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A titularidade de direitos fundamentais pelas pessoas jurídicas de direito público

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06/10/2016 às 15:35
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3. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: DISTINÇÕES E CARACTERÍSICAS

3.1 A FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais surgem como uma forma de limitar direitos naturais[23] dos homens contra o abuso do poder do ente político. No mundo ocidental sempre se buscou uma forma de proteger os direitos dos homens contra a tendência de o ente político abusar da sua força e, assim, a necessidade de o ordenamento jurídico prever tais direitos, bem como as garantias de proteção e os meios de concretização. Dessa forma, como já afirmado acima, a Constituição é entendida como a Carta Magna estatal que tem como objetivo limitar o poder do ente político e garantir os direitos dos cidadãos, conforme preceituado pelo art. 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão.

No entanto, o significado e conteúdo desses direitos tornam-se cada vez mais indefinidos e abrangentes. Se em uma perspectiva inicial, os direitos fundamentais surgem sob um viés jusnaturalista, de valores intrínsecos à qualidade do homem enquanto ser humano, com o decorrer do tempo esse espectro é alargado, de forma a perder, para muitos autores, o viés jusnaturalista e passar a ser entendido sob uma visão mais positivista: o direito fundamental é aquele reconhecido para a Constituição como tal. Não há, pois, um consenso na esfera conceitual e terminológica dos direitos fundamentais, a incluir o seu significado e conteúdo.

Jorge Miranda[24] entende que os direitos fundamentais são “os direitos ou as posições jurídicas activas das pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na Constituição”. De acordo com o constitucionalista português,[25] os direitos fundamentais implicam necessariamente duas condições ou pressupostos: uma relação imediata das pessoas com o poder e o reconhecimento de uma esfera própria das pessoas frente ao poder político.

Cristina Queiroz[26], por sua vez, afirma que os direitos fundamentais são direitos constitucionais que devem, antes de ser compreendido como uma dimensão “técnica” de limitação do poder do Estado, ser entendidos como um sistema de valores que irão definir e legitimar a ordem jurídica positiva.

José Afonso da Silva[28] entende os direitos fundamentais como as prerrogativas e instituições, reconhecidas pelo direito positivo e informada pela ideologia política, que concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo “fundamentais”, o constitucionalista brasileiro entende que se trata de situação jurídica para a realização e sobrevivência da pessoa humana, que devem ser reconhecidos formalmente e materialmente efetivados.

Para Uadi Lâmmego Bulos,[29] os direitos fundamentais são o conjunto de normas, princípios, prerrogativas, deveres e institutos “inerentes à soberania popular, que garantem a convivência pacífica, digna, livre e igualitária, independentemente de credo, raça, origem, cor, condição econômica ou status social.”

Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis[30] conceituam os direitos fundamentais como “direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual.”

Apesar de não haver consenso na doutrina sobre a abrangência e amplitude dos direitos fundamentais, o seu núcleo, a sua essência, não está em discussão. Se podemos discutir a abrangência, quais novos direitos são considerados direitos fundamentais, é certo que a sua origem e sua importância para o ordenamento têm pouco espaço para tanto. E a partir desses pontos podemos traçar alguns elementos básicos para a qualificação da fundamentalidade (material) desses direitos: a) a relação criada pelos direitos fundamentais tem como sujeitos o cidadão e o Estado; b) esses direitos têm por finalidade geral proteger e preservar os cidadãos contra o poder estatal. Ou seja, é inerente aos direitos fundamentais uma relação de poder (relação vertical);[31] c) esses direitos cumprem a finalidade específica de defesa e instrumentalização;[32] d) sua posição no sistema jurídico é definida pela supremacia constitucional (fundamentalidade formal).[33]

Além dos elementos básicos demonstrados acima, não se pode olvidar que os direitos fundamentais são uma concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.[34] Conforme ensina Paulo Otero,[35] a evolução histórica da tutela da pessoa humana decorre da concepção de que o ser humano é um fim em si mesmo, bem como passa a ser a justificativa (legitimidade) e a razão do Estado e do Direito. Este Estado, pautado e legitimado pela proteção dos direitos do ser humano, é o resultado de três contributos filosóficos político-constitucionais: a) “a ordem axiológica judaico-cristã e os desenvolvimentos que têm sido efectuados pela Doutrina Social da Igreja”; b) a filosofia kantiana,[36] na qual o homem é um fim em si mesmo, não podendo ser visto como um objeto ou meio de algo; c) a influência da filosofia existencialista, “sublinhando que se trata sempre da dignidade de cada pessoa viva e concreta, e não do ser humano como categoria abstrata.”[37]

