5. NATUREZA JURÍDICA DO B/L E OUTRAS CONSIDERAÇÕES
Posto isto, passa-se, neste momento, a enfrentar a questão principal deste texto, vale dizer: a delimitação da natureza jurídica do B/L. Com efeito, quando se indaga qual é a natureza jurídica de determinada instituição, instituto, categoria ou figura jurídica — enfim dos modelos jurídicos (REALE, 2002, p. 74) — deve-se perguntar qual é o seu significado, sentido e alcance para o mundo jurídico.
Sobre a temática, afirma Maria Helena Diniz (2005, v. 3, p. 381) que o verbete natureza jurídica significa o fim último dos institutos do Direito, bem como a comunhão que determinadas figuras jurídicas ostentam, em diversos pontos, com as categorias jurídicas mais amplas, cujo relevo é evidente em termos classificatórios, didáticos e cognoscitivos. Desta maneira, ao se objetar qual é a natureza jurídica do B/L, a resposta a ser encontrada na literatura específica há de ser esclarecedora quanto à conformação jurídica e classificatória desta figura jurídica. Deve esclarecer qual é o regime jurídico a que este modelo normativo se submete.
Com aporte na literatura de Direito Marítimo, tem-se que o B/L apresenta tripla natureza jurídica. Assim, fala-se que o B/L é, concomitantemente, a prova escrita do contrato de transporte internacional de cargas pela via marítima; recibo de entrega dos bens pelo embarcador ao transportador e, finalmente, título de crédito. No entanto, há que se advertir que tal entendimento se aplica apenas ao contrato de transporte marítimo — próprio do segmento liner, haja vista que o contrato de fretamento marítimo — inerente à navegação tramp — formaliza-se com a emissão da charter party ou carta-partida (CP).
Nesta última hipótese — contrato de afretamento —, é crucial esclarecer que, além da expedição da CP, a emissão do B/L também é obrigatória, ao qual é atribuído a denominação charter party bill of lading. Contudo, este B/L sui generis tem fim unicamente representativo, de modo a representar o recebimento da mercadoria. Logo, não é um título de crédito e, tampouco, evidência escrita do contrato de fretamento, que se representa apenas pela CP (MARTINS, 2005, p. 276-278).
Ainda no que concerce às finalidades do conhecimento de frete marítimo, lecionam Anjos e Gomes (1992, p. 218):
Um conhecimento tem as seguintes funções: 1) é um recibo de mercadorias, isto é, prova que as mesmas foram embarcadas ou foram recebidas para serem embarcadas em determinado navio; 2) prova a propriedade das mercadorias nele descritas; e 3) serve como evidência dos termos e condições do transporte acordados entre o armador e o embarcador.
Ao referir-se às funções do conhecimento de frete marítimo, o mencionado Christopher Hill arremata:
The negotiable bill of lading serves three different purposes. It is (a) a receipt for the goods on board; (b) best available evidence of the contract of carriage; and (c) a document of title. […] The bill of lading is evidence (only) of the contract of carriage. It is never the contract. A simple practical reason why it is not, as is a charterparty, is that it is only signed by one party – the Master, as agent for the owner, or somebody representing the carrier. (2003, p. 143)
Para reforçar o raciocínio acima expendido, que diferencia a charter party bill of lading e o bill of lading inerente ao transporte internacional, é relevante frisar que:
Nos fretamentos por viagem também é emitido o conhecimento. Pode ocorrer que uma cláusula seja conflitante com outra da carta partida. Neste caso observam-se as seguintes regras: 1. As cláusulas escritas ou datilografadas têm predominância sobre as impressas; 2. Em caso de conflito de duas cláusulas da mesma natureza, isto é, escrituradas, datilografadas ou ambas impressas, valerá a estipulação do conhecimento, visto ser este documento sempre preparado após a carta partida. (ANJOS; GOMES, 1992, p. 223).
Vê-se, com nitidez, que apenas o B/L emitido a partir do contrato de transporte marítimo internacional é que apresenta esta “tríplice” natureza jurídica. Confira-se, com relação ao contrato de fretamento de embarcações e à emissão da CP, a redação do artigo 56610 Código Comercial, que reclama prova escrita para a formalização do contrato de fretamento de embarcações. Quanto aos requisitos da carta-partida, estes estão descritos no artigo 56711 da citada Lei Comercial.
