, p. 121) afirma que “a dignidade da pessoa humana engloba necessariamente o respeito e a proteção da integridade física e corporal do indivíduo”. Essa concepção refere um duplo significado. Efetivamente como um reconhecimento no sentido do agir positivo do Estado em relação ao Homem individualizado no caso concreto, isto é, um fato qualquer no mundo da vida onde, nessa relação Estado-cidadão, esteja latente uma garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações. De outra parte, a observância da proteção da integridade física e corporal do indivíduo perante a coletividade, no sentido de garantir a segurança desse contra quaisquer ingerências externas, posto que “o princípio da dignidade da pessoa humana constitui, em verdade, uma norma legitimadora de toda a ordem estatal e comunitária”.
Para Habermas (2012, p.11), a dignidade humana é “a fonte moral da qual os direitos fundamentais extraem seu conteúdo”. A experiência da violação da dignidade humana traz a reboque uma função de descoberta. Uma problemática qualquer que afronte a dignidade humana necessita ser interpretada como lesiva a direito fundamental e assim, por meio de uma interpretação extensiva e finalística, exige do Estado providências no sentido de fazer cessar tal ameaça. Em cada ocasião, essas características da dignidade humana “podem levar tanto a uma maior exploração do conteúdo normativo dos direitos fundamentais assegurados, como ao descobrimento e à construção de novos direitos fundamentais”. Aqui se revela a função heurística da dignidade humana pois que, essa mesma dignidade “forma algo como o portal por meio do qual o conteúdo igualitário-universalista da moral é importado ao direito” (HABERMAS, 2012, p. 17). Nesse pensamento o direito fundamental à segurança, insculpido no art. 5º, caput, da nossa Carta Maior, tem por fonte original, explicitamente, a dignidade humana. Assim, verifica-se que a inviolabilidade da dignidade do ser humano é a fonte de todo direito fundamental. Nesse mesmo diapasão habermasiano, onde experienciações problemáticas no mundo da vida violadoras da dignidade humana – aqui entendidas na ótica específica da acidentalidade no trânsito – fizeram brotar a explicitação da segurança viária como um direito fundamental do ser humano e, a partir daí, consoante o entendimento de Leal (2011) a modificação comportamental e funcional da Administração Pública por meio da formatação de políticas públicas preventivas e curativas no trato dessa mesma problemática.
Ao tratar da sociogênese do Estado, Elias (1994, p. 16) em ilação sobre o “monopólio da força”, aduz que a monopolização da força física e de seus instrumentos, com o correr dos tempos, foi migrando gradualmente de um pequeno número de grupos rivais para a sociedade, a qual centralizou-o no Estado. Assim, essa monopolização da violência física torna-se o “ponto de intersecção de grande número de interconexões sociais” fazendo com que o indivíduo modele seu Ser enquanto externalizador de sentimentos e condutas, pois daí decorrem então exigências e proibições sociais que passam a modelar a constituição do tecido social. Nesse sentido, a tradução da violência no trânsito, com todas as consequências concretas daí advindas, como ponto medular apto a justificar a construção de um novo direito fundamental – segurança viária – e a partir deste a formatação de condutas da Administração Pública com carga eficacial suficiente a responder a tal demanda.
No trato da ética e da consciência comum, Maritain (1964) afirma que a teoria ética se elabora sobre a base das estruturas morais previamente existentes na comunidade humana, e se afirma, constantemente, por justificar a escala dos valores e as normas de condutas aceitas pela consciência comum em uma área da cultura, em uma determinada época. Esse discurso encontra um correlacionamento na afirmação de Habermas (2012, p. 51) em que a “Autodeterminação democrática significa que os destinatários de leis coercitivas são ao mesmo tempo seus autores”, ou seja, na democracia os cidadãos estão sob a égide unicamente das leis que eles mesmos criaram por meio de um processo democrático.
