Resumo: O presente trabalho preocupa-se em discutir sobre a questão da culpabilidade, em especial o livre-arbítrio sobre o viés cientifico da neurociência e filosófico de Nietzsche, apontando possíveis falhas em ambas as concepções e aduzindo ao debate breves recortes de teorias de compatibilismo, mostrando uma fuga válida à bipolaridade do neurodeterminismo de um lado e do livre-arbítrio de outro.
Palavras-chave: livre-arbítrio; neurodeterminismo; determinismo; indeterminismo; compatibilismo humanista.
INTRODUÇÃO
A importância do livre-arbítrio para os sistemas jurídico e religioso é primária. Ambos, por possuírem similar fundamento ético, lato sensu, acabam por se confundirem, com relação aos seus objetivos – responsabilizar o homem por suas ações –, recompensando ou punindo o indivíduo por agir ou não de determinado modo[2].
Porém, oportunamente, o livre-arbítrio sofre ataques filosóficos e empíricos, a saber. Lê-se em Nietzsche (2000) que não é possível classificar o agir como conduta positiva ou negativa sem a concepção do livre-arbítrio, sendo este histórico e desenvolvido em paralelo com a evolução social humana. Neste sentido, as ações humanas ganham progressivamente valores por intermédio da razão, afastando, erroneamente, o agir instintivo, em uma evolução histórica que se deu em distintas fases. A primeira, na qual se valoravam as consequências do agir e, com isto, havia parâmetros de boa ou má conduta. Na segunda fase, a valoração passa para a ação em si, sem levar em conta suas consequências e tampouco a motivação. E a terceira fase, em que se outorga valor aos motivos que antecedem a ação. Finalmente, chegou-se a valoração moral propriamente dita, onde o bom ou mau recai sobre o sujeito, acreditando ser este livre para escolher[3].
O CONCEITO DEFASADO DO LIVRE-ARBÍTRIO
Esta inversão da valoração moral e seu deslocamento para o sujeito foi o que permitiu a ideia de que a vontade exercida é livre para fazer ou não, assim avaliada como boa ou má, podendo ser punida ou louvada. Destarte, a intenção precede a ação, e é avaliada moralmente, porém este constructo não passa de preconceito. Segundo Nietzsche (2004), o agir humano é formado por estruturas do pensar e agir que formam um multíplice conjunto de motivações, que não devem ser resumidas simplesmente na vontade. A própria vontade é mais complexa do que o vulgar conceito de aspiração, desejo, capacidade de representar um ato mentalmente. Nietzsche (1992) demonstra com a afirmação de algo pensa em mim[4] que o consciente não é uma realidade imanente como se propôs por muitos séculos. A demonstração prática da falta de domínio do pensar sadio está incorporada nas práticas hodiernas, consistente na falta de escolha lógica no que se pensar enquanto se espera em uma fila de banco ou viajando dentro de um ônibus. Ou quando não se lembra de uma informação no momento que se é indagado e, lembrando-se da informação na sequência, como uma aparição. Para Nietzsche (2002) estas são manifestações do inconsciente, que vêm ao consciente percebido que, por sua vez, é a ínfima parte de todo o pensar. Não existe, portanto, um eu construindo as ligações lógicas do pensar, mas sim forças vitais que produzem pensamentos, sendo o ser o primeiro a assistir o que nele mesmo se pensa. Sendo apenas movimentos vitais existências e talvez fisiológicos que, assim como os movimentos peristálticos e cardiovasculares, não podem ser controlados. Assim, o fluxo de pensamentos que se exteriorizam do inconsciente faz parte da imanência do corpo.
Diante desta desconstrução da racionalidade consciente do intelecto, o filósofo alemão vai além e acrescenta aos significados racionais a impossibilidade de demonstração empírica da realidade, afirmando não haver verdades. Nietzsche (1992) demonstra que a ficção da linguagem relacionada aos seres demonstra uma generalidade funcional para a comunicação, mas que não pode ser aceita como verdade por se tratar de signos com caráter universal e que não demonstram o ser em si, de forma que conclui na impossibilidade de o mundo da vida ser traduzido diante da ininterrupta circulação de forças vitais – Nietzsche (1992). Demonstrado na falácia de uma mulher ter o mesmo nome desde criança, sendo que aquela se distingue muito desta, seja fisiologicamente ou psicologicamente. Até os objetos, em que todos não são isentos das transformações do tempo, em conjunto com quem observa que também sofre modificações no ser, pensar e, portanto, ao avalia o objeto de distintas formas.
