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Anencefalia e aborto

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1.A despeito das reflexões que faço alhures sobre a falta de definição legal do aborto e as implicações disso perante a Constituição Federal, quero, agora, enfrentar uma questão de viva atualidade, qual seja a punibilidade ou impunibilidade do aborto do feto anencefálico.

2. Como se sabe o feto anencefálico, isto é aquele que é privado de encéfalo (de cérebro, especificamente) e, por isso, como é evidente, é destituído de atividade cerebral, goza de vida (vegetativa) intra-uterina que o permite, em raras vezes, evoluir, chegar a termo e nascer, embora, após pouco tempo, venha, fatalmente, a morrer clinicamente, o que se dá com a completa e irreversível parada cardiorrespiratória.

3. Pergunta-se, então: - é punível o aborto do feto anencefálico?

Aprende-se nos bancos das Faculdades de Direito que a viabilidade do produto da concepção não é requisito para a proteção penal da gravidez. Não se o admite, salvo os casos de degeneração fetal (gravidez molar e litopédica) ou de certas formas de gravidez ectópica (isotópica e, principalmente, heterotópica), senão nos casos admitidos pela lei (aborto terapêutico e sentimental). Não há condescendência para o aborto eugênico nem para o social ou econômico. O aborto racial então, como não podia deixar de ser, é punível até como forma de genocídio.

4. Tomei conhecimento, certa feita, do caso de uma mulher grávida de feto anencefálico, que pediu, a um juiz criminal, autorização para a interrupção da gravidez, o que lhe foi negado sob o argumento já apontado, de que a inviabilidade do feto não descaracteriza o delito de aborto.

5. Diga-se, a propósito, que há muito venho estranhando a reiterada apresentação de pedidos dessa natureza. Há médicos que ingressam em juízo, solicitando autorização para efetuarem transfusão de sangue em paciente necessitado, mas fiel a certas religiões que a proibem. Há, até pedidos de autorização para o hoteleiro reter a bagagem de hóspedes inadimplentes! Estranho o procedimento e o repudio por duas razões: desnecessidade de ingressar em juízo e incompetência do juiz para decidir a respeito do assunto.

6. O pedido deduzido em juízo é desnecessário, uma vez que as faculdades jurídicas podem ser exercidas espontaneamente, decorrendo a autorização para isso não do entendimento do juiz, mas da própria lei. Assim, tais pretensões apresentadas à Justiça são tão absurdas como a que o agredido apresentaria para agir em legítima defesa, ou a do policial para prender um infrator em flagrante delito, ou, ainda, a do médico para praticar o aborto a fim de salvar a vida da gestante. Além do mais, a ingerência do judiciário na vida do cidadãos deve ser a mínima necessária, o que desaconselha o alargamento das atribuições do Juiz e do Ministério Público, cuja audiência será sempre requisitada.

7. Por outro lado, penso que ao Juiz Criminal falta competência material para julgar as situações apontadas pois, em matéria de delito, a ele só cabe pronunciar-se após a ocorrência do fato, quando, aí sim, decidirá, reconhecendo ou não a licitude do procedimento do sujeito agente.

8. Mas, voltando ao tema proposto, penso que, à luz de um fundamento ético, não deve ser proibido o aborto do feto anencefálico. Não se pode obrigar uma mulher a suportar, desnecessariamente e por longo tempo, os riscos e o peso, moral e físico, de uma gestação, cujo produto nem resistirá a seu próprio nascimento.

9. A esse fundamento ético soma-se outro, desta feita de natureza técnico-jurídica e ligado à hermenêutica no que toca a seu elemento sistemático.

A interpretação meramente isolada de um dispositivo legal, por ser uma tarefa pouco elucidativa, não produz resultado satisfatório. Ela deve realizar-se de modo comparativo e histórico-evolutivo, mesmo porque a dinâmica social impõe, a todo momento, o aparecimento de novas normas, cujo conteúdo pode vir ao encontro do desejo de soluções mais justas e mais adequadas à situação.

