Cidadania para além de Marshall

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Este artigo objetiva analisar, historicamente, o processo de formação do conceito atual de cidadania, brasileira e mundial, pontuando as principais diferenças entre estas.



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RESUMO
Este artigo objetiva analisar, historicamente, o processo de formação do conceito atual de cidadania, brasileira e mundial, pontuando as principais diferenças entre estas. Ademais, visa evidenciar a problemática do conhecimento e exercício efetivo de cidadania, principalmente dos indivíduos em situação de vulnerabilidade, levando em consideração a inversão dos princípios em relação ao modelo Marshall.

Palavras-chave: Cidadania. Modelo Marshall. Vulnerabilidade Social.  Seguridade de direitos.

ABSTRACT

This article aims to analyze historically the process of formation of the current concept of Brazilian and world citizenship, punctuating the main differences between them. In addition, it aims to highlight the problem of knowledge and effective exercise of citizenship, especially of individuals in vulnerable situations, taking into account the reversal of the principles in relation to the Marshall model.

Keywords: Citizenship. Model Marshall. Social vulnerability. rights of security.

INTRODUÇÃO

A evolução do conceito de cidadania e seu exercício no pensamento brasileiro remetem ao conceito de detenção do titulo eleitoral onde, seria o simplista “direito de votar e ser votado”, sendo este apenas uma face do conceito de cidadania. Há de levar em consideração que apesar do epíteto da Carta de Constituição Cidadã (1989), observa-se o uso errôneo do conceito. Esquece-se de que cidadania refere-se à reciprocidade entre indivíduo e Estado para a manutenção do bem estar social. Sendo encargo deste: garantir o mínimo existencial e dever daquele: participar ativamente, seja política ou civilmente no que concernem as atividades do Estado, assumindo a parcela de responsabilidade individual. A deficiente efetivação de tais princípios será, portanto, a base de discussão do presente trabalho.

 

MAPA CIRCUNSTANCIAL

O conceito de cidadania tem origens na Grécia antiga, onde eram considerados cidadãos todos aqueles que participavam ativamente nas decisões das pólis. Não recebiam o status mulheres, estrangeiros, crianças e escravos. O mesmo acontecia em Roma, onde a exclusão dos forâneos e não nobres era evidente. Em suma, uma igualdade política inexistente, privilégio de poucos.

A Idade Média foi um período de grandes transformações políticas, econômicas e sociais. O modelo Greco-romano de cidadania em decadência, correlacionado a ascendente subordinação e religiosidade. A Baixa Idade Média foi marcada pelo ressurgimento de um governo centralizado, dando margem aos princípios teóricos que instauraram o absolutismo monárquico. Questões políticas, outrora desvalorizadas entram no plano, readquirindo notoriedade somente com a formação dos Estados Nacionais.

O Iluminismo é marcado pela negação da vontade divina, alicerçando-se a sociedade na visão antropocêntrica de mundo. Época do desenvolvimento das ciências, das artes, da “liberdade de pensamento” e, como consequência, da gênese dos ideários de igualdade e liberdade. Impulsionada pelo desenvolvimento do Capitalismo, e os questionamentos aos privilégios que a nobreza e o clero detinham. A nova ideia de cidadania surge no intuito de superar a condição de subordinação. Cidadãos passam a ser entendidos como indivíduos únicos e livres, não apenas massa da comunidade política.

Filósofos modernos, como Locke e Rousseau, lançam premissas baseadas na democracia liberal, refutando a religiosidade e tomando por pilar a racionalidade para explicar o mundo. Rousseau defendia a chamada “soberania popular”. O Estado, para ele, não mais se confundiria com a figura do Monarca, porquanto o uso da coação como reguladora da sociedade ia de encontro ao exercício da liberdade plena. Locke, por sua vez, associa o conceito de liberdade ao poder de aquisição material, de propriedade.[3] O pensamento deste foi o alicerce necessário para que os burgueses se afirmassem política e economicamente. Fala-se, portanto, na busca da igualdade de direitos. Por iguais, entende-se, por fim, proprietários.

