Direito vivo: hegemonia e contra hegemonia

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Existe uma distância entre o que está escrito nas leis e a realidade social. Então, surge a necessidade de haver um direito vivo, capaz de abarcar as reais necessidades da população.

Na análise da realidade das relações sociais, considerando o direito vivo, que se contrapõe, na visão da sociologia, ao direito morto, posto sem considerar as relações reais de vida. Existe entre eles um antagonismo, não que o primeiro anule o segundo, na verdade, eles acabam por se complementar como elementos de interdependência entre o social e o jurídico.

O direito vivo é aquele direito dinâmico, influenciável e mutável em face de fatores externos, que estuda a população e se adapta aos costumes e a realidade e impõe normas que possam estruturar a sociedade para que ela se torne mais justa, tendo o bem de todos como prioridade. Em contraposição ao direito morto, é caracterizado por uma estaticidade, apoiado única e exclusivamente aos termos da lei, que se torna ultrapassada e falida, já que não consegue abarcar toda a população.

Essa diferença mostra que, na verdade, existe uma distância enorme entre o que está escrito nas leis (letra fria da lei) e a realidade social, mostrando que é mais fácil aplicar a norma do que buscar as consequências e causas do fato social. O regulamento não analisa, por exemplo, que existem indivíduos que não têm conhecimento da lei ou que não sabem o que juridicamente é certo ou errado, mas, ainda assim, a sanção é aplicada a ele. ERLICH mostra que os códigos estão completamente afastados da realidade das pessoas, causando, assim, um embate entre a lei e a realidade social. Nesse mesmo sentido, BOAVENTURA mostra que “as tensões entre o campo hegemônico e o campo contra hegemônico[...] convertem o campo jurídico e judicial num terreno de disputas e de experimentações institucional”. 

Nesses embates judiciais, as palavras difíceis utilizadas no direito só dificultam a compreensão por parte das classes sociais menos favorecidas, beneficiando, na maioria das vezes, pequenos grupos detentores do poder que sempre buscam manter sua hegemonia social, enquanto as classes menos favorecidas buscam por maneiras de ascender a posições melhores dentro dessa divisão de classes. O judiciário seria o responsável por facilitar essa ascensão, mas vive um verdadeiro isolamento social. O magistrado parece esquecer-se de contribuir de forma eficaz socialmente, visando, em muitos casos, apenas seu crescimento profissional. Como exemplo, podemos dizer que, se um dia for necessário fazer “justiça”, mas que essa justiça alcance duas pessoas, uma que pode influenciar na ascensão desse magistrado e outra que não, ele vai preferir protelar sua decisão em detrimento de favorecer aquele que pode beneficiá-lo.

Os tribunais precisam colocar a democracia acima dos interesses. Essa individualização dos direitos precisa ser quebrada. Algo parecido ocorre quando os movimentos sociais (MST, QUILOMBOLAS, INDIGENAS) ingressam no judiciário. Não têm respostas satisfatórias ou sequer justas, mostrando um favorecimento aos latifundiários e detentores do poder.

Essa hegemonia social é consequência de um tribunal amarrado a ganhos pessoais, que, por medo de não satisfazer as classes mais altas da sociedade, não encara os problemas da população como um todo. Dessa forma, acaba neutralizando as conquistas sociais, deixando de lado as lutas por igualdade das classes menos favorecidas. A burocracia normativa que foi estabelecida desfavorece àqueles que vivem a margem e que precisam esperar longos anos para conseguir um local para se desenvolver. Enquanto que liminares de reintegração de posse, por exemplo, são dadas quase que imediatamente em nome dos proprietários de terras. Isto é: não existe imparcialidade na justiça. Não na atual. Aliás, não existe imparcialidade na forma de julgar os processos, pois a justiça em alguns casos nem sequer é buscada. Não há como considerar justa uma decisão que anula as lutas sociais em favor dos que possuem a hegemonia de poder.

Isso se dá pelo isolamento dos tribunais que só reconhecem como válidas e aplicáveis as normas estatais. Normas estas que foram impostas a sociedade com o objetivo de organizá-la, de orientar o agir humano. Vale ressaltar que tais normais foram criadas pelos detentores do poder, a “burguesia”. Mas, como cumprir esse papel se a lei não se adapta à sociedade? EHRLICH diz que “nunca existiu uma época em que o direito proclamado pelo Estado tivesse sido o único direito...” e que em uma sociedade existem diversas regras que fazem as pessoas seguir uma determinada conduta, regras que surgem dos mais diversos âmbitos: regras morais, religiosas, costumes. BOAVENTURA completa esse pensamento dizendo que as sociedades são plurais e que dentro delas circulam vários sistemas jurídicos, sendo que o estatal nem sempre é o mais seguido pela população. Em vez de ser de fato um ordenamento, a norma estatal se torna uma regra inválida. Se até os costumes e demais regras mudam conforme os avanços da sociedade tentando se encaixar a realidade da população, a norma também não pode ser algo absoluto e imutável. Portanto, se temos uma ciência que não se adapta à coletividade, ela não é viável.

Nesse sentido, surge a necessidade de um direito vivo, capaz de abarcar as reais necessidades sociais, tendo em vista que uma legislação inexata não cumpre sua real função social e acaba facilitando uma relação de domínio. Até por que, quanto mais distante da sociedade for uma norma, mais desequilibrada a comunidade se torna. Então, é pertinente ainda um judiciário menos isolado, mais próximo do povo e que se comunique com as outras instituições, permitindo uma ampliação do direito, inclusive a do direito de ter direito, pois a independência judicial foi concedida para que os tribunais agissem de forma democrática, analisando os interesses dos cidadãos e não só de uma classe hegemônica. Só é possível a utilização livre do direito e da justiça quando os tribunais atuarem de forma democrática e justa, visando solucionar as pendências individuais que acabam por dividir a sociedade.

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Portanto, faz-se necessária uma verdadeira mudança na cultura jurídica que leve os cidadãos a se sentir mais próximos da justiça. É preciso pensar em uma reestruturação do sistema judiciário. De fato, é preciso iniciar um novo ciclo, deixando para trás essa hegemonia dos que detêm o poder e fazer com que renasça um sistema que não vise quantidade, que não vise interesses próprios. Far-se-á necessário um reconhecimento por parte do judiciário de que existem regras além daquelas implantadas pelo Estado.

Consoante a tudo isso é necessário que se tenha em mente que a justiça foi feita para o povo, e que foi implantada para olhar também pelas minorias, deixando de lado a busca de interesses e agindo de maneira imparcial, visando sempre o bem comum e o ordenamento da sociedade de forma equânime, iniciando, assim, uma revolução democrática no judiciário.

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Sobre os autores
Neuton Vasconcelos Jr.

Acadêmico de Direito<br>Bacharel em Administração

Eliana Menezes

Graduanda Direito - FACULDADE DE CIÊNCIAS APLICADAS E SOCIAIS DE PETROLINA – FACAPE

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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