A positivação dos direitos fundamentais tem por objetivo incorporar a esfera axiológica dos direitos naturais e inalienáveis do indivíduo no ordenamento jurídico. Se o fundamento dos direitos fundamentais é a dignidade da pessoa humana, a Constituição passa a ser a sua fonte de validade. A positivação é essencial para garantir a proteção sob a forma de normas constitucionais (regras e princípios);[38] caso contrário, os direitos fundamentais serão apenas “esperanças, aspirações, ideias, impulsos, ou, até mesmo, mera retórica política.”[39] Contudo, se a positivação do direito fundamental é indispensável para garantir a sua proteção, bem como concretização, não se pode considerar como fundamental qualquer direito previsto em norma constitucional. É necessário observar se o seu conteúdo condiz com a fundamentalidade material dos direitos fundamentais, bem como o resultado da sua construção histórica.  E ainda: a fundamentalidade material será determinante para reconhecer os direitos fundamentais implícitos no ordenamento constitucional e admitidos expressamente a sua existência em razão da cláusula aberta, prevista no parágrafo 2º do art. 5º da Constituição Federal Brasileira.[40]

A previsão dos direitos fundamentais em normas constitucionais está associada à sua fundamentalidade formal e tem por consequência quatro dimensões: a) as normas consagradoras de direitos e garantias fundamentais situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico; b) elas passam a constituir limites formais e materiais da reforma constitucional; c) a sua vinculatividade imediata, prevista no art. 5º, parágrafo 1º, da CFB/88, e no art. 18º/1 da CRP, constituem parâmetros materiais de escolhas, decisões, ações e controle dos órgãos do legislativo, executivo e judiciário.[41] 

3.2 A ESTRUTURA NORMATIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.2.1 A dimensão subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais

De acordo com o art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a adoção desses direitos em uma esfera constitucional caracteriza-se por ser um dos elementos essenciais do próprio conceito de constituição. Do ponto de vista material,[42] todo direito fundamental tem natureza constitucional, possibilitando, assim, a abertura sistêmica da constituição.[43]

Em uma perspectiva inicial, os direitos fundamentais[44] podem ser entendidos como a relação de direitos públicos subjetivos de pessoas (cidadãos e pessoa jurídica) – e coletividade – oponíveis em face do Estado (perspectiva jurídico-subjetiva). Os direitos fundamentais objetivam conferir aos indivíduos uma posição jurídica de direito subjetivo, “em sua maioria de natureza material, mas às vezes de natureza processual e, consequentemente, limitar a liberdade de atuação dos órgãos do Estado.”[45] Ou seja, aquilo que para o cidadão constitui um direito, para o Estado constitui uma obrigação.

Como posição subjetiva[46] de titularidade dos cidadãos,[47] os direitos fundamentais reconhecem deveres jurídicos ao Estado que devem ser concretizados de acordo com as balizas estipuladas por aqueles direitos, seja ao não intervir em um espaço delimitado como direito subjetivo do cidadão seja através de prestações que irão beneficiar os cidadãos.[48]

O direito subjetivo, previsto pela norma de direito fundamental, se manifesta em uma relação trilateral: o titular do direito (cidadão, pessoa jurídica ou coletividade), o destinatário (Estado) e o objeto (bem tutelado). Dessa relação, caso o destinatário não cumpra com o seu dever em relação ao titular, nasce a pretensão de buscar no judiciário a sua tutela. Georg Jellinek formulou uma tripartição dessa relação: primeiramente, os direitos fundamentais podem ser entendidos como direitos de status negativus ou pretensão de resistência à intervenção estatal, que consistem no direito de resistência ou pretensão de resistência à intervenção estatal (direitos de 1ª dimensão). Segundo Ingo Sarlet, o "status negativus” de Jellinek deve, portanto, ser encarado mais propriamente como um status negativo dos direitos fundamentais, no qual a liberdade é concebida como liberdade de qualquer intervenção inconstitucional, em outras palavras, as liberdades e os direitos fundamentais em geral vinculam também o legislador. 

