Aspectos do livre-arbítrio:o compatibilismo humanista entre o neurodeterminismo e o indeterminismo

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22/08/2016 às 22:47
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A VIRTUDE (AINDA) ESTÁ NO MEIO (?)

Pode-se dizer que ambos, o indeterminismo do livre-arbítrio e o neurodeterminismo mecânico, são insustentáveis. O livre-arbítrio por partir de pressupostos metafísicos que muito se afastam do conhecimento resultante das ciências empíricas de análise do comportamento humano, modernamente empregando somente conceitos moralizantes, ainda que com revestimentos de cientificidade. No segundo, a complexidade torna o comportamento humano à margem do ideal de liberdade, além de não possuir plenitude, sofrendo provas, também empíricas, de sua incerteza. Sendo temerária e devendo ser meticulosamente analisada por possuir a potencialidade de promover um retrocesso imensurável na política e filosofia moderna. Demonstra-se, porém, que as compreensões pós metafisicas não admitem que no Direito Penal o livre-arbítrio seja tomado como fundamento do castigo. Assim, a noção de liberdade, na perspectiva de subjetividade introspectiva, mostra-se insuficiente como critério de heteroimputação jurídica. Nas palavras de Khaled Jr.:

É preciso reconhecer que a concepção de culpabilidade enquanto baseada no livre-arbítrio de acordo com as premissas modernas é insustentável, independentemente do que propõe a neurociência. Nesse sentido, a neurociência é apenas mais um elemento de descrédito para a concepção de homem da modernidade, o que, todavia, não significa que suas proposições devam ser necessariamente tomadas como "verdadeiras". Há que se ter um espírito de desconfiança em relação ao conhecimento científico; a própria história do pensamento europeu moderno e a elevação da ciência à condição de religião demonstram isso inequivocamente. Não é mais aceitável que o discurso científico seja tomado como verdade e que isso automaticamente invalide todos os argumentos que não preenchem os requisitos da cientificidade. KHALED Jr. (2010).

Neste sentido, a presente pesquisa firma-se no caminho em que o pensamento de ambos os extremos, referentes aos componentes antagônicos da culpabilidade e suas limitações, promovem suficientemente a concepção da dúvida. Esta culmina em uma sensata solução conciliadora baseada no compatibilismo humanista. O compatibilismo, por sua vez, parte de um entendimento entre as ciências empíricas, biológicas e sociólogas, o Direito Penal e o humanismo. Atuando este último a partir do limite daquelas, usando como razão a dignidade do ser humano[26].

Este enfoque considera uma concepção de permeabilidade não funcionalista da ciência penal, opondo-se ao silogismo retribucionista. Busca respostas jurídicas unitárias no sentido de individualização e, portanto, não contraditórias entre si.


O PRINCÍPIO DA COCULPABILIDADE E O COMPATIBILISMO HUMANISTA

Tomar por certo qualquer extremo, indeterminista ou determinista, mostra-se insuficiente perante o abordado até então. O caminho não excludente, no sentido de não negação de toda a construção no âmbito do Direito – baseado na moralidade do livre-arbítrio –, mas complementar apresenta-se favorável, não como resposta definitiva para a questão sobre o fundamento da culpabilidade, mas para lidar de maneira humana com a questão da punibilidade. Não se abre mão do racional e da influência da neurociência, contudo, não se desvincula da moral social, no ponto de qualificar a humanidade como ponte de ligação entre a liberdade e o determinismo, resultando em uma nova forma de lidar com a questão.

A humanidade neste ponto apresenta-se como corolário do Princípio da Coculpabilidade, no sentido de habilitar o instituto a ser parte crucial na busca da Justiça strictu sensu no sentido aristotélico de proporcionalidade (melhor definido abaixo). Vale-se da humanidade como pressuposto da aplicação da pena, uma vez que as dificuldades na transformação da criminalização e da persecução não dependem, em maior medida – como visto –, do Direito em si. Propõe, então, o Princípio da Coculpabilidade uma reforma interna totalmente viável.

Evidentemente que, havendo fatores biológicos favorecendo determinadas habilidades, não há de se negar que o ambiente possui influência direta nas atitudes e com a própria personalidade do sujeito. Não o obrigando diretamente a determinada atitude delituosa, mas agindo de maneira incisiva, providenciando ambiente favorável para seu afloramento. Por óbvio que determinado sujeito não está fadado à vida criminosa por pertencer a um meio precário, porém, é uma concepção romântica acreditar que o ambiente não influi no agir.

Todo ser é antes fruto de seu tempo e um determinado local, estes, fatores de sua história. Este conjunto tempo e espaço agem de maneira direta na autodeterminação. Assim, além de aspectos empíricos, o filósofo alemão, Heidegger demonstra em Ser e Tempo (1993) que os entes são pre-sença no mundo vivido, caracterizados por pre-sença, em determinado tempo e espaço, e que qualquer forma de tentar compreender o ser metafisicamente deve levar em consideração os aspectos da pre-sença, por meio das experiências existenciais de modo fenomenológico – Heidegger (1993, p. 299).