Segue Nietzsche (2001), demonstrando que juntamente ao pensar não ser livre e de não existirem verdades, toda tentativa de compreensão dessas “meias verdades”, que não passam de interpretações, podem ser (re)interpretadas. A interpretação da interpretação é interpretável, afirma o filósofo, ser este o “novo infinito”.[5] Não o metafísico, mas o infinito relacionado com a multiplicidade de pontos de vista, demonstrando sua perspectiva e até mesmo sua interpretação do que afirma e as afirmações diante desta, sem desabar em relativismo teórico. Compreendendo dessa forma, que o infinito é paradoxalmente posto dentro do limite de significância da finitude do interpretar – Nietzsche (2009).
Portanto, empregar à ação caráter genérico de consciência e fundamentos motivados pela razão, no sentido da capacidade livre e consciente de praticar ou não um ato é um dislate. Diante do anterior, o conhecimento da ação e seus efeitos não formam o agir[6]. O Filólogo alemão em Crepúsculo dos Ídolos aponta na direção de que o fato de estar o livre-arbítrio ligado à razão é por meio do eu substanciado, individualizado, e usado de forma universal. Imaginando-se no lugar de outros e, dessa forma, tendo conceitos emanados de breves noções do ser. Acreditando para isso que a vontade se opera como assimilação de escolhas, certas ou erradas – portanto, boas ou más – pela razão. Esta que deriva de lugar desconhecido – não é empírica –, pois não há como se provar uma construção natural da razão em sentido imanente. Para escolher entre certo e errado deve-se conhecer o certo e errado, o que não pode ser conhecido pela sua universalidade de signos e significados, levando em conta que a filosofia moderna, tal qual às ciências empíricas não conseguiram um platô razoável de explicação sobre os elementos motivadores do agir humano. Nietzsche (2004) acredita que o agir humano ainda responde em grande demasia aos instintos e pulsões animais[7]. E segue, afirmando que o agir respeita estas pulsões e não são boas ou más, posto que o mesmo agir, em diferentes culturas, possui valoração moral distinta. Algumas vezes na mesma cultura, recebe valoração moral distinta[8] baseado na interpretação do agir. É o caso da ação de matar alguém, que é um crime, ação moralmente negativa segundo diversos aspectos sociais, inclusive o penal e religioso, podendo ser concebido de distintas formas, dolosa, culposa, sendo avaliada conforme a interpretação da ação sob o viés penal. No entanto, a mesma ação pode não ser negativa e ganhar contorno positivo, sendo isenta de qualquer sanção, quando interpretada como legítima defesa, por exemplo.
O LIVRE ARBÍTRIO NA CULPABILIDADE
A evolução histórico-estrutural, acima citada, fica mais bem visualizada e ganha corpo dentro do instituto da culpabilidade, na forma que o artigo 59 do Código Penal Brasileiro[9] que elenca sete fundamentos estruturantes da culpabilidade: três deles (antecedentes, conduta social e personalidade) voltados à pessoa do agente e as demais se dividindo na análise dos efeitos da conduta (consequência), análise da conduta em si (circunstâncias) e na análise dos antecedentes à conduta (motivos e comportamento da vítima). Sendo assim evidenciado que, apesar de serem consideradas todas as dimensões de valoração do livre-arbítrio, há ênfase no julgamento do agente.
O livre-arbítrio[10] como concepção de decisão – do poder agir de maneira distinta perante a um determinado caso – é, no direito hodierno brasileiro, fator primordial e positivo do conceito de culpabilidade. Sendo assim um juízo de reprovação do ato em concreto previamente tido como típico e antijurídico.
Esta perspectiva ignora por completo todos os fatores exógenos (distintos) do sujeito e sua capacidade de escolha, condicionando-a de forma maniqueísta entre o bom ou mau. O ato delituoso assume a forma de mau, que é evidenciada na conduta do homem médio, ou seja, se pessoas em condições similares agiriam de forma semelhante, e com isso, na possibilidade de agir de maneira diversa, recai sobre o sujeito a punibilidade. São pautas de expectativas de comportamento previsíveis. Exclui-se o livre-arbítrio somente em situações excepcionais, nas quais não fosse possível exigir do sujeito conduta distinta da tomada, sob este espectro moral.