Em segundo lugar, direitos de status positivus ou a prestações, consistentes nos direitos sociais, possibilitando aos cidadãos exigirem do poder público um comportamento positivo que acarrete uma melhoria nas suas condições de vida, através de políticas públicas (direitos de 2ª e 3ª dimensão). Na dimensão objetiva dos direitos sociais ou direitos a prestações estatais há duas espécies: podem ser direitos a prestações materiais – que consistem no oferecimento de bens e serviços não prestados pela iniciativa privada e, também, no oferecimento universal de serviços monopolizados pelo Estado (segurança pública); e, por outro lado, podem ser direitos a prestações normativas (ações normativas positivas), ou seja, direitos a criação de normas jurídicas que tutelam interesses individuais, coletivos e difusos.

E, por último, os direitos de status activus ou políticos ou de participação, referente à possibilidade de participar na determinação da política estatal de forma ativa.

Na proposta formulada por Robert Alexy,[49] a perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais apresenta o seguinte tripé: a) direitos a qualquer coisa, o que englobaria tanto os direitos de defesa e os direitos a prestações; b) liberdades, no sentido de negação de exigências e proibições; c) os poderes estatais para concretizar os direitos fundamentais, mais especificamente se refere as competências e as autorizações.

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Os direitos fundamentais não se limitam à posição jurídico-subjetiva do indivíduo em relação ao Estado, mas também constituem decisões axiológicas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, a fornecer diretrizes de atuação de todos os poderes e irradiar por todo o ordenamento jurídico. Podemos dizer, assim, que a perspectiva jurídico-objetiva confere função autônoma às normas que preveem direitos subjetivos fundamentais, em face de reconhecer (i) os direitos fundamentais como valores presentes na sociedade, bem como (ii) reconhecer os direitos fundamentais como princípios básicos da ordem constitucional. O Estado Democrático de Direito reconhece os direitos fundamentais como a sua base/essência, de forma a impor limites ao poder e ter a concretização desses direitos como a diretriz de atuação de todos os poderes. Dessa forma, do ponto de vista objetivo, os direitos fundamentais condicionam diferentes alcances aos destinatários quanto ao conteúdo e objeto.[50]

A perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais apresenta os seguintes desdobramentos: a) eficácia irradiante dos direitos fundamentais: os direitos fundamentais, como valores consagrados na Constituição, fornecem impulsos e diretrizes para a atuação dos órgãos do Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como a necessidade de a interpretação das normas terem como base os direitos fundamentais, a qual é, pois, uma decorrência da técnica hermenêutica de interpretação conforme a Constituição; b) deveres de proteção: ao Estado incumbe zelar, inclusive preventivamente pela proteção dos direitos fundamentais contra agressões não só do Estado, mas também de terceiros, seja particulares seja outros Estados; c) função axiologicamente vinculada: os direitos fundamentais são normas que incorporam no ordenamento jurídico uma esfera de valores da sociedade e decisões essenciais do legislador constituinte originário, de forma a vincular não só o Estado mas toda a comunidade a essa esfera axiológica. Dessa forma, os direitos fundamentais atuarão também como parâmetro do controle de constitucionalidade das demais normas do ordenamento jurídico; d) função objetiva reflexiva de todo direito fundamental subjetivo: ao estabelecer um direito subjetivo de defesa do indivíduo em face do Estado, os direitos fundamentais, por outro lado, estabelece uma competência negativa ao Estado em relação ao seu objeto, de forma a subtrair do Poder Público a possibilidade de disposição sobre esse núcleo fundamental.[51]

3.3 DISTINÇÕES NECESSÁRIAS AO ESTUDO DO TEMA

3.3.1 Direitos fundamentais e deveres fundamentais

Os deveres fundamentais apresentam-se de forma simétrica aos direitos fundamentais, com o pressuposto de separação entre o Estado e a sociedade e uma relação direta e imediata de cada pessoa com o poder político.[52] Como já abordado, do ponto de vista da relação jurídica subjetiva, o reconhecimento de direitos fundamentais ocasiona, por outro lado, um reconhecimento de um dever para o Estado, qual seja, a concretização, positiva ou negativa, daquele direito.

