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O Sétimo Mandamento do Decálogo do MPF: desamparar a defesa no processo penal

05/09/2016 às 15:05
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Alterar o ônus da prova do fato processual de prejuízo nas nulidades implica em aniquilar as garantias da defesa criminal, o que será esmiuçado a seguir.

Após atravessar o Mar Vermelho, o profeta Moisés recebeu de Deus, em tábuas de pedra, os Dez Mandamentos. Tendo em vista serem em 10 as medidas contra a corrupção propostas pelo MPF, quer parecer que se inspiraram no segundo patriarca depois de Abraão.

Examinaremos a proposta que diz respeito ao instituto das nulidades.

No sítio do MPF, na internet, na apresentação da proposta relativa às nulidades, lê-se que é preciso "estabelecer a necessidade de demonstração pelas partes do prejuízo gerado por um defeito processual, à luz de circunstâncias concretas".

É sugerida a redação que segue para o artigo 564, parágrafo 2º, do CPP: "O prejuízo não se presume, devendo a parte indicar, precisa e especificadamente, e à luz de circunstâncias concretas, o impacto que o defeito do ato processual teria gerado ao exercício do contraditório ou da ampla defesa.”

Consta da Justificativa deste dispositivo no item 5:"Impossibilidade de presunção de prejuízo, exigindo-se que as partes demonstrem especificamente, à luz de circunstâncias concretas, o impacto que o defeito dos atos processuais tenha gerado ao exercício dos seus direitos constitucionais. É muito comum ver nas fundamentações de invalidação afirmações de que, naquele caso, o “prejuízo se presume. A lógica do processo contemporâneo é de aproveitamento dos atos e que as nulidades sejam sempre excepcionais. Portanto, a invalidação não pode ser tendencial ou presumida. Para invalidar um ato deve-se exigir alegação e demonstração concreta.".

Resumindo, o prejuízo, segundo o ato mandamental de número sete, deve estar provado para que a nulidade seja declarada. O MPF não admite nem o prejuízo presumido nem o potencial (o duvidoso).

Ao ser aprovada pelo Legislativo essa proposta, cai por terra o direito de defesa no processo penal. O enunciado constitucional da ampla defesa perde sua proteção, fica desamparado, pois é justamente o instituto das nulidades que assegura sua vigência e eficácia. Aliás, não só da ampla defesa, mas de outros princípios fundamentais também, pois que a finalidade última das nulidades é assegurar a efetividade dos princípios gerais de direito processual penal. Contraditório, duplo grau de jurisdição, devido processo e outros, todos jogados ao abandono e ao desabrigo.

É através das nulidades que as partes resguardam e protegem seus direitos processuais. Algumas normas, quando violadas, importam na aplicação de sanção. A sanção de nulidade é a que fulmina o ato violador de direito da parte realizado com inobservância das condições de modo e tempo. Os casos de nulidades não devem ser restringidos, pela lei ou pela doutrina, mas, sim, evitados pelo juiz.

Segundo a proposta sétima, o prejuízo presumido não pode ser admitido para a declaração de nulidade. Se assim for, quando a denúncia não descrever o fato imputado ao acusado, não haverá nulidade, salvo se for demonstrado prejuízo. Se à sentença condenatória faltar motivação, não haverá nulidade, salvo se o acusado provar prejuízo. O acusado deverá provar prejuízo se faltar auto de necropsia, se testemunhas da acusação forem inquiridas depois das testemunhas da defesa, mesmo que essas e aquelas deponham sobre o fato descrito na inicial, se essas testemunhas não forem intimadas e não comparecerem, se for negado pedido de produção de determinada prova, se forem negados quesitos ofertados pelo acusado para submissão à perícia, se o réu for preso no curso do processo e não for requisitado para ser interrogado e por aí afora. Ou seja, em todas essas hipóteses violadoras de direito da parte deverá ser feita a prova - na maioria das vezes, impossível - da existência de prejuízo.

É conhecimento e princípio elementar do direito processual que a falta de atos essenciais do processo (ou de requisito de existência desses atos) resulta em presunção de prejuízo. São as nulidades absolutas. Não se pode colocar por terra este postulado fundamental que, por todos os tempos, sempre foi albergado pela doutrina e pela jurisprudência.

No que toca ao prejuízo duvidoso, é preciso esclarecer que o princípio"in dubio pro reo"não se aplica somente aos fatos em que incide a lei penal (a ocorrência de fato típico, a autoria, a legítima defesa, por exemplo, são fatos cuja incidência está afeta à lei penal). Incide sobre todos os fatos de relevância para a justiça criminal, sejam substanciais ou processuais.

Exemplo de fato sobre o qual incide a lei processual penal (fato de relevância processual) e sobre o qual é aplicável o princípio"in dubio pro reo"é o elemento prejuízo necessário para a declaração de nulidade processual.