Ideias que serviram de justificação ideológica das revoluções burguesas, a Inglesa, de 1630, a Americana, de 1776 e a Francesa, de 1789. As declarações de direitos inglesa e americana, bem como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa, que influenciariam, mais tarde, outras cartas constitucionais ao redor do globo. Porém, conforme afirma Dalmo Dallari[4], muitas das resoluções contidas nas declarações foram preteridas, evidenciando um cenário de profundas desigualdades sociais na Europa moderna.

Diante de tais circunstâncias, surgem novas teorias a respeito do conceito de cidadania, advindas da evidente situação de exclusão em que se encontrava o povo. Thomas Marshall, em 1949, retoma o pensamento anterior redirecionando-o, tendo a Inglaterra como pano de fundo. Em sua obra, Cidadania, Classe Social e Status, Marshall divide a cidadania em três elementos: social, político e civil. Os direitos civis estariam relacionados com a liberdade individual, tal como o direito de ir e vir, acesso à justiça e liberdade de pensamento. Os políticos, por sua vez, referem-se à participação no exercício do poder político, como o direito ao voto. Os direitos sociais, por fim, seriam aqueles responsáveis por garantir um mínimo de bem estar social, como acesso aos serviços educacionais. O autor defendia ainda que os três elementos estariam ligados cronologicamente, sendo o segundo produto do primeiro, e assim por diante.

O Brasil, afirmando a cidadania como um de seus objetivos constitucionais, torna necessário frisar a inversão da ordem dos três elementos citados por Marshall: os direitos sociais, segundo José Murilo de Carvalho[5], em nosso caso precederam os demais. Consequência do fim do período colonial (1822), o Brasil era regido pelo absolutismo e sustentado pela escravatura, sendo sua população, quase em totalidade, analfabeta. A vontade do Monarca era a Lei, subordinando todos os aspectos da vida política. Inexistia, nesse sentido, um poder público que garantisse a igualdade e os direitos.

A “cidadania”, no período colonial, era excluída de quase toda a população, sendo o indivíduo escravizado o mais afetado. Submetidos a condições precárias de vida, índios, africanos e imigrantes pobres tornam-se um grande contingente de suprimidos culturais, sociais e políticos. Não se pode falar, por conseguinte, em um conceito efetivo de cidadania neste período, posto que a colônia, servia apenas para a exploração.

Com a independência, em 1822, o cenário político não obteve mudanças: o processo de revolução resultou de um acordo entre elites coloniais. O Estado, portanto, nasce antes da nação. Além, o texto Constitucional de 1824 nada mais era do que um reflexo dos ainda existentes fatores limitantes ao exercício político. O sistema eleitoral passa a basear-se no critério renda, excluindo mulheres, analfabetos e indivíduos sem posses consideráveis. Se a independência, por um viés, representou um avanço, por outro, a população não tinha consciência do valor do voto, sendo o sufrágio não uma forma de garantia aos direitos, porém de submissão a um poder local.

Após a instalação da República Velha, em 1889, mudanças sutis ocorrem: a renda não mais é considerada fator excludente do processo eleitoral, mantendo-se fora deste, entretanto, as mulheres e os indivíduos não letrados.  Observa-se, assim, a carência na participação popular no que tange o período Imperial até o fim da primeira república. Não há que se falar em direito sociais, tendo em vista a inexistência de leis trabalhistas e a educação ser prerrogativa elitista.

Mudanças significativas ocorrem a partir do ano de 1930. O crescente sentimento nacionalista da população e o descontentamento com a situação em que se encontravam culminam em revoluções de caráter nacional. Nesse ínterim, multiplicam-se os partidos políticos e os sindicatos trabalhistas. Getúlio Vargas institui a jornada de oito horas de trabalho, regulamenta o ofício feminino, bem como cria o direito às férias e adota o salário mínimo até que, afinal, em 1941, implanta a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Se, por um lado, o governo Vargas permite o desenvolvimento dos direitos sociais, por outro, enfraquece os direitos civis e políticos, uma vez que o suporte de seu mandato era, a centralização do poder. A cidadania, novamente, perde a índole de direito universal para subjugar-se ao controle estatal e excludente.