CONCLUSÃO

Perante estas críticas cientificas e filosóficas, tem-se uma meseta no sentido de repensar os conceitos de atribuição da culpa – amplo sensu – e práticas punitivistas. Considerado não somente a escolha de uma pessoa como forma última de juízo e tampouco isentar radicalmente o pressuposto da escolha. Reputando elementos tantos quanto possível para qualquer forma de valorar condutas, principalmente quando estas condutas são de relevância social. Usando para isto de princípios constitucionais já consagrados, outros ainda não tão evidentes como do Princípio da Coculpabilidade e movimentos como o Compatibilismo Humanista.

O que está em debate é a liberdade, e quanto tempo ficará no cárcere uma pessoa, que por mais hedionda possa ser classificada sua conduta, não perde o caráter de humana.


BIBLIOGRAFIA

BUSSATO, Paulo Cesar. Neurociência e direito penal. São Paulo: Atlas, 2014.

FERRI, Eurico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. 2 ed. Campinas: Bookseller, 2003.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Editora NAU, 2003.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte I. Tradução Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 1993.

KHALED Jr, Salah H. O problema da indemonstrabilidade do livre-arbítrio: a culpabilidade jurídico-penal diante da nova concepção de homem da neurociência. Sociologia Jurídica: número 10, Janeiro-julho de 2010.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 1992.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução. Paulo César de Souza. São Paulo: Schwarcz, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2004.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos: a filosofia a golpes de martelo. Tradução Edson Bini e Márcio Pugliese. São Paulo: Hemus, 2001.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução, notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras 2000.

WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. 3ª ed. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.


Notas

[2] NIETZSCHE, 2000, p. 49.

[3] NIETZSCHE, 1992, p. 38; NIETZSCHE, 2000, p. 47.

[4] “Es denkt in mir” A frase em alemão utilizada pelo filosofo para descrever a ilusão de controle racional do pensamento, no livro intitulado Para além do bem e do mal, 1992.

[5] NIETZSCHE, 2001, p. 271.

[6] NIETZSCHE, 2004, p. 89.

[7] NIETZSCHE, 2000, p. 49.

[8] NIETZSCHE, 2004, p. 36.

[9] “Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação do crime [...]” (Código Penal – Decreto Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940).

[10] “[...] o indeterminismo absoluto, ou seja, a ideia de que os acontecimentos não necessariamente correspondem a causas lineares, por processos físicos e biológicos. O indeterminismo tem como central a ideia de livre-arbitrio, cuja origem está claramente associada tanto à filosofia quanto à religião.”

“A ideia de que uma pessoa cosciente age livremente e , por tanto, é responsável pelo resultado derivado causalmente de suas escolhas livres, é o elemento fundante de uma concepção de culpabilidade com nítida raiz religiosa e faz corresponder ao binômio pecado/ penitencia a formula penal da culpabilidade/pena.” (BUSSATO, Paulo Cesar. Neurociência e direito penal. São Paulo: Atlas, 2014. pp. 56-57).

[11] BUSSATO, Paulo Cesar. Neurociência e direito penal. São Paulo: Atlas, 2014. pp. 23-25.

[12] Enrico Ferri foi um criminologista e político socialista italiano, é considerado um dos fundadores da Escola Italiana de Criminologia Positivista.

[13] Inclusive as autores defensores do Direito Penal humanitário influenciados pelo ideário iluminista com autores como Beccaria, Bentham e Carrara.

[14] Fato que decorre da Escola Positivista, junto com o empirismo, método indutivo e por fim o determinismo, qual Ferri é um dos maiores influentes.

[15] “Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado dessa maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma “co-culpabilidade”, com a qual a própria sociedade deve arcar. (ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 580)”.

[16] “Já que esta necessidade de defesa social – afirmada, desde os inícios da Escola positivista, em nome dos direitosdo Estado perante os direitos do homem – se tem sempre cada vez mais imposto, sobre tudo devido à bacarrota dos sistemas penais clássicos [...]”. (FERRI, Eurico. Princípio de direito criminal: o criminoso e ocrime. 2ª ed. Campinas: Bookseller, 2003 p. 238).

[17] HEIDEGGER, 1993, p.68-69.

[18] Mitsein (ser com), HEIDEGGER, 1993, p. 318-319.

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[19] Foucault alerta para o demasiado perigo em correlacionar verdade e poder, quando tratar do inquérito como forma legítima do saber. “O inquérito não é absolutamente um conteúdo, mas a forma de saber. Forma de saber situada na junção de um tipo de poder e de certo número de conteúdos de conhecimentos. Aqueles que querem estabelecer uma relação entre o que é conhecimento e as formas políticas, sociais ou econômicas que servem de contexto a esse conhecimento costumam estabelecer essa relação por intermédio da consciência ou do sujeito de conhecimento. Parece-me que a verdadeira junção entre processo econômico-político e conflitos de saber poderá ser encontrada nessas formas que são ao mesmo tempo modalidades de exercício de poder e modalidades de aquisição e transmissão do saber. O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder”. (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Editora NAU, 2003. pp.77-78).