Naquele momento em que o juiz julga acerca da declarabilidade ou não da nulidade do ato processual, e há dúvida quanto à existência de prejuízo real, estará diante do chamado prejuízo potencial, duvidoso, possível. A ele se opõe o prejuízo efetivo, aquele que material e efetivamente se verifica. A nulidade é, por conceituação, uma omissão. Por ser omissão (de ato ou de formalidade), torna-se difícil, ou impossível, afirmar que não houve prejuízo. Isso só seria viável caso se comparasse o processo do ato não realizado com o processo do ato realizado. Ora, isto, do ponto de vista da realidade jurisdicional, é inviável. Desta inviabilidade fica-se em dúvida quanto à existência de prejuízo.

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Se por hipótese fosse designada uma reunião de diretoria de uma empresa para se chegar a uma decisão estratégica sobre determinado assunto, com a convocação de cinco diretores, e um deles faltando, se chegasse à conclusão X. Tendo faltado um dirigente, a conclusão X foi a acertada ou não? Há como determinar se houve prejuízo? Não há. E não há porque não dá para comparar a reunião realizada com quatro diretores com a não realizada com cinco. Fica-se em dúvida. É o prejuízo potencial ou duvidoso.

Considerando que a verificação do prejuízo diz respeito à valoração de provas, e que o princípio" in dubio pro reo "é aplicável também aos fatos de natureza processual, há de ser aplicado quando a nulidade de prejuízo duvidoso for favorável à defesa. O princípio" in dubio pro reo "significa que se o juiz estiver em dúvida fato ocorreu ou é de uma determinada maneira, com exclusão de outra, deve decidir que tenha ocorrido ou é da forma que se apresentar mais favorável ao réu.

A questão é de relativa complexidade. Mas cremos tê-la simplificado.

Poderíamos prosseguir. Prosseguir dizendo que o velho princípio Pas de nullité sans grief não significa que não se declara a nulidade se não for demonstrado o prejuízo, e sim que o prejuízo reside no interior da nulidade. " Pas de nullité sans grief "significa exatamente e só aquilo o que significa: não há nulidade sem prejuízo. Assim como não há fogo sem calor. Como não há água sem umidade. O calor é inerente ao fogo assim como a umidade à água. O prejuízo não está fora da nulidade. Sair à procura de prejuízo da nulidade como se ele, o prejuízo estivesse fora dela, e não dentro, é colocar a mão no fogo para verificar se queima, ou na água para comprovar se está molhada. O prejuízo está na nulidade como a imputação na denúncia, como as indagações no interrogatório, como a imparcialidade no juiz, como a fundamentação na sentença, como pedido de reforma no recurso. Mas isso tudo é outro capítulo. Sobre o tema, remetemos o leitor ao nosso CPP Comentado, o qual se encontra na internet, especificamente às anotações ao artigo 563.

 

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Sobre o autor
Flavio Meirelles Medeiros

Flavio Meirelles Medeiros Autor da obra Código de Processo Penal Comentado: https://flaviomeirellesmedeiros.com.br/ formou-se Bacharel em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1982. Durante o curso universitário foi Chefe do Departamento de Direito Penal do SAJUG e Monitor da Cadeira de Processo Penal. Foi professor na Faculdade de Direito da Pontifície Universidade Católica e na Faculdade de Direito da UNISINOS, sendo que na primeira exercia o cargo de Advogado-Instrutor do Serviço de Assistência Judiciária Gratuita e na segunda lecionou na Cadeira de Processo Penal. Foi Diretor Adjunto do Departamento de Direito Penal do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, Membro da Comissão de Direito Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Membro da Comissão de Defesa e Assistência da Ordem dos Advogados do Brasil e Assessor Jurídico do Procurador-Chefe da República no Rio Grande do Sul . É Membro Efetivo do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul desde 1983. Advogado desde o ano de 1982. Publicações (livros): - Nulidades do Processo Penal Editora Síntese 1982 - Princípios de Direito Processual Penal Editora Ciências Jurídicas 1984 - Noções Iniciais de Direito Processual Penal Editora Ciências Jur¡dicas 1984 - Primeiras Linhas de Processo Penal Editora Ciências Jurídicas 1985 - Manual do Processo Penal Editora Aide 1985 - Empréstimos de Custeio e Investimento Agrícola Editora Livraria do Advogado 1991 - Do Inquérito Policial Editora Livraria do Advogado 1994 - Da Ação Penal Editora Livraria do Advogado 1995 - Publicações (Artigos doutrinários): Princípios de Direito Processual Penal. Noções Direito & Justiça 1983 - A Relação Jurídica Processual e Temas Afins Direito & Justiça 1984 - Dificuldade de Atuação dos Limites Jurídicos a Livre Convicção. Revista dos Tribunais 1994 - vol. 710

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Flavio Meirelles. O Sétimo Mandamento do Decálogo do MPF: desamparar a defesa no processo penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4814, 5 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51608. Acesso em: 23 abr. 2024.

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