No entanto, do ponto de vista técnico, deve-se fazer o registro de que esta noção de triplicidade diz respeito muito mais às finalidades do conhecimento marítimo do que à sua natureza jurídica. Constata-se, maxima data venia, que o B/L tem apenas uma natureza jurídica: a de título de crédito. Está sujeito, evidentemente, ao regime jurídico-cambial. Salvo melhor juízo, a afirmação de que o B/L é um recibo ou prova de propriedade de mercadorias não revela, com precisão, qual é o regime jurídico a que este documento se submete, embora revele as funções deste. Só para ilustrar, os doutrinadores estrangeiros citados (Fariña e Hill) apresentam as mesmas posições quanto às finalidades do conhecimento marítimo, o que é repetido, sem muita reflexão, pela doutrina brasileira e rotulado como “natureza jurídica”.
Nos termos do disposto no artigo 57712 do Código Comercial, o B/L é documento de emissão obrigatória pelo transportador e assinado pelo comandante do navio. Além disso, reveste-se de natureza de escritura pública, pela dicção do artigo 58713 deste mesmo Regramento, sendo que os requisitos do conhecimento de transporte marítimo se encontram descritos no artigo 57514 do citado Código Comercial.
Com efeito, no B/L é que serão consignadas os elementos atinentes ao contrato de transporte internacional de mercadorias, os termos das condições acordadas entre as partes contratantes e delineadas nos campos a serem preenchidos nos formulários (MARTINS, 2008, p. 266). Eis mais um caractere revelador da importância deste documento para o comércio marítimo de cargas.
No que respeita às demais considerações importantes sobre o B/L, destaca-se: “No verso do BL estão delineadas as cláusulas que retratam as condições do transporte. Destacam-se, em essencial e pela relevância, a cláusula “paramount” de legislação aplicável, a cláusula de competência jurisdicional, cláusulas limitativas e/ou exonerativas de responsabilidade do transportador marítimo durante o transporte, cláusulas de avarias grossas, entre outras.” (MARTINS, 2008, p. 267).
A propósito, é válida a menção aos artigos 55415, 55516 e 55617, todos do Decreto n° 6.759 de 2009, que institui o Regulamento Aduaneiro em vigor, os quais regulamentam o artigo 4618, caput, do Decreto-Lei n° 37 de 1966, o qual estrutura o imposto incidente sobre a importação, organiza os serviços aduaneiros e impõe direitos e deveres aos operadores e demais intervenientes nas operações de Comércio Exterior. A título ilustrativo, cita-se que o Decreto n° 6.729 de 2009 denomina esta figura jurídica de “conhecimento de carga”.
Convém, ainda, gizar que o conhecimento de frete não se confunde com o manifesto de carga. Trata-se de figuras jurídicas distintas, embora cruciais para as operações de comércio internacional. O manifesto de carga é o documento de emissão obrigatória ao responsável pelo veículo transportador, seja qual for a modalidade de transporte: marítimo, aéreo ou terrestre, nos termos do artigo 39 do Decreto-Lei n° 37 de 1966. Deverá conter a relação dos produtos que se encontram carregados na embarcação, quando da chegada ou partida desta dos territórios aduaneiros.
5.1. FORMAS DE TRANSMISSÃO DO B/L
Em geral, no que tange à transmissibilidade dos títulos de crédito, fala-se que eles podem assumir três modalidades: (i) nominativos à ordem; (ii) nominativos não à ordem; e (iii) ao portador.
Nas palavras de Rubens Requião (2012, p. 469. e segs.), título ao portador é aquele em que não é feito o registro do beneficiário e no qual há a inclusão da cláusula “ao portador” ou consta em branco o nome do seu beneficiário. Título nominativo é a cártula emitida em benefício de pessoa determinada. Vale dizer: nele fica expresso quem será o beneficiário e titular do documento (art. 921. do Código Civil de 2002). Segundo este doutrinador, o título nominativo só admite o endosso em preto, ou seja, mediante a anotação nos livros comerciais do emitente. Por sua vez, o título à ordem é o expedido em prol de pessoa certa, porém, admite o simples endosso.
Como lembra Rubens Requião (2012, p. 471)
Se a um título de crédito nominativo for inserida pelo emitente a cláusula à ordem, o título perde a sua natureza de puro título nominativo, para adotar a segunda forma, passando então a circular pelo endosso. Se o endosso for em branco, sua circulação pode prosseguir como se fora simples título ao portador.