A partir da queda de Vargas, em 1945, o Brasil entra em uma primeira experiência democrática. Torna-se visível a organização política dos mais diversos setores sociais, a exemplo da União Nacional dos Estudantes. O fôlego brasileiro no ambiente democrático é curto. O golpe militar chega em 1964, trazendo consigo o retrocesso no desenvolvimento da cidadania.

A ditadura se caracterizou pela supressão dos direitos civis e políticos, na tentativa de refrear os “movimentos subversivos”. Censura, perseguição, torturas, sequestros e homicídios de líderes sociais tornaram-se rotina. Sem dúvida, o exercício da cidadania chegou perto da nulidade, tendo como capa a marginalização das massas populares, negligenciadas por um governo corrupto, que se mantinha no poder ostentando uma economia de fachada.

Com o fim do período ditatorial, rumou o país em direção à atual democracia. É possível observar a reorganização dos movimentos populares no que diz respeito à atuação política. A emenda Dante de Oliveira[6] põe fim, afinal, às eleições indiretas, consolidando o sistema democrático vigente até então. Em 1988, é elaborada a mais avançada Carta Constitucional que o país já teve: a Constituição Cidadã.

 

DIREITOS CIVIS PARA O CIDADÃO DE BEM E DIREITOS SOCIAIS PARA QUÊ(M)?

A assembleia constituinte de 1988 usa como base no modelo analítico de Marshall, onde a cidadania é um todo composto de três dimensões – a civil, a política e a social - que são percebidas no processo de constitucionalização britânico, respectivamente nos séculos XVII, XVIII e XIX. Os direitos civis correspondem à igualdade formal e liberdade individual. Os direitos políticos, por sua vez, concedem possibilidade de participação nas ações e negócios do governo de maneira direta ou indireta. Direitos sociais, por fim, correspondem a uma perspectiva alargada de justiça, buscando conferir a todos dentro da sociedade de forma irrestrita um padrão de bem-estar com base em um conceito positivamente padrão na sociedade.

Com base nisso, Marshall demonstra que estas dimensões se sobrepõem no lapso temporal de maneira linear e construtiva. Em determinado momento, com a possibilidade de direitos civis, estes com base na liberdade e igualdade, abriram caminho para conquistas na dimensão política que, por fim, embalados pelas conquistas anteriores, marcharam em direção ao bem estar fruto da dignidade. A análise de Marshall deixa evidente que as conquistas referentes ao constructo da cidadania experimentada pela Grã-Bretanha, possuem seu mover primário atrelado aos direitos civis, tendente a formar uma sociedade mais igualitária. Por este turno, as conquistas dizem respeito à reafirmação das gerações antecedentes no mesmo momento em que se afirmam como direitos inerentes ao caráter fundamental do Estado, buscando uma sociedade, político-social, mais igualitária.

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Este sistema, aparentemente simplificado e com base em observações inerentes a uma sociedade dentro do contexto revolucionário europeu, encontra uma série de vitais obstáculos em sua implementação em países sem uma história de processo de constitucionalização, como é o caso do Brasil. É possível vislumbrar uma abissal distância entre o ideário constitucional no que diz respeito à cidadania e a facticidade hodierna. Cabe ressaltar que a desigualdade, subproduto do capitalismo, é evidenciada na obra de Marshall (1967), de forma que, na perspectiva linear evolucionista, com base demasiada na solidariedade, tem o condão de reduzir e eliminar a desigualdade, ao passo que promove a cidadania no plano sócio-político. Dito de outro modo, Marshall não desconsidera o paradoxo na busca da cidadania em um sistema que termina por gerar desigualdade, porém, acredita no sentido progressista da sociedade, onde a tendência seria uma realocação dos direitos, no sentido de promoção gradativa da cidadania, ao passo que a sociedade evolui. Este processo é o que melhor define a busca da cidadania para Marshall.