Conforme ensina Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins,[53] cabe observar que a Constituição Federal brasileira de 1988 estabelece como dever fundamental do cidadão, o voto obrigatório (art. 14, § 1º, CF/88) e o serviço militar obrigatório (art. 143, CF/88).[54] Essas hipóteses não podem ser abrangidas além das previstas expressa e implicitamente na Constituição,[55] sob pena de realizar uma interpretação extensiva de forma a limitar direitos dos cidadãos. Isso porque, conforme ensina Jorge Miranda, a prescrição de deveres equivale em permitir a intervenção do Estado, o que implica em limites e restrições de direitos.[56]

Se pode, então, questionar se, na relação jurídica fundamental, a imposição de deveres constitucionais aos cidadãos corresponde, por outro lado, ao estabelecimento de direitos fundamentais ao Estado. Apesar do adjetivo “fundamental” estar atrelado ao vocábulo “direito e deveres”, não é possível, nestes casos acima, falar em direito fundamental do Estado, haja vista esses deveres fundamentais dos cidadãos serem deveres autônomos,[57] que criam, na mesma medida, uma obrigação ao Estado de fazer o particular cumprir o seu dever, e não um direito fundamental subjetivo ao Estado. Se não fosse assim, poder-se-ia entender que o Estado, como titular desse direito subjetivo, poderia exercer ou não o seu direito. No entanto, o princípio da indisponibilidade do interesse público[58] veda essa hipótese, de forma a obrigar o Estado a atuação em determinado sentido – seja na cobrança do tributo seja sancionando o particular que não votou ou não realizou o alistamento militar –, sem poder se imiscuir das suas obrigações legais.

3.3.2 Direitos fundamentais e tarefas públicas

Conforme explanado na dimensão objetiva dos direitos fundamentais, um dos desdobramentos dessa perspectiva objetiva é a eficácia irradiante dos direitos fundamentais. Esta consiste na penetração dos valores consagrados na Constituição por todo o ordenamento jurídico e no fornecimento de impulsos e diretrizes para a atuação dos órgãos dos poderes do Estado, Executivo, Legislativo e Judiciário.

Dessa forma, a vinculação do Estado aos direitos fundamentais tem por consequência o estabelecimento do dever de sua concretização, observado, dessa forma, no estabelecimento de tarefas públicas a serem executadas pelo ente político. As tarefas públicas têm portanto como destinatário o Estado e objetivam a vinculação dos seus órgãos à concretização de direitos fundamentais, notadamente em matéria de organização econômica ou social, política ou administrativa.

3.3.3 Direitos fundamentais e poderes administrativos

Os direitos fundamentais não se confundem com os poderes administrativos. Estes consistem em prerrogativas estatais indispensáveis para a persecução do interesse público. Ou seja, atuam como um instrumento, um meio, concedido pelo ordenamento jurídico, com vistas a que o ente público possa concretizar a sua finalidade específica prevista pelo ordenamento jurídico (ver Carvalho Filho).

Os poderes administrativos correspondem a prerrogativas inerentes ao exercício da atividade administrativa, dentro do limite legal (princípio da legalidade) com vistas a atingir uma finalidade específica. Não esquecer que os poderes administrativos só podem ser exercidos com observância ao princípio da legalidade, haja vista este corresponder a uma garantia fundamental do cidadão, que objetiva evitar o abuso do poder pelo ente político, no exercício do seu direito.

Não se pode, portanto, afirmar que o poder administrativo é um direito do ente político. Pelo contrário, ele consiste em um instrumento (meio) possibilitado pelo ordenamento para que este possa alcançar a sua finalidade. Dentre as finalidades está a concretização dos direitos fundamentais.[59]

Conforme Jorge Miranda, as situações funcionais correspondem as situações jurídicas, “ativas e passivas, dos titulares dos órgãos e, porventura, de certos agentes do Estado e de quaisquer entidades públicas enquanto tais,” bem como as situações jurídicas “em que se subjetivam os estatutos inerentes aos cargos desempenhados por essas pessoas no Estado e noutras entidades públicas.”[60]

As situações funcionais distinguem-se dos direitos fundamentais, em razão destes implicarem “diferenciação, separação e exterioridade” diante do Estado.[61] Segundo Jorge Miranda,[62] enquanto as situações funcionais são situações jurídicas de membros do Estado-poder e consequência da prossecução do interesse público, prevalecendo, inclusive, sobre o interesse dos particulares; os direitos fundamentais são situações jurídicas de membros do Estado-comunidade e só há onde exista um interesse das pessoas que “valha por si, autônomo, diferenciado.”