Ainda, esta afirmação de poder agir de maneira distinta, encontra uma limitação a mais em sua demonstração empírica com argumentos levantados pelo determinismo e pela neurociência:
Por exemplo, para Gerhad Roth (2003) a representação tradicional segundo a qual a vontade se transforma em fatos concretos através de uma ação voluntária dirigida por um consciente não é mais do que uma ilusão, devido a que, como, consequência da concatenação da amígdala, do hipocampo e dos nós ventrais e dorsal, a memória emocional da experiência (que trabalha de modo inconsciente) tem a primeira e a última palavra no que concerne à aparição de desejos e intenções, de modo que as decisões adotadas ocorrerem no sistema límbico um dos segundos antes de que possamos percebê-las de modo consciente. Tal sistema atuaria como um aparato de poder organizado, frente ao qual o ser humano se percebe, devido a um autoengano, só de um modo aparente como livre (p. 553).
Por seu lado, Wlfgang Prinz (2004) [...] Diretor do Instituto Max-Planck de Ciências Neurológicas e Cognitivas de Munique, falar de liberdade de vontade desde o ponto de vista da Psicologia é como desde o ponto de vista da Zoologia falar do unicórnio, ou seja, algo que não existe na ontologia da disciplina.
Wolf Singer (2004) incide no mesmo modo na ideia de que as percepções que nós experimentamos como objetivas não são mais que o resultado de processos construtivos (p. 31). Teríamos que aceitar essa premissa da mesma maneira que não temos problemas em reconhecer que o comportamento animal está completamente determinado e que cada ação vem dada necessariamente por uma combinação entre a constelação que origina o estimulo atual e os estados cerebrais imediatamente anteriores, e que por sua vez tais estados cerebrais estão determinados pela organização genética previamente dada do respectivo sistema nervoso, assim como pela multidão de fatores epigenéticos e processos educacionais que modificam a arquitetura das cadeias nervosas, e finalmente, pela história prévia imediata, que “ressoa” na dinâmica da interação neuronal (p.35). (grifei).
Franscisco Rubia é um fiel representante desta corrente. [...] a “revolução reurocientifica”, com seu descobrimento de inexistência do eu e da liberdade de vontade, é a quarta grande humilhação que aguarda a humanidade depois das três previas descritas por Sigmund Freud (1856-1939) no opúsculo Uma dificuldade da psicanálise: a que acabou com o geocentrismo por meio de Nicolau Copérnico (1473-1534), a consumada por Charles Darwin (1809-1882), com sua teoria da evolução, e a do próprio Freud com a descoberta do inconsciente BUSSATO (2014, p.98)[11].
A grande dificuldade em abrir mão dos extremismos metodológicos apontados reside no fato de sua historicidade, na qual a não existência do livre-arbítrio, por sua vez, atentaria contra as bases da civilização ocidental, por possuí-la na imputabilidade agregada à noção de pecado e culpa. Aqui reside a grande dificuldade em se emancipar da tradição punitivista baseada nos cânones teológicos, como visto em Nietzsche (2004), na evolução conceitual do livre-arbítrio. Conceito tal que possui aplicação consagrada no Direito atual, de forma que os preceitos fundantes da culpabilidade elencados no artigo 59 do Código Penal Brasileiro dizem respeito respectivamente: a) circunstâncias, à valorização da conduta em si, o comportamento da vítima e a ideia de valoração moral (do agente) nos motivos; b) consequências, valorando a posterioridade e efeitos da conduta e; c) antecedentes, à conduta social e a personalidade do paciente, que estão voltadas ao agente na visão clássica do livre-arbítrio. Esta construção do conceito atual de culpabilidade, que deveria servir à valoração social circundante do cometedor do ato ilícito perde sua função precípua e dá azo a preconceitos e discriminação na forma de uma culpabilidade do sujeito disfarçada de culpabilidade do ato.
Para Enrico Ferri[12] a consagração da responsabilidade social era afastar a ideia dos clássicos[13] de responsabilidade moral ligada ao livre-arbítrio. A ideia de livre-arbítrio é característica de todos os homens psiquicamente desenvolvidos e mentalmente sãos e, por possuírem este poder de escolha, são moralmente responsáveis por seus atos. Esta responsabilidade possui fundamento na liberdade moral. Por este exposto o criminoso possui responsabilidade penal por ser moralmente responsável, consequência do livre-arbítrio. A crítica de Ferri ao livre-arbítrio consiste na sua impossibilidade de demonstração sob o viés das ciências naturais[14].