[20] Arts. 97 e 98 do Código Penal - Decreto Lei 2848/1940

[21] “Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizerem os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer.

Assim, a grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noção de periculosidade dignifica que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtudes de comportamento que elas representam”. (FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Editora NAU, 2003. p. 85).

[22] WACQUANT, 2000, p. 177.

[23] “[...] a explicação oferecida por Delgado García, no sentido de que a capacidade interna de simular atos não realizados consistiria em uma forma de poupar a energia gasta em realiza-los de modo frustrado. Possivelmente, a energia despendida nas tentativas e erros sucessivos até que se chegue ao resultado almejado tendereia a conduzir à ampliação progressiva – pelo cansaço – das chances de não alcançar o resultado. Por outro lado, a capacidade de consciência para a tomada de decisões, antecipando mentalmente um resultado não realizado, seria energeticamente uma postura econômica, permitindo uma maior possibilidade de efetividade na realização efetiva do empreendimento”. (BUSSATO, Paulo Cesar. Neurociência e direito penal. São Paulo: Atlas, 2014. pp. 63-64).

[24] “Como enfrentar o problema? Ao que parece há aqui uma falsa alternativa: de um lado, o determinismo da neurociência que afirma a inexistência absoluta de livre-arbítrio humano, o que não parece aceitável; e de outro lado, na universalização (também determinista, pois ignora a particularidade existencial e irredutível de cada homem individualmente considerado) de uma liberdade enquanto tal para o conjunto dos homens, que se funda nas premissas do homem racional moderno e é essencialmente metafísica. Por ser metafísica ela não precisa (e não pode) ser demonstrada (ou sequer ser sustentada argumentativamente de forma satisfatória). Ou seja, é uma liberdade pura e simplesmente tomada como dada, como inerente aos homens enquanto seres racionais que por natureza são. De acordo com Cirino dos Santos, a estruturação de uma culpabilidade com base na teoria do poder de agir de outra maneira se desdobra em duas vertentes: a perspectiva concreta e a perspectiva abstrata. Na variante concreta, o poder de agir atribuído ao autor individual é indemonstrável e na variante abstrata, o poder de agir diferente é a atribuído a qualquer outra pessoa no lugar do autor, fazendo com que a reprovação não incida sobre o autor, mas sobre uma pessoa imaginária no lugar do autor. Em ambos os casos, há uma suposição: ou dirigida diretamente ao autor, ou indiretamente através de um padrão de comportamento exigível ao homem racional naquele caso concreto. Não há como não reconhecer que os argumentos utilizados para fundamentar essa concepção não escondem a sua fragilidade”. (KHALED Jr, Salah H. O problema da indemonstrabilidade do livre-arbítrio: a culpabilidade jurídico-penal diante da nova concepção de homem da neurociência. Sociologia Jurídica: número 10, Janeiro-julho de 2010. cap. 3.).

[25] “Nos mencionados experimentos de Libet, sobre os quais se realizaram números estudos posteriormente (Sinnotte-Armstrong/Nadel (Ed.), 2010), Libet pedia aos sujeitos submetidos à prova que movessem a mão enquanto media a atividade elétrica do cérebro, descobrindo que os impulsos do sujeitos associados ao movimento começavam aproximadamente um terço de segundo antes de que os sujeitos estivessem conscientes de sua intenção de fazer o movimento. (BUSSATO, Paulo Cesar. Neurociência e direito penal. São Paulo: Atlas, 2014. pp. 25-26.

[26] “As consequências do compatibilismo humanista [...]:

a) Em caso de que novos conhecimentos empíricos, obtidos, por exemplo, através das modernas técnicas de neuroimagem, demostrem que se vinham impondo penas em casos nos que agora sabemos que a conduta delitiva se devia a déficits cerebrais, isso deve ser tido em conta a favor do autor. Em particular é muito provável que os novos conhecimentos deem lugar a uma ampliação dos casos de inimputabilidade e semi-imputabilidade (Feijo Sánchez, 2011, 39).

b) qualquer medida que se pudesse adotar como alternativa ao castigo tradicional, em todos os casos mencionados anteriormente, deveria respeitar sempre os mesmos limites e garantias materiais e processuais que amparam os sujeitos considerados culpáveis no marco do Estado de Direito.” (BUSSATO, Paulo Cesar. Neurociência e direito penal. São Paulo: Atlas, 2014. pp. 41-42).

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Sobre o autor
Herson Alex Santos

Acadêmico de Direito, da Faculdade de Direito (FADIR) da Universidade Federal do Rio Grande-FURG/RS, quinto ano, estagiário do Serviço de Assistência Judiciária Social: [email protected]

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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