3.3.4 Direitos fundamentais, garantias fundamentais e garantias institucionais

Ao prever direitos, o ordenamento jurídico precisa estabelecer garantias como um meio de salvaguardar esses direitos ou recorrer ao judiciário na iminência da sua violação ou mesmo quando o mesmo já foi violado. Não basta que um direito seja declarado e reconhecido, é necessário garanti-lo, porque virão ocasiões em que será necessário protege-lo contra violações.  O reconhecimento de direitos fundamentais requer, portanto, a criação de garantias para a sua proteção, seja no direito de exigir dos poderes públicos a tutela dos direitos fundamentais seja na previsão dos meios processuais adequados a essa finalidade. Caso contrário, tais direitos teriam a mera função simbólica, declaratória ou discursiva, sem força para a sua efetiva proteção.[63]

As garantias fundamentais (ou garantias clássicas) não se confundem com os direitos fundamentais, pois enquanto estes consistem na própria finalidade do Direito, aquelas são apenas instrumentos, meios de proteção dos direitos. Embora as garantias possuam o caráter instrumental de proteção dos direitos fundamentais, elas também são direitos do cidadão (direito-garantia).[64]

Nesse sentido, o Título II da Constituição Federal brasileira de 1988 dispõe acerca “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Conforme Uadi Lammêgo Bulos,[65] “as garantias fundamentais são as ferramentas jurídicas por meio das quais tais direitos se exercem, limitando os poderes do Estado.” José Afonso da Silva classifica as garantias constitucionais em: (a) garantias gerais: elas formam a estrutura que permitem a existência dos direitos fundamentais, bem como formam a estrutura de uma sociedade democrática e contribui para a concepção do Estado Democrático de Direito. Elas são “destinadas a assegurar a existência e a efetividade (eficácia social) daqueles direitos, as quais se referem à organização da comunidade política, e que poderíamos chamar de condições econômico-sociais, culturais e políticas” que favorecem o exercício dos direitos fundamentais.[66] (b) e as garantias constitucionais: que consiste na própria tutela constitucional dos direitos fundamentais, através das suas instituições, determinações e procedimentos, para os casos de inobservância e de “reintegração”. Elas dividem-se em: (b.I) garantias constitucionais gerais: proíbem abusos de poder e todas as formas de violação, através dos mecanismos de freio e contrapesos dos poderes, tais como a legalidade (art. 5, II, CF/88) e o devido processo legal (art. 5, LIV, CF/88); e (b.II) as garantias constitucionais específicas: “são prescrições constitucionais estatuindo técnicas de mecanismos, protegem a eficácia, a aplicabilidade e a inviolabilidade dos direitos fundamentais de modo especial”. Notadamente, elas atuam como meio de defesa do cidadão quando um direito fundamental ou uma garantia constitucional geral é transgredida, tais como o mandado de segurança (art. 5º, LXIX, CF) e o habeas data (art. 5º, LXXII, CF).[67]

As garantias institucionais, por sua vez, é uma criação da doutrina alemã, a partir de Carl Schmitt, ao diferencia-la dos direitos fundamentais. Enquanto estes são atendem aos cidadãos em suas relações particulares, sem atingir a sociedade; as garantias institucionais incidem sobre toda a sociedade, e não ao homem considerado de forma particular.[68]

Ingo Sarlet[69] ensina que as garantias institucionais têm por finalidade tutelar determinadas instituições de direito público ou institutos de direito privado que, devido à sua importância, devem ser protegidos contra a ação erosiva do legislador. Podemos afirmar, como exemplo de garantias institucionais, a estabilidade, os privilégios processuais das garantias institucionais (como imprensa livre, a família, a propriedade, a autonomia das autarquias locais, etc.) que são sobretudo figuras jurídicas de natureza objetiva etc

A Corte Constitucional Brasileira, à luz da Constituição de 1969, decidiu que era “direito elementar das Universidades a não intervenção dos Poderes Públicos em sua organização interna (a autonomia universitária) (Rp 696/SP, em 10.06.70)”. A autonomia universitária consiste em um direito da Universidade, mas não um direito fundamental, e sim em um direito-garantia, haja vista consistir em uma garantia institucional.

3.3.5 Direitos fundamentais e direitos da personalidade

Conforme ensina Jorge Miranda, os direitos da personalidade[70]

São posições jurídicas fundamentais do homem que ele tem pelo simples fato de nascer e de viver; são aspectos imediatos da exigência de integração do homem; são condições essenciais ao seu ser e devir; revelam o conteúdo necessário da personalidade; são emanações da personalidade humana em si; são direitos de exigir de outrem o respeito da própria personalidade; têm por objetivo, não algo de exterior ao sujeito, mas modos de ser físicos e morais da pessoa ou bens da personalidade física, moral e jurídica ou manifestações parcelares da personalidade humana ou a defesa da própria dignidade.