Nos Estados Unidos, como na maioria da América, o povo nomeia aquele que faz a lei. Tal escolha funciona como mecanismo para manter, de certa forma, o controle. Assim, o povo dirige o governo na forma democrática pela maioria, que por sua vez, governa em nome do próprio povo, a forma representativa. A maioria - referente a cidadãos pacatos e desejosos do melhor para a nação -, encontra a maciça propaganda partidária como tentativa dos partidos de arrebatá-los para terem maior apoio e maior força. Porém, o que distingue o Estado norte-americano dos demais países americanos, em especial o Brasil, é inerente ao seu caráter social em ser essencialmente democrático[7]. Começando pelo seu processo de colonização: seus emigrantes apresentavam grande igualdade, de forma que a influência da coroa não alcançava este povo, tendo sua forma de fundação de maneira mais intelectual. Fato marcante é que, nesse ínterim, nasce o despertar do homem em busca de seus direitos, rompendo com o sistema do antigo regime. A Revolução Americana surge como uma resposta do povo contra as formas de exploração, mas antes como busca por direitos, como liberdade e igualdade. Nesse sentido, Tocqueville (2005) mostra que esta quebra efetiva de paradigma se deu com o advento da sucessão, onde a terra perde seu caráter vitalício de representação única do poder e ganha um significado mais dinâmico no sentido dos ideais democráticos[8]. Aponta também como fator importante, uma grande noção de igualdade relacionada ao campo do saber que, apesar de muitas vezes deficiente, acaba por produzir uma multidão que tem mais ou menos a mesma quantidade de noções históricas, econômica, política, religião, legislação, governo e etc[9]. Desta forma, lá, segundo Tocqueville concentra-se um nível de igualdade nunca experimentado na história da humanidade, até então[10].

Extrai-se que, apesar de a cidadania norte-americana não ter ocorrido de maneira linear, há uma noção próxima do exposto no modelo Marshall, mostrando com isso que a construção da cidadania é um fenômeno histórico. O caminho rumo à cidadania pode ser semelhante, porém, nunca igual[11]. O apontado por Tocqueville remete a diferença gritante com a realidade brasileira, onde lá a noção de cidadania nasce do próprio povo e ganha força por sua própria luta, no sentido de buscar os ideais de liberdade e igualdade. Assim, essa noção originada do povo ganha, em um segundo momento, positividade na declaração de independência e em sua constituição, ao passo que, no Brasil, se tem a via contrária, sendo o direito permutado na emancipação e entregue ao povo, ainda com desvios e imprevistos que fogem do controle de Marshall. O que ocorre com a realidade brasileira fora a precedência dos direitos sociais[12], o que fez com que os demais direitos ficassem flutuando em uma espécie de limbo estagnante. José Murilo de Carvalho demonstra, em sua obra, Cidadania no Brasil, que o que houve fora uma completa inversão do ideário de construção da cidadania em Marshall[13].

Essa inversão nasce do momento em que o Brasil se declara independente de Portugal, onde, diferente dos norte-americanos, o país possuía três séculos de exploração. As raízes da metrópole se espalhavam na linguística e cultura, além de deixar uma população analfabeta dentro de uma sociedade escravocrata, agrícola, de base na monocultura e latifundiária, tudo isso imergido em um Estado absolutista. Nesse período, a população não tinha noção do que estava acontecendo, portanto, não existia pátria e nem brasileiros[14]. Sendo assim, o grande empecilho rumo à efetivação da noção verdadeira de cidadania está na escravidão, onde escravos não eram cidadãos, não tinham nenhum direito civil básico. Os tidos como “homens bons”, latifundiários e proprietários de escravos, apesar de poderem votar e ser votados, não eram considerados livres, pois lhes faltava o sentido da cidadania frente à igualdade imposta por lei. Mesmo fora da dualidade senhor e escravo, onde existiam indivíduos livres, a estes faltava educação como condição de exercício dos direitos civis[15]. Mesmo com a abolição da escravidão em 1888, a grande propriedade privada ainda exercia seu poder sobre esses sujeitos “livres”. Esta liberdade condicionada (ou liberdade formal) acaba por manter o status quo, onde a escravidão sai de cena para a entrada do Coronelismo: o poder, nas fazendas, passa a ser exercido de maneira unitária, na figura do coronel, reafirmando o direito patrimonial sobre o direito civil[16].