Para o autor, a norma jurídica não se destina a indivíduos exclusivos, ou grupos seletos, mas sim de maneira universal dentro da sociedade, originada pelo fato de se viver em sociedade, a obrigação de respeito e acatamento das regras sociais. Estas sendo previstas, ganham o nome de lei. Assim, pode haver a defesa social, o que realmente importa na visão de Ferri:
Se qualquer crime, do mais leve ao mais feroz, é a expressão sintomática de uma personalidade anti-social, que é sempre mais ou menos normal e portanto mais ou menos perigosa, é inevitável a conclusão de que a organização jurídica da defesa social repressiva não pode se subordinar a uma pretensa normalidade ou intimidabilidade ou dirigibilidade do delinquente”, FERRI (2003. p. 232).
Em linhas gerais, esta é a ideia de responsabilidade social de Ferri. Ela apresenta alguma similaridade e também discrepâncias com relação ao Princípio da Coculpabilidade[15], no qual a defesa social vislumbrada sob o prisma das Escolas Positivistas faz referência à defesa dos direitos estatais sob os direitos do Homem – Ferri (2003)[16]. Em linha distinta, o Princípio da Coculpabilidade tende a promove a consolidação dos direitos inerentes ao Homem, bem como, a evidenciação do não cumprimento de tais direitos, mesmo sendo atribuição obrigatória do Estado. Também difere na questão em que a teoria de Ferri se preocupa com a aplicação de normas jurídicas, ao passo que o Princípio da Coculpabilidade preocupa-se com a questão do limite e medida da pena. Porém, como similaridade – mais marcante –, tem-se o fato de que em ambas o Direito Penal é aproximado da realidade hodierna, uma vez que apresentam uma abordagem social do delido e não puramente universalista e abstrata.
A análise da realidade social leva em conta todas as propriedades ambientais e sociais que se está inserido. O Princípio da Coculpabilidade se propõe de mesma forma a uma análise social do delito, sendo este um fato social e, portanto, as condições socioeconômicas não devem ser desprezadas. Dessa forma, feita uma análise do ambiente onde está inserido o indivíduo, há a possibilita de uma forma mais eficaz de individualizar a conduta delituosa. Entendendo que são decisões não são escolhas e que decisões carecem de interpretações de fatos verdadeiras ou falsas, em maior ou menor numero conforme a realidade da conduta e sua comprovação, desta forma vislumbrando a conduta de forma mais abrangente possível, trabalhando-a como fenômeno. Analisando, assim, o delito não sob o único viés retribucionista e ou punitivista, garantista e etc., mas de forma social.
Sobre este aspecto, Munoz Conde demonstra que o ambiente não é fator único na tomada de atitude, porém age de maneira a condicionar e dar azo a determinados fatos:
MUÑOZ CONDE valeu-se do exemplo de que se dependesse de sua vontade, ele gostaria de reger a filarmônica de Nova Yourk, mas não pode fazê-lo pela simples razão de que não possui habilidade suficiente para tanto. Complementou seu exemplo dizendo que Mozart, por outro lado, poderia assumir essa função, pois tinha qualidades inatas, biológicas.
Em reforço ao seu argumento em favor do determinismo, agora num contexto ambiental, MUÑOZ CONDE também se referiu aos jogadores de futebol brasileiros, que possuem habilidade destacada para o esporte, mas se não tivessem nascido aqui e sim na Sibéria, muito provavelmente não seriam jogadores profissionais, assim como, inversamente, também não ocorreria com Mozart, para a música, caso tivesse nascido na Amazônia, tudo em razão do meio ambiente que os condicionaria a seguir outros rumos e desenvolver habilidades. BUSSATO (2014, p. 199).
Destarte, ao tentar classificar uma ação isolada de uma pessoa, ainda que se leve em consideração aspectos trans-temporais, como visto no conjunto fundante da culpabilidade, é insuficiente e enganoso, não somente por se tratar de uma interpretação em si, mas ainda pela falta de elementos interpretativos desvinculados unicamente de aspectos morais. Heidegger (1993) mostra que não há valoração do ser sem interpretação, e esta interpretação deve partir de análises do fenômeno do ser, investigando não só o livre-arbítrio da ação ou seus aspectos morais valorativos antes, durante e depois, mas avaliar a questão existencial do ser no mundo, a partir de seus desdobramentos advindos da pre-sença[17] – seu lugar de manifestação. Esta interpretação do ser deve ser vista como ser-com[18]. De forma que – diante do ate aqui visto – mesmo o ser isolado, a presença é sempre co-presença, sob a perspectiva do subconsciente do algo pensa em mim.
Porém, não contempla o Princípio da Coculpabilidade o determinismo proposto pela teoria de Ferri, tampouco o indeterminismo do livre-arbítrio, pelo fato de que ambos não são respostas adequadas para o Direito Penal. O Determinismo, por negar desde a gênese a liberdade de vontade. O livre-arbítrio, por acredita-lo como ponto de partida para castigar. Ao contrário desta bipolaridade, o Princípio da Coculpabilidade busca o meio termo, uma via alternativa dos extremos do livre-arbítrio de um lado e de outro lado o determinismo.