10. E foi assim que cheguei ao entendimeto que nega a punibilidade (por ausência de tipicidade) do aborto do feto anencefálico. Essa resposta é obtida, à luz da sistemática jurídica, em consonância com o exame da legislação pertinente à remoção e transplante de órgãos de cadáveres humanos. Evidentemente, essa atividade só é permitida desde que constada a morte do doador. O conceito de morte, todavia, não é tranquilo e pacífico. Há dois conceitos de morte, cada um dos quais apresentando uma série infindável de requisitos para seu reconhecimento: morte encefálica e morte clínica. Na morte encefálica ou, simplesmente, morte cerebral (apesar de o encéfalo não conter apenas o cérebro) consiste na cessação da atividade elétrica desse principal órgão do corpo humano, que se caracteriza pelo traçado permanentemente nulo do EEG. Já a morte clínica tem um conceito mais rígido, exigindo, mais, a parada irreversível da atividade cardíaca. A esse último conceito aderiu a Lei nº 5.479/68, que versava sobre remoção e transplante de órgãos, ao elencar, em seu art. 5º, § lº, os seguintes requisitos para a afirmação do óbito: ausência de atividade cerebral, comprovada pelo traçado absolutamente linear do eletroencefalograma, e ausência de batimentos cardíacos por mais de cinco minutos. Já a lei vigente - Lei 9.434/97, posicionou-se diferentemente, ao adotar o primeiro conceito, o de morte cerebral ou encefálica, para autorizar a retirada, post mortem, de tecidos, partes e órgãos do corpo humano destinados a transplante ou tratamento.

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11. Penso que o verdadeiro conceito de morte é o de morte clínica, quando, então, se dá a parada irrecuperável do coração e o corpo se torna verdadeiramente um cadáver (carne dada aos vermes). Entrementes, a adoção do conceito de morte encefálica justifica-se pelas necessidades atuais da medicina. Todavia, posso prever certos questionamentos que daí poderão advir. Eis alguns:

12. Qual será a data da morte, indicada no atestado de óbito? A data da parada cerebral ou da parada cardíaca, coincidente esta com a retirada do órgão vital? O morto cerebral já se considera um cadáver? Poderá ser vítima de algum crime, como homicídio, lesão corporal ou furto? E como ficará sua posição perante o direito sucessório? Com a morte encefálica, abre-se a sua sucessão? Ou nesse estado, poderá receber herança para depois transmiti-la a seus herdeiros? Vamos supor que um descendente do morto cerebral venha a morrer antes da morte clínica dele. Quem herda de quem? O morto cerebral herdaria do filho e depois transmitiria os bens aos seus próprios herdeiros? Ou, ao contrário, seria o filho, que antes já herdara do pai (morto cerebral), que, ao morrer, transmitiria os bens a seus herdeiros?

13. Ora, penso que essas e outras questões devem ser respondidas em consonância com os termos da legislação vigente que, como se viu, optou, de forma cristalina e indubitável, pelo conceito encefálico de morte. Nem se diga que tal posicionamento só seja válido para os fins de transplante e tratamento. Caso contrário, um tiro desferido sobre o morto cerebral seria homicídio, mas não a retirada do seu coração para fins terapêuticos.. O direito não é um sistema harmônico?

14. Assim sendo, voltando novamente ao tema, tem-se que, à luz da legislação brasileira, o feto anencefálico é um morto cerebral que, se chegar a termo, só está a espera do nascimento para morrer clinicamente. A gravidez, então, pode ser interrompida sem os contrangimentos da ameaça penal. Por sinal, diga-se que os órgãos do produto da intervenção podem, sem nenhum impedimento, ser aproveitados para fins de transplante ou tratamento.

15. Dogmaticacamente, a razão da impunibilidade do aborto do feto anencefálico - que é um morto cerebral, prende-se à ausência de tipicidade, fundada em três causas: falta de objeto jurídico, falta de sujeito passivo próprio e falta de objeto material. O fato não é mais do que um quase-crime, na modalidade de crime impossível.

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Sobre o autor
Dílio Procópio Drummond de Alvarenga

professor aposentado de Direito Penal na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVARENGA, Dílio Procópio Drummond Alvarenga. Anencefalia e aborto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 324, 27 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5167. Acesso em: 7 nov. 2024.

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