Há na realidade brasileira uma breve noção da perspectiva de avanço, onde os direitos políticos ganham foco, porém, sem vislumbrar os direitos civis. Verificam-se a queda de Vargas e as consequentes novas eleições de 1945, que se destinavam a escolher uma assembleia constituinte (a terceira na história brasileira). Teve desse modo, a promulgação, em 1946, a nova constituição. Essa nova fase, tida como a primeira experiência democrática do país, segundo José Marildo Carvalho (2002), manteve as conquistas sociais anteriores e garantiu os direitos civis e políticos[17]. Ainda que pesem os retrocessos e avanços dos direitos sociais, civis e políticos no período ditatorial, a efetivação dos direitos políticos após a redemocratização com a Nova República e consequente otimismo que ela ensejava através dos movimentos cívicos favoráveis às eleições diretas, o que acontece é a perpetuação dos direitos sociais e políticos sobre os direitos civis. As desigualdades permaneceram. Exemplo disso é a necessidade do MST, que (melhor) utilizou o direito de organização social e força de entrada na área política para promover avanços na democratização do sistema de redistribuição agrária, contrário às desigualdades no campo agrícola diante da má distribuição de terras, diametralmente o inverso que acontece no começo do constitucionalismo norte-americano, onde os latifundiários perdiam espaço frente às pressões locais e por conta do direito de sucessão[18].

Percebe-se, que a simples importação da teoria de Marshall para o plano sócio-político brasileiro é defeituosa. Pode, sim, servir como base estruturante, porém não como dogma irrefletido. Carvalho diz que o curso inglês, que serviu de inspiração para Marshall, foi um entre outros que seguiram sua própria realidade, como é o caso dos Estados Unidos, França, Alemanha[19], o que talvez falte para o Brasil, assumir a sua própria realidade.

Diante do exposto, mesmo entre caminhos distintos, obtém-se maior efetividade no que tange a democracia se os pilares de tal pensamento forem os direitos civis em primazia aos demais direitos que formam a base do estado democrático. Este processo de construção distorcida do conceito de cidadania no Brasil se deu por vários motivos, contudo, a escravidão o mais negativo dos fatores. Como pontua José Bonifácio, em representação enviada à assembleia constituinte de 1823, onde afirmava ser a escravidão um câncer que corroía a vida cívica e causava empecilhos à construção da nação[20]. Com o fim da escravidão, a desigualdade assume o seu lugar, ao passo que, dentro do mesmo Estado, se tem distintas sociedades, não somente pelo costume, mas, também - e negativamente -, pela segregação e hierarquização desses grupos, deixando uns como detentores do poder de capital e gerência dos meios do Estado, em face de outros, renegados às periferias sem direitos mínimos, reféns do poder estatal, em situação de vulnerabilidade.

TRABALHO COMO BARREIRA

Afirma Pizarro que a problemática da desigualdade, em se tratando de países da América Latina, está em sua abertura para indústrias estrangeiras, dando valor demasiado à produção ao invés do setor primário de produção[21]. Como forma de fomentar o crescimento, há uma relativização das leis internas, incluindo as trabalhistas, para acomodar empresas transnacionais, visando o desenvolvimento e, por conseguinte, incentivando as contratações em massa e as negociações coletivas. O que relativiza até mesmo os, já precários, direitos sociais, diante de uma massa de trabalho com uma história de exploração, difícil de superar. Afirma Kaztman, no mesmo sentido em que a segregação social tem raízes na segregação do trabalho, como acima descrito, onde tal ataca o sentimento de cidadania no sentido objetivo, mas, também, no que se refere à subjetividade, criando uma identidade em comum (de grupo), limitando, pois, a autoestima, construindo um destino comum, porém voltado ao ideal de ganho e expansão do capital[22].