Por sua vez, Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 449) assevera, no que atine à circulação cambial, que os títulos poderão ser ao portador ou nominativos, de forma que os nominativos poderão ser “à ordem” e “não à ordem”. Porém adota entendimento diverso de Rubens Requião quanto as cambiais nominativas não à ordem que, na sua forma de pensar, somente se transmitem pela cessão civil, e dissocia o título não à ordem. Nas palavras do supracitado autor,
A diferença entre elas reside no ato que opera a circulação do crédito. Os títulos ao portador não ostentam o nome do credor e, por isso, circulam por mera tradição; isto é, basta a entrega do documento para que a titularidade do crédito se transfira do antigo detentor da cártula para o novo. Os nominativos à ordem identificam o titular do crédito e se transferem por endosso, que é o ato típico da circulação cambiária. Os nominativos não à ordem, que identificam o credor, circulam por cessão civil de crédito. Registro que a classificação aqui apresentada, relativa à circulação, não coincide com a que se encontra na doutrina em geral. De fato, usualmente se distinguem os títulos à ordem dos nominativos, embora com a ressalva de que os dois ostentam o nome do credor. Para a doutrina tradicional, repetindo as lições de Vivante, os nominativos circulariam por meio de documento de transferência ou registro em livro do emitente. Seria o caso das ações de sociedades anônimas. (COELHO, 2012, p. 449).
Por seu turno, a doutrina catalã contém clara e expressa referência teórica a respeito das modalidades de transmissão do conhecimento de frete marítimo. Não é à toa que Francisco Fariña, em obra clássica, pontifica:
El conocimiento puede emitirse al portador, a la orden o a nombre de persona determinada. Los extendidos al portador se transmiten por la entrega material del documento; los extendidos a la orden, em virtud de endoso. El ambos casos aquel a quien se transfiere el conocimiento adquiere todos los derechos del cedente o endossante sobre las mercadorias. Si se trata de um conocimiento nominativo, las mercancías solamente pueden ser entregradas la persona que resulte ser la designada. Su transmisión requiere las formalidades de cesión que determinan las leys civiles, notificándolo al capitán; por estas complicaciones apenas se usa esta forma. El más frecuente, por compaginar las seguridades com la facilidad de negociación, es el extendido a la orden. Gracias a la cláusula a la orden o al portador, el conocimiento es um poderoso instrumento de crédito. (1954, v. II, p. 329).
Em conclusão, o B/L aceita as três modalidades de transmissão creditícias. A lembrar, são elas: nominativa à ordem, não à ordem e ao portador. Fica o registro de que a forma de transmissão “não à ordem” é a mais restritiva, haja vista que depende de cessão civil. Em face do que foi dito, ao admitir-se que o B/L é, também, um título de crédito, pergunta-se se é ele um título de crédito próprio ou impróprio.
5.2. TÍTULO DE CRÉDITO IMPRÓPRIO
A doutrina jurídica apresenta a tipologia segundo o qual os títulos de crédito podem ser próprios ou impróprios. Impróprio é o título de crédito que não tem por lastro uma operação de crédito. Apesar disso, é um documento apto à circulação, por apresentar algumas das características do título de crédito próprio. De outra banda, reputa-se próprio o título de crédito perfeito que materializa uma operação real de crédito e está desvinculado de sua causa. (DINIZ, 2005, v. 4, p. 692. e 696).
“A função primitiva do conhecimento de carga ou conhecimento de transporte, como bem observa o Prof. Waldemar Ferreira, era a de simples documento comprobatório do recebimento, por empresa de transporte, da carga, a fim de entregá-la no lugar de destino. Posteriormente, por necessidade do comércio, esse documento comprobatório evoluiu para se tornar título de crédito, representativo da mercadoria transportada, podendo circular por endosso.” (REQUIÃO, 2012, p. 681).
Neste ponto, calha a lição de Fábio Ulhoa Coelho (2007, p. 472, aspas no orginal):
Por isso, pode-se afirmar que o título de crédito é o documento representativo de obrigação pecuniária sujeito a regime informado por tais princípios [cambiais]. Por outro lado, há alguns instrumentos jurídicos sujeitos a disciplina legal que aproveitam, em parte, os elementos do regime jurídico-cambial. Tais instrumentos não podem ser considerados títulos de crédito exatamente porque a eles não se aplicam, na totalidade, os princípios e normas de direito cambiário. Esses instrumentos são normalmente referidos como “títulos de créditos impróprios.
Mais adiante, o mesmo jurista (COELHO, 2007, p. 472-474) classifica os títulos de crédito impróprios nas quatro categorias a seguir descritas: (i) títulos de legitimação; (ii) títulos de investimento; (iii) títulos de financiamento e (iv) títulos representativos. Verifica-se, portanto, que o BL emitido com fulcro em um contrato de transporte internacional de mercadorias é um título representativo da titularidade incidente sobre os bens que constituem o objeto da operação de mercancia internacional.