Neste caminho, a vontade do agente é tida como livre, porém, sofre influência do meio em sentido proporcionalmente contrário a autodeterminação. Sendo, assim, uma vontade viciada, ou contaminada por suas condições de sobrevivência. Leva-se em conta, ainda, o subconsciente e a negligência do Estado. Ficando o poder de escolha relativizado, motivando uma redução na reprovabilidade. Minimizando, ainda mais, os erros de interpretações nas decisões.
FALHA DO DETERMINISMO E DO NEURODETERMINISMO COMO CIÊNCIA PURA
O determinismo puro contempla a perspectiva de que há uma inevitabilidade no agir e, por este motivo, sua vital e inexorável intervenção no direito sem espaço para refutações. Pois tal discurso teria o suporte da verdade absoluta, mesmo com a noção de que esta “verdade absoluta” promoveu ao longo da história graves resultados: a verdade absoluta que serviu de arcabouço justificante de modelos processuais da inquisição, por exemplo.[19]
Neste ponto, a neurociência se preocupa em demostrar seus resultados a fim de influenciar outras áreas, como o Direito Penal, a partir da culpabilidade. Sobre isto não haveria justificativa para o já injustificável sistema prisional retribucionista. Ao invés de pena, deveria haver medida de proteção. Prática presente no ordenamento penal brasileiro[20], também evidenciada por Foucault[21] e Wacquant que, por sua vez – no contexto norte-americano –, explana como instituições que tratavam de pessoas como doentes psiquiátricos, passaram a ser inseridas nas prisões[22].
O determinismo esbarra primeiramente na questão lógica evolutiva em que a escolha racional, distinta do determinismo puro, seria antes uma forma consciente de antecipar resultados não realizados – atuação virtual –, permitindo uma mais eficiente realização ou cometimento de atos a serem realizado[23]. Ainda que, segundo o anteriormente visto, estas escolhas sejam preordenadas no subconsciente, esta assimilação de memórias é fator crucial na evolução social do ser humano.
Contudo, deve-se atentar à problemática evidenciada neste ponto, que reside em uma falácia mereológica, uma vez que a supremacia do cérebro indicaria uma forma pura de conhecimento do agir, utilizando o neurodeterminismo como uma modalidade cientifica hábil de demonstração da verdade[24]. A partir deste pressuposto o cérebro estaria como cerne do agir. Porém, não há como demonstrar o que é proposto, incorrendo na confusão do âmbito empírico com o conceitual. E ao contrário, estudos comprovaram o oposto: o cérebro não está totalmente no controle, apontando arestas inaparáveis para esta teoria. Como uma espécie de eu inconsciente que assume o agir, antecipando-se ao cérebro e a consciência, sendo uma forma de pensar com o corpo, ou com partes inconscientes do cérebro, totalmente aleatórias ao conhecimento cognitivo.
No âmbito da responsabilidade penal, poderia levar a partir as já famosas investigações de Libet (1985-1987) à solução da distinção entre atos voluntários e involuntários, ou, quando menos a modificar nossa compreensão atual de conceitos tão importantes em esquema de imputação de responsabilidade penal como o dolo e por sua vez, o conhecimento ou a intencionalidade. Assim a professora Denno (2002) assinala que de maneira inconsciente cérebros e corpos dos sujeitos detectam informações que seu cérebro consciente não reconhece, o que sugere que a mente consciente não exerce pleno controle sobre ações e percepções individuais. Em termos de Direito penal, tal evidência suporia pôr em dúvida a taxativa dicotomia consciente/inconsciente estabelecida pelo model penal code, assim como a (a seu juízo) simplista lista de estados mentais que estabelece para ilustrar a inconsciência. Pelo contrário, o que deva considerar-se por “consciência” seria algo muito mais complexo e subjetivo BUSSATO (2014, p.325).
Desta forma, consiste a falha do neurodeterminismo – nova forma de determinismo –, ao ver o cérebro como único ente a ser analisado para compreensão da intencionalidade. Sua crítica é relevante e admite que além do cérebro, o corpo também é capaz de detectar informações que o cérebro consciente não reconhece. Sugere, deste modo, uma releitura do problema, consciência/inconsciência. Devendo o assunto ser considerado de maneira mais ampla, sob um viés de complexidade subjetiva BUSSATO (2014, p. 25)[25].