O constitucionalista português complementa que, não obstante os direitos da personalidade terem adquirido relevância constitucional e terem várias zonas de coincidência com os direitos fundamentais, com estes não se confunde. Isso porque enquanto os direitos fundamentais pressupõem uma relação de poder (relação vertical), os direitos da personalidade, relação de igualdade (relação horizontal); os direitos fundamentais têm uma incidência publicística, ainda quando ocorram efeitos nas relações entre os particulares; os direitos da personalidade possuem uma incidência privatística, ainda quando sobreposta ou subposta a dos direitos fundamentais; os direitos fundamentais pertencem ao domínio do Direito Constitucional, enquanto os direitos da personalidade, ao Direito Civil.[71]

3.4 A “DEBILITAÇÃO” DA FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais são o resultado de um processo histórico social de reconhecimento de certos valores, com base na dignidade da pessoa humana, em que tem em seu cerne a proteção de valores inerentes à ao cidadão contra o abuso do poder de um ente político. A construção do constitucionalismo moderno tem nos direitos fundamentais e mais detidamente na dignidade da pessoa humana a sua base, justificação e a sua construção.

O legislador tende a buscar ampliar a noção de direitos fundamentais para a proteção de diversos outros valores e aspectos que consideram importante na sociedade. Não obstante a importância disto e da fundamentalidade formal, o adjetivo “fundamental” acresce ao vocábulo “direito” uma carga axiológica, construída por um processo histórico social do mundo ocidental. Ampliar o conceito de direito fundamental para incluir a criação de novos “direitos” que, embora a sua importância na sociedade, não condiz com a “fundamentalidade” decorrente de toda uma carga axiológica construída por esse processo histórico, apenas tende a enfraquecer a sua real proteção e esvaziar o seu núcleo, com a possibilidade de gerar “contra-direitos”.[73]

Ora, não há uma elasticidade ilimitada de direitos fundamentais. A criação e o surgimento de novos direitos fundamentais devem estar adstritos à sua fundamentalidade material, e não apenas à fundamentalidade formal. O legislador encontra-se, portanto, limitado à qualificação material dos direitos fundamentais, sob pena de esvaziar o próprio conceito de direitos fundamentais: “direito fundamental é tudo e não será nada.”[74].

O Estado é o destinatário dos direitos fundamentais, cuja função é limitar o poder daquele. Caso entenda-se a capacidade ilimitada de o Estado criar novos direitos fundamentais, sem uma necessária fundamentalidade material, ele passa a assumir o controle dos direitos fundamentais. De outra forma, aquilo que deveria ser entendido como uma esfera de proteção do cidadão contra o Estado, este passa a assumir o seu controle e a dispor sobre a sua noção, o qual acaba por diluir o objetivo inicial dos direitos fundamentais: a proteção da esfera de direitos dos cidadãos contra o abuso de um poder político.

A cláusula aberta, disposta no art. 5º, parágrafo 2º, da CF/88, por sua vez, não pode ser a tradução de arbitrariedade do Estado na introdução de novos direitos fundamentais, ausente de fundamentalidade material. Caso contrário, estar-se-ia criando um verdadeiro “cavalo de troia dos direitos fundamentais”: aquele que deveria ser controlado pelos direitos fundamentais, passa a controla-lo.

Paulo Otero, ao chamar a atenção para o fenômeno de “debilitação dos direitos fundamentais”, afirma, ainda, que muitos tendem a converter incumbência ou tarefas do Estado em direitos fundamentais, bem como tratar como direitos fundamentais os poderes funcionais ou deveres fundamentais. Conforme o autor português (p. 529), essa extensão ilimitada dos direitos fundamentais é passível de gerar uma concorrência limitativa ou, ainda, colisões e conflitos de operatividade (processo de progressiva debilitação ou erosão). 

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Sobre o autor
Ricardo Duarte Jr.

Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL); Mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Especialista em Direito Administrativo pela UFRN; Especialista em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Potiguar (UnP); Vice-Presidente do Instituto de Direito Administrativo Seabra Fagundes (IDASF), Coordenador da Pós-Graduação em Direito Administrativo no Centro Universitário Facex (UniFacex), Professor Substituto da UFRN, Advogado e sócio no Duarte & Almeida Advogados Associados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DUARTE JR., Ricardo. A titularidade de direitos fundamentais pelas pessoas jurídicas de direito público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4845, 6 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51896. Acesso em: 22 dez. 2024.

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