Alvedrio x deontologia médica:uma exegese do art.15 do novo Código Civil

09/09/2016 às 01:46
Leia nesta página:

Uma análise subjetiva, doutrinária e jurisprudencial deste dispositivo imprescindível para regular e definir os limites do código de ética médica e do direito de livre arbítrio do indivíduo.

Preliminarmente, deve-se ressaltar que para responder objetiva e tempestivamente o cerne do presente tópico basta uma simplória interpretação literal ou teleológica do art. 15 do novo Código Civil, com respaldo positivado no art. 5º, incisos II e III da CF/88, no qual se pode inferir que ninguém será constrangido a se submeter a tratamento médico ou intervenção cirúrgica que exponha ao risco de vida, visto que há uma relação de supremacia sui generis dos direitos da personalidade, que, sob a perspectiva ideológica de Pablo Stolze Gagliano (Novo Curso de Direito Civil, Parte Geral, 2012, pág.168), estes são categorizados em uma tríade: "corpo, mente e espírito"; gerando, por derradeiro, um amálgama classificatório entre vida e integridade física; esta que reconhece, também, ainda que indiretamente, o alvedrio do indivíduo, isto é, a sua autonomia intelectiva arbitrária. Destarte, faz-se ainda mais importante agravar a necessidade de entender que o direito fundamental à vida é indubitavelmente o mais relevante de todos, isto é, “o direito que se reveste, em sua plenitude, de todas as características gerais dos direitos da personalidade, devendo-se enfatizar o aspecto da indisponibilidade, uma vez que se caracteriza, nesse campo, um direito à vida e não um direito sobre a vida. Constitui-se direito de caráter negativo, impondo-se pelo respeito que a todos os componentes da coletividade se exige. Com isso, tem-se presente a ineficácia de qualquer declaração de vontade do titular que importe em cerceamento a esse direito, eis que se não pode ceifar a vida humana, por si, ou por outrem, mesmo sob consentimento, porque se entende, universalmente, que o homem não vive apenas para si, mas para cumprir missão própria da sociedade. Cabe-lhe, assim, perseguir o seu aperfeiçoamento pessoal, mas também contribuir para o progresso geral da coletividade, objetivos esses alcançáveis ante o pressuposto da vida”. (BITTAR, Os Direitos da Personalidade, 3. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 67).

Outrossim, como precedentemente mencionado, o civilista Pablo Stolze reconheceu a figura da integridade física como princípio inerente ao sentido amplo do direito à vida, que, em lato sensu, traz a concepção da higidez humana, isto é, incolumidade física e intelectual. Nesse sentido, o jurista também reconhece a problemática sustentada pela colisão ideológica entre os limites do alvedrio e a necessidade de intervenções médicas ou cirúrgicas. Em uma exegese à luz desta contenda, JOSAPHAT MARINHO reconhece a “impossibilidade de ser constrangida a pessoa a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica. O Projeto primitivo referia apenas o tratamento cirúrgico. A ampliação é correta, pois hoje há múltiplos tratamentos especializados geradores de risco à vida, inclusive pelo uso de aparelhos de rigorosa precisão ou de medicamentos de dosagem inalterável”.(Josaphat Marinho, ob. Cit., p. 256). Desta forma, corroborando parcialmente com o jurista CARLOS ROBERTO GONÇALVES (Direito Civil Esquematizado, Parte Geral, 3ª edição, 2012, Saraiva: São Paulo, pág.90) no qual alega que o indivíduo que se submete a tratamento médico ou intervenção cirúrgica deve ter plena e indubitável consciência dos seus riscos, cabendo, sobretudo, ao profissional qualificado informá-lo, em contrapartida não apenas por “ deontologia profissional”, isto é, está no código de ética dos médicos, como o jurista discretamente citou, mas, também, pelo sentido repristinatório, original e aristotélico do que efetivamente é ética ou“èthos”: agir a partir daquilo que vem de dentro, isto é, da natureza onto e teleológica do homem, buscando a excelência virtuosa: o bem comum, diga-se de passagem que não só os socráticos, mas também São Tomás de Aquino, Bentham e Stuart Mill, entre outros, assim a entendem, para, por conseguinte, não ter que tratar de um direito fundamental, indisponível, impenhorável ou inalienável, irrenunciável e intransferível como a vida, apenas por “dever-ser”. Posto isso, o paciente tem, portanto, o direito de se eximir do tratamento em função do seu direito à integridade física, conquanto em caso de o paciente estar obstado de manifestar sua vontade, esta será incumbida ao seu representante legal. Nada obstante o dever de informar, em casos de emergência - como, à guisa de exemplo, uma parada cardíaca –, não havendo um interstício de tempo para a oitiva do paciente, o médico deverá realizar o tratamento prescindindo de qualquer autorização e eximindo-se automaticamente de responsabilidade. Nesta perspectiva, testifica CARLOS ROBERTO GONÇALVES: “Na impossibilidade de o doente manifestar a sua vontade, deve-se obter a autorização escrita, para o tratamento médico ou a intervenção cirúrgica de risco, de qualquer parente maior, da linha reta ou colateral até o 2º grau, ou do cônjuge, por analogia com o disposto no art. 4º da Lei n.9.434/97, que cuida da retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoa falecida. Se não houver tempo hábil para ouvir o paciente ou para tomar essas providências e se tratar de emergência que exija pronta intervenção médica, como na hipótese de parada cardíaca, terá o profissional a obrigação de realizar o tratamento independentemente de autorização, eximindo-se de qualquer responsabilidade por não tê-la obtido. Mesmo porque o Código Penal (art. 146, § 3º, I) não considera crime de constrangimento ilegal “a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida ” 150. Responsabilidade haverá somente se a conduta médica mostrar-se inadequada, fruto de imperícia, constituindo-se na causa do dano sofrido pelo paciente ou de seu agravamento.” (Gonçalves, Carlos Roberto, Direito Civil Esquematizado, Parte geral. 3ªedição, São Paulo: Saraiva, 2012, pág.91).

Por derradeiro, no que concerne estritamente à convicção filosófica ou religiosa como forma de não aquiescência do tratamento do indivíduo em iminente risco de vida, o Tribunal de Justiça de São Paulo teve a oportunidade de decidir que, malgrado o direito de culto que é assegurado à paciente pela Lei Maior, não lhe era dado dispor da própria vida, de preferir a morte a receber a transfusão de sangue, “a risco de que se ponha em xeque direito dessa ordem, que é intangível e interessa também ao Estado, e sem o qual os demais, como é intuitivo, não têm como subsistir”. Neste sentido, também se posiciona o nosso Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que, por sua vez, enfatizou que não há necessidade de intervenção judicial para obrigar a paciente a se submeter à transfusão de sangue, “pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares”. Logo faz-se mister trazer à tona a doutrina do exímio Carlos Roberto Gonçalves que faz alusão á Resolução 1.021/80 do Conselho Federal de Medicina e aos arts. 46 e 56 do Código de Ética Médica, que autorizam os médicos a realizar a transfusão de sangue em seus pacientes, independentemente de consentimento, se houver iminente perigo de vida. Destarte, a convicção religiosa só deve ser considerada se tal perigo, na hipótese, não for iminente e houver outros meios de salvar a vida do doente.(Gonçalves, Carlos Roberto, Direito Civil Esquematizado, Parte geral. 3ªedição, São Paulo: Saraiva, 2012, pág.93).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Gabriel Baron

Um discente de Direito, Sociologia e Filosofia; crítico do paradigma ideológico político, social e jurídico que se consolida cada vez mais em nossa "realidade social" basilado na representação(leis) da representação(Estado e seus agentes) na representação(ordenamento jurídico). Em linhas gerais, um estudioso que busca deslindar através de estudos e pesquisas, mormente bibliográficas, o que é o tal " Estado Democrático de Direito" presente no art.1º da Carta Magna de 1988, na qual efetivamente temos um processo escatológico daquela ideia, quiçá quimérica, de cidadania, democracia e direitos humanos, os quais, diga-se de passagem, não passam de uma manifestação simbólica de uma evergesia jurídica do homem da "pólis" para o "homem da rua", visto que ainda não as conhecemos materialmente, mas apenas formalmente.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos