1.INTRODUÇÃO
Uma das maiores preocupações do sistema jurídico ocidental é a proteção de uma esfera de direitos dos cidadãos contra a possibilidade de arbítrio de um ente político. Essa ideia está no cerne da noção não só dos direitos fundamentais como também da própria essência da Constituição, expressa no art. 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, quando afirma que “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.”
Os direitos fundamentais surgem a partir de uma visão jusnaturalista, com o objetivo de tutelar os direitos inerentes aos homens, à sua condição de ser humano, contra o abuso do poder estatal. Com o passar dos tempos, principalmente do desenvolvimento econômico e social, outros direitos, por serem considerados valores importantes para a sociedade, foram sendo reconhecidos como fundamentais, o que ocasionou um alargamento do núcleo desses direitos, sem perder, entretanto, a sua essência.
De certa forma, a ampliação dos direitos fundamentais e a isonomia entre as pessoas, físicas e jurídicas, e o consequente reconhecimento por algumas Constituições ocidentais da titularidade de direitos fundamentais por pessoas jurídicas, levou a um alargamento da abrangência dos direitos fundamentais, além de uma série de questionamentos.
Dentre esses questionamentos, um dos mais importantes para a atualidade consiste em saber se a pessoa jurídica de direito público – idealizada inicialmente como destinatário dos direitos fundamentais, tendo este o objetivo de limitar as funções daquelas – pode ser titular de direitos fundamentais ou não. Ora, se a pessoa jurídica de direito privado pode ser titular de direitos fundamentais, por que não as pessoas jurídicas de direito público?
A partir dessas considerações iniciais, pretendemos discutir se as entidades públicas podem (ou não) ser titulares de direitos fundamentais. Para isso, é necessário discorrer sobre a história e a natureza dos direitos fundamentais, de forma a entender em que consiste a sua fundamentalidade material, a sua própria essência; e fazer uma análise disto em comparação com a natureza jurídica das pessoas da administração pública; além disso, pretendemos discorrer sobre a estrutura normativa dos direitos fundamentais; diferenciar os direitos fundamentais de outros instrumentos, como as tarefas públicas, os poderes públicos e as garantias fundamentais e institucionais; estudar a razão de algumas pessoas jurídicas serem titulares de direitos fundamentais, e se tais razões podem ser aplicadas ao Estado e em quais casos; bem como qual o entendimento dos Tribunais Constitucionais em alguns países do ocidente sobre essa questão e a razão para tanto.
2. A NATUREZA JURÍDICA DAS ENTIDADES PÚBLICAS
2.1 O ESTADO, CONSTITUIÇÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS
O Estado Constitucional, como um Estado qualificado pelo constitucionalismo moderno, deve ser um Estado Democrático de Direito.[2] O Estado Moderno[3], cuja base encontra-se no constitucionalismo moderno, surge como uma decorrência do fim do absolutismo, com uma nova concepção sobre o poder e o sistema jurídico. De outro modo, há o surgimento de um Estado que tem como ordens de valores a obediência ao Direito, ao princípio democrático e a um ordenamento baseado em uma Carta que tem que privilegiar certos direitos e estabelecer garantias para estes.[4]
O Estado Moderno é a conversão do Estado absoluto em Estado de direito democrático-constitucional; o poder já não é dos homens, mas de leis. O ordenamento social e o político passam a ser governado pelas leis, elaboradas por representantes do povo, e não por personalidades que acreditavam ter recebido o seu poder de forma transcendental. A legalidade assume valor supremo no ordenamento e é traduzida nos textos dos Códigos e das Constituições.
O Estado de Direito Democrático-Constitucional tornou-se um “paradigma de organização e legitimação de uma ordem política.”[5] A organização da comunidade política segundo as bases de um Estado de Direito Democrático, com base na Constituição, significa a rejeição de Estados estruturalmente totalitários, autoritários ou autocráticos.
O Estado de Direito tem como fundamento maior a ideia de que todos aqueles que compõem o Estado, inclusive os governantes, tem de estar adstritos à ordem jurídica, ao princípio da legalidade.
Conforme ensina Canotilho, a dimensão do Estado de Direito encontra expressão jurídico-constitucional num complexo de princípios e regras dispersos pelo texto constitucional. No seu conjunto, estes princípios e regras concretizam a ideia nuclear do Estado de Direito ─ sujeição do poder a princípios e regras jurídicos, garantindo às pessoas e cidadãos liberdade, igualdade e segurança.
O Estado Constitucional, por sua vez, iniciou com o constitucionalismo moderno,[6] cuja ideia principal é a criação de uma constituição escrita, no qual sejam garantidos os direitos fundamentais, a tripartição do poder e a sua racionalização, com a finalidade de limitar o poder político.[7] O art. 16 da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão de 1789 afirmou que “a sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.[8]
De outra forma, o Estado constitucional é, assim, e em primeiro lugar, o Estado com uma constituição limitadora do poder através do império do direito. As ideias do “governo de leis e não de homens”, de “Estado submetido ao direito”, de “constituição como vinculação jurídica do poder”, foram tendencialmente realizadas por instituições como as de “rule of law”, “due process of law”, “Rechtsstaat”, “principe de Ia légalité”.[9]
Em suma, os direitos fundamentais, direitos do indivíduo humano (condição natural de humano), são o pilar essencial da revolução constitucionalista, que reconhece direitos, liberdades e garantias fundamentais para a defesa e a liberdade do cidadão em face do ente político.
2.2 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA NA DOUTRINA BRASILEIRA
A Administração Pública brasileira está organizada conforme o Decreto n.º 200/67. Conforme este, em seu art. 4º, a Administração Federal compreende a Administração Pública Direita e a Indireta. Aquela constitui “os serviços integrados na estrutura da Presidência da República e dos Ministérios” (inc. I), mais especificamente, os órgãos decorrentes dessa estrutura (fenômeno da desconcentração).[10] Já a Administração Indireta compreende certas categorias de pessoas jurídicas próprias (fenômeno da descentralização), mais especificamente as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas e as sociedades de economia mista.
Na federação brasileira, a Administração Direta correspondem à União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Todos com personalidade jurídica de direito público, os quais atuam através dos seus Ministérios e Secretarias, bem como os órgãos correspondentes pela desconcentração dos poderes.
Já a Administração Indireta possui quatro categorias diferentes, as autarquias, as Fundações Públicas, as Sociedades de Economia Mista e as Empresas Públicas. A autarquia, por sua vez, é um gênero, do qual há 4 (quatro) espécies: autarquias em sentido estrito, fundações públicas de direito público, agências executivas e agências reguladoras.
A autarquia em sentido estrito[11] tem como objetivo prestar “o serviço autônomo, criado por lei,[12] com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada” (art. 5, inc. I, Decreto n.º 200/67).
As agências executivas e as agências reguladoras nascem no ordenamento jurídico brasileiro com o movimento desencadeado pela Reforma do Estado da década de 1990[13]. Elas nascem em um cenário em que se requer da Administração Pública maior eficiência dos seus órgãos e entidades e, para isso, confere-lhe maior autonomia.
As agências executivas têm base constitucional no art. 37, § 8º,[14] e estão disciplinadas no Decreto 2488/1998, cujo art. 1º dispõe
Art. 1º As autarquias e as fundações integrantes da Administração Pública Federal, qualificadas como Agências Executivas, serão objeto de medidas específicas de organização administrativa, com a finalidade de ampliar a eficiência na utilização dos recursos públicos, melhorar o desempenho e a qualidade dos serviços prestados, assegurar maior autonomia de gestão orçamentária, financeira, operacional e de recursos humanos e eliminar fatores restritivos à sua atuação institucional. (grifo nosso)
As agências executivas são qualificações que autarquias e fundações recebem ao realizar um contrato de gestão com a Administração Direta. Este contrato tem por objetivo ampliar a eficiência, melhorar o desempenho e a qualidade dos serviços prestados, através da garantia de maior autonomia e eliminação de fatores restritivos na sua atuação.
As agências reguladoras são autarquias em regime especial.[15] A especialidade das autarquias decorre de elas terem surgidos com a finalidade de o Estado atuar na regulação setorial de serviços públicos e atividades econômicas, após a privatização e desestatização de determinados serviços e atividades.[16] Assim, elas são entes descentralizados e especializados, com autonomia decisória em relação à administração direta, autonomia funcional, financeira e orçamentária, imune a ingerências político- partidárias, e investidas em funções técnicas e poderes normativos para atender a sua nova forma de atuação como agente regulador da atividade econômica (em sentido amplo)[17], com base e finalidade no interesse público e na eficiência da prestação daquela atividade.
Nesse sentido, as autarquias estão adstritas ao regime jurídico-administrativo de direito público. Isso significa que elas gozam de todas as prerrogativas e privilégios, bem como obedecem a todas as sujeições que as pessoas jurídicas da Administração Direta possuem.
As Fundações Públicas estão previstas no art. 5º, IV, do Decreto n.º 200/67. In verbis:
a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes.
Conforme o disposto acima, a Fundação Pública tem personalidade jurídica de Direito Privado e, por isso, devia obedecer ao regime jurídico de direito privado. Para Celso Antônio Bandeira de Mello, tal situação era uma forma de burlar o regime jurídico de direito público, de forma as fundações públicas serem constituídas pelo Estado, mas sem precisar estar adstritas às sujeições inerentes a esse regime.[18]
Não obstante a discussão doutrinária, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 101.126 – RJ, passou a entender que “Nem toda fundação instituída pelo Poder Público é fundação de direito privado. As fundações, instituídas pelo Poder Público, que assumem a gestão de serviço estatal e se submetem a regime administrativo previsto, nos Estados-membros, por leis estaduais são fundações de direito público, e, portanto, pessoas jurídicas de direito público. Tais fundações são espécies do gênero autarquia, (...)” (STF. RE 101.126-2-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, 24.10.1984).[19]
Nesse sentido sedimentou-se o entendimento no Supremo Tribunal Constitucional que há dois tipos de Fundações Públicas, as de Direito Público, as quais são espécies do gênero autarquia e, por isso, regidas pelo regime jurídico de Direito Público, e as de Direito Privado, regidas pelo regime jurídico de Direito Privado.[20]
Há ainda as empresas estatais, que são as empresas públicas e as sociedades de economia mista. Aquela, conforme o art. 5º, inc. II, do Decreto n.º 200/67, é
a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito.
A sociedade de economia mista, disciplinada pelo art. 5º, inc. III, do Decreto nº 200/67, é
a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da Administração Indireta.
As empresas estatais (empresa pública e sociedade de economia mista) tem a função de prestar serviços públicos ou atividade econômica. Mas se, a priori, elas obedecem a um regime jurídico de direito privado, é necessário observar que na realidade esse regime é misto, com prevalência do regime privatísticos, o qual deve observar o regime público em casos pontuais, como o concurso público e a licitação (alguns casos).
A exigência da obediência ao regime privatísticos tem como finalidade proteger a concorrência com as demais pessoas do mesmo setor. A Constituição vem a consagrar esse entendimento no art. 173, § 1º, II, ao dispor que as empresas estatais que prestem atividade econômica devem sujeitar-se ao mesmo regime jurídico das demais empresas privadas do mesmo ramo, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários.
Em sentido contrário, se a prestação é de serviço público, em regime de privilégio,[21] como é o caso da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), apesar de a empresa ser Pessoa Jurídica de Direito Privado, embora seja aplicado um regime jurídico misto, há uma incidência maior do regime jurídico de direito público.[22]
Após as constatações acima, percebemos que a Administração Pública pode obedecer dois regimes jurídicos: o regime jurídico de direito público e o regime jurídico de direito privado. Enquanto neste caso a Administração Pública atua como se particular fosse, na mesma posição que este (sentido horizontal), naquele (o regime jurídico de direito público ou regime jurídico administrativista), a Administração Pública atua em uma relação vertical em relação à sociedade: ao mesmo tempo em que a Administração terá certos privilégios, tal como o poder de polícia, de modo a alcançar seus objetivos e funções determinadas pelo ordenamento jurídico; ela terá, por outro lado, diversas sujeições, as quais são, ao mesmo tempo, uma garantia ao cidadão para que não haja abuso ou excesso de poder, tal como o princípio da legalidade e o devido processo legal.