O direito à circulação é a manifestação característica da liberdade de locomoção (Silva, 2007). Essa liberdade de locomoção consiste na faculdade que o indivíduo possui de deslocar-se de um ponto ao outro, de ir, vir, parar, estacionar na via pública. O direito à segurança pode ser considerado como um conjunto de garantias individuais que norteiam a construção de ferramentas aptas a aparelhar situações, limitações, proibições e procedimentos, de parte do Estado ou do cidadão, destinados a assegurar o exercício e a fruição de determinado direito individual fundamental, aqui, especificamente, a liberdade de locomoção em via pública.
Nesse sentido aduz Steinmetz (2014, p. 303), onde “o direito à liberdade de locomoção é a mais elementar e imediata manifestação da liberdade geral de ação das pessoas”. O Poder Público e também os particulares não poderão impedir, interditar ou obstaculizar a qualquer pessoa o exercício da liberdade de ir, vir e permanecer nas fronteiras internas do país. Assim, além do aparelho estatal também os particulares são os destinatários do direito à liberdade de locomoção.
Entretanto, esse direito fundamental à liberdade de locomoção não é absoluto nem mesmo ilimitado. No sentido de um fluir positivo – a liberdade de se locomover nas vias públicas dentro do território nacional – frente aos poderes do Estado, se manifesta como um empoderamento individual de que toda pessoa é detentora. De outra banda, em um sentido de proporcionar garantias à execução dessas mesmas ações, a Administração Pública pode impor limites e restrições, mormente quando estiver em observância a validade de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos. A exemplo, os direitos e as liberdades das outras pessoas, a preservação da ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio, a segurança nacional e a saúde pública. Contudo, ainda Steinmetz (2014), a legitimidade constitucional de determinadas restrições estará condicionada ao princípio da proporcionalidade.
Nossa Ordenação maior, a Constituição Federal, foi emendada acrescentando-se o parágrafo 10 ao seu artigo 144 (Emenda Constitucional nº 82, de 2014): A segurança viária, exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do seu patrimônio nas vias públicas. Assim, a finalidade da segurança viária se traduz na preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas. Da incolumidade das pessoas infere-se a ausência de perigos, consignada por Souza Neto (2013); essa ausência constante há de se realizar por meio da efetivação de atividades relativas à vigilância, prevenção e repressão de condutas delituosas no trânsito. Nesse entender, arremata-se que segurança viária se traduz, explicitamente, em trânsito seguro.
Esse direito à segurança, oponível em relação ao Estado, possui sua fundamentalidade formal e material: (a) ao estar formalmente previsto no catálogo expresso dos direitos e garantias fundamentais da Carta Maior e, (b) ao ser “materialmente fundamental por se entrelaçar corretamente com a dignidade da pessoa humana, promovendo a tranquilidade e a previsibilidade, sem as quais a vida se converte em uma sucessão angustiante de sobressaltos”. Essa segurança é multidimensional, exercendo várias funções em contextos diversos, se especializando em múltiplos subprincípios os quais, “se subsumem a três categorias: estabilidade, previsibilidade e ausência de perigos” (SOUZA NETO, 2013, p.231). Esse mesmo direito à segurança concebido como redução de riscos e ausência de perigos está, por sua vez, diretamente consignado ao dever estatal de garantir a incolumidade das pessoas e do patrimônio. Essa atuação se concretiza no trabalho das diversas agências que compõe o amplo espectro da segurança pública, principalmente por meio da execução de atividades relativas à vigilância, prevenção e repressão de condutas delituosas. Os objetivos das políticas públicas de segurança hão de estar voltados à consecução de um ambiente de tranquilidade que permita aos cidadãos desenvolver suas aspirações e potencialidades (SOUZA NETO, 2013). Assim, ao Estado – enquanto Norma e consecução de fiscalização da obediência à Norma – cabe o desenvolver de ações de segurança no sentido de proporcionar aos cidadãos esse mesmo “ambiente de tranquilidade” enquanto movimento, parada e estacionamento na via pública.