Essa deturpação dos direitos sociais causa um ideário, também torpe, de subgrupos criando um sistema à parte, privado, hábil a prover serviços que o Estado não é capaz, como segurança, saúde, educação. Terminando por criar barreiras de acesso dos pobres a determinados ambientes, reforçando, assim, o ideário divisor de grupos e aumentando a segregação. Porém, o Estado, não conseguindo promover o mínimo, de forma homogênea, para as classes mais vulneráveis termina por produzir um mal estar ao sentimento de cidadania de todos. Pois, problemas com drogas, delinquência juvenil e violência, acabam transcendendo as barreiras da periferia e emigrando para o centro, terminando em um sentimento de insegurança pandêmico[23].

Diferentemente, aponta Kaztman (2001), do confeccionado no modelo Europeu liberal, social democrático dos países nórdicos, onde a organização do trabalho é pautada nos direitos universais de cidadania, ou o modelo dos países anglo-saxões, que primam por redes de seguridade para os pobres e marginalizados. O Estado, nesse ínterim, desempenha um papel central no sentido de reestruturação econômica, promovendo, em muitas vezes, salários sociais por meio de empregos públicos temporários, diminuindo a dependência por parte da população, mais suscetível ao domínio setor privado, no sentido de serem submissos a trabalhos menos qualificados[24]. Visto enfim a diferença abissal existente entre o trabalho quando analisado sob um viés que busca favorecer o conceito universal de cidadão, como é o caso dos países europeus onde, salvo seus problemas, existe uma preocupação no sentido de garantia do ideário universal do conceito de cidadania, em contrapartida ao visto em países com constitucionalismo deficiente, como é o caso brasileiro, onde o trabalho assume um papel agravante na segregação social e, consequentemente, aumento da vulnerabilidade de camadas mais pobres da população. Mostra Norberto Bobbio (2004), que em uma sociedade onde somente os proprietários detinham o status de cidadania ativa, era óbvio que a primazia dos direitos fundamentais fosse ligada ao direito de propriedade, em detrimento dos demais[25].

EDUCAÇÃO COMO LIBERTAÇÃO, NÃO EM “TERRAE BRASILIS

Mostra Kaztman, que o ambiente escolar é, talvez, o único espaço que permite o sentimento de coletividade no sentido de fortalecer ou criar laços de solidariedade de comum afeto em condição de igualdade - fatores positivos quando o ideal é a busca de uma compreensão do ser quanto cidadão[26]. No entanto, a realidade nacional mostra que a segregação social começa na escola. Em países com parco desenvolvimento cidadão isso se agrava, existindo escolas para ricos, escolas para a classe média e escolas para pobres. As altas mensalidades servem como dique redutor da pobreza no ambiente. Fora do convívio escolar dificilmente serão feitas relações com pessoas não pertencentes ao grupo, que não se expressem do mesmo modo e linguagem, que não possuam os bens de consumo análogos ao grupo. Sendo situação diametralmente oposta à vivenciada em larga escala nas escolas públicas em regiões periféricas. Em um relatório alarmante da psicóloga Viviane Senna (que está à frente do instituto Ayrton Senna há mais de duas décadas) à BBC Brasil, relata que o modelo de escola pública brasileiro parou no século XIX[27]. Tornando, então, utópica qualquer esperança de fomento do ideário cidadão no âmbito escolar. Formando, precocemente, um ideal de consumismo, onde há a assimilação da inclusão pelos bens que se possui, com uma ligação direta ao capital. Outra força que emana desse universo é a perpetuação do capital na mão da então elite econômica, onde um melhor suporte escolar termina por refletir em melhores empregos que, comumente, fogem do contato de pessoas em situação de pobreza e ou vulnerabilidade. Perpetuando o capital entre os extratos mais elevados da sociedade, determinados grupos com uma melhor qualificação[28]. Um indicador deste processo de perpetuação hegemônica não se restringe somente aos serviços, pode ser analisado com as artes, onde os estudos na comunidade europeia de Pierre Bourdieu (2007) mostram que as classes com maior preparação, além de alçarem melhores trabalhos, consomem mais arte[29], gerando, dessa forma, um ciclo vicioso. Discorre o autor que as artes, apesar de serem de caráter universal em museus, cinemas, teatros, etc. são limitadas a quem possa pagar o preço de acesso a elas[30].

A educação familiar dificilmente consegue perpassar o caráter cívico a diante, renega de forma total à escola. Que, participando do processo de conhecimento desde a tenra idade, possui força necessária para promoção da libertação e emancipação do pensar da criança para a formação cívica. Com esse “poder pensar”, o aluno se prepara para a vida fora da classe e família, com potencialidade para transformar o mundo à sua volta. A educação é a base fomentadora do espírito cívico, visto os exemplos norte-americano e inglês, onde toda e qualquer noção de cidadania partia do subjetivo para o plural e se efetivava perante as positivações constitucionais. 

Dessa forma, o sistema de ensino, objeto que melhor se apresenta a fomentar a consciência cívica é um instrumento de reprodução da estrutura de distribuição do capital cultural[31]. Falha para promover mudanças efetivas enquanto servir de fonte de renda para interesses individuais, indiferente com seu papel de impulsionador de avanços na formação igualitária social e consequentes mudanças, principalmente no estado democrático.

O QUE FAZER?

Sustenta-se, por fim, que a natureza aberta e a formulação vaga das normas que versam sobre direitos de cidadania não possuem o condão de, por si só, impedir a sua imediata aplicabilidade e plena eficácia. Mesmo em se tratando de preceitos imprecisos, é possível reconhecer um significado central e incontroverso e sempre se deverá aplicar a norma constitucional, mesmo sem intermediação legislativa. Já que, do contrário, se estaria outorgando maior força a lei do que a própria constituição, ignorando todo o significado de conquistas sociais que essa representa.

Carta Magna que traz como fundamento da república a cidadania[32]. Dessa forma, citando a Declaração Universal de Direitos Humanos[33], onde, em seu artigo 1º, mostra o ideário revolucionário da liberdade, igualdade e fraternidade, que remete a importância do caráter cívico, da cidadania em predeterminação aos demais direitos, como forma de construção social. Além de remeter ao ideário revolucionário, que deu azo à criação da cidadania, impossível não lembrar a profunda obra Para a paz perpétua de Kant onde o filosofo alemão demonstra a importância de um direito para além do direito público interno e direito público externo, chamando de direito cosmopolita[34], onde o próprio autor se recusa a definir por seu caráter assimilativo, mas que o acaba definindo, enfim, como um direito de ligação que une todos os seres humanos e suas relações e que se impõe de forma a permitir que cidadãos se revoltem aos abusos de seus Estados e soberanos[35], possibilitando uma cidadania universal[36], regida por esse direito e hábil a promover a então sonhada paz perpétua.

CONCLUSÃO

A inversão da cronologia e lógica de Marshall que se deu na história constitucional brasileira. Sendo o oposto do que se evidencia na realidade inglesa e norte-americana, onde naquela existe a sequência de Marshall e, nesta, apesar de ser inexistente a sequência, observa-se a base nos direitos civis. Mostra-se, por fim, que não existe um único caminho a ser seguindo, e isso para além da realidade inglesa e norte-americana, outros países europeus como França, Alemanha[37] e Inglaterra o denotam. Porém, o que ambas possuem em comum é a efetiva busca por direitos civis antes de tentar alçar qualquer outro objetivo. Preocupação de longa data se mostra nas leituras de Hobbes, Locke, Rousseau, Ferguson, Smith, Montesquieu e Hume, que tinham em comum a preocupação com a formação do estado com base no conceito básico dos princípios da cidadania. Visando retirar os seres humanos do estado de natureza e entrar em uma forma contratual de convivência pacifica, em um governo com base na lei.

No caso do Brasil, efetivar-se o que está positivado, transferir o formal para o material, poderia ser uma forma autentica de se conceber cidadania. Resta saber se a constituição sobre alicerces tão frágeis durará tempo suficiente para que isto ocorra.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América – Livro 1 leis e costumes. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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Sobre os autores
Herson Alex Santos

Acadêmico de Direito, da Faculdade de Direito (FADIR) da Universidade Federal do Rio Grande-FURG/RS, quinto ano, estagiário do Serviço de Assistência Judiciária Social: [email protected]

Carolina Santana Lopes

Acadêmica de Direito, da Faculdade de Direito (FADIR) da Universidade Federal do Rio Grande-FURG/RS: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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