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Para o STJ, injúria é crime de racismo. Será?

26/09/2016 às 11:48

Resumo:


  • A decisão da E. Sexta Turma do STJ equiparou a Injúria Racial ao crime de racismo, contrariando a doutrina e jurisprudência dominantes.

  • Segundo a interpretação majoritária, a Injúria Racial é uma espécie de crime contra a honra qualificado pelo preconceito, não configurando crime de racismo.

  • A decisão do STJ gerou controvérsias e críticas na doutrina, que apontam para a necessidade de revisão e apontam a inexistência de base legal para equiparar a Injúria Racial ao crime de racismo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Comenta decisão polêmica do STJ sobre a diferença entre injúria racial e racismo, equiparando a primeira ao segundo.

A E. Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, contra a doutrina e a jurisprudência absolutamente dominantes, que o crime de Injúria Racial ou Injúria Preconceito, previsto no artigo 140, § 3º., CP é uma modalidade de “crime de racismo”, tal qual os crimes previstos na Lei 7.716/89. [1]

Na verdade, segundo ensinamento escorreito e reiterado, seja na doutrina, seja na jurisprudência pátrias, o crime previsto no artigo 140, § 3º., CP não constitui “crime de racismo” e sim uma espécie de crime contra a honra qualificado pelo preconceito ou discriminação, mais especificamente uma modalidade de “injúria qualificada”. Trata-se de mero xingamento ou ofensa verbal ou mesmo por meio de sinais e atos ofensivos à honra da pessoa com o detalhe importante, a agravar a reprimenda, de que o autor se utiliza de elementos referentes à raça, cor, etnia, origem, religião, condição de pessoa idosa ou deficiente da vítima.

Conduta similar não é prevista em nenhum dispositivo da lei que trata de reprimir realmente os crimes de racismo no Brasil, ou seja, a Lei 7716/89. Em seu artigo 1º., esse diploma deixa claro ser ele  que trata da punição “dos crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor,  etnia, religião ou procedência nacional”. As condutas previstas nos artigos 3º. a 20 da Lei  7716/89 nada têm a ver com ofensas verbais. São em geral vedações de acesso a benefícios, serviços, oportunidades, lazer etc. devido a preconceito (v.g. impedir alguém de assumir um emprego devido a ser negro). Há uma única conduta diferente, fugindo do padrão genérico, prevista no artigo 20 da lei sob comento, que constitui a ação de apologia ao racismo. Mesmo essa conduta nada tem de similar ao caso da injúria racial, pois não se trata de mera ofensa a um indivíduo, mas de apologia ao racismo em geral de forma indeterminada, do incentivo e defesa de práticas e teorias racistas.

Não se pode olvidar o fato de que quando o legislador criou a chamada “Injúria Racial” e fez a opção de alocá-la dentre os Crimes contra a Honra no bojo do Código Penal (por meio da Lei 9459/97, quando já existia a Lei 7716/89), consequentemente tomou a decisão de não integrá-la à Lei antirracismo (Lei 7716/89), o que poderia fazer perfeitamente se o desejasse. Tudo está a indicar que a “mens legislatoris” foi a de tratar a mera ofensa verbal não como crime de racismo, mas como uma espécie qualificada de injúria, tal como efetivamente ocorreu.

É interessante proceder a uma revisão doutrinário – jurisprudencial sobre o tema a fim de demonstrar como a recente decisão do STJ está em dissonância com o melhor entendimento a respeito da questão:

Andreucci afirma que é “comum o equívoco na tipificação dos fatos que consistiriam em injúria por preconceito como crime de racismo”. Percebe-se, portanto, que o STJ incide em um “equívoco comum” (diga-se de passagem, que poderia até ser comum para jejunos na área jurídica, mas não seria o que se espera de um Tribunal Superior). E prossegue o autor afirmando que o mero xingamento, ressaltando a cor ou a raça da vítima “não pode ser considerado crime de racismo”, já que não tem a característica comum àqueles delitos de segregação, mas tão somente o objetivo de ofender à “dignidade ou o decoro da vítima”. [2]  

O mesmo autor ainda apresenta decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo no mesmo sentido:

“A utilização de palavra depreciativas referentes à raça, cor, religião ou origem, com o intuito de ofender à honra subjetiva da pessoa, caracteriza o crime previsto no § 3º., do art. 140 do CP, ou seja, injúria qualificada, e não o crime previsto no art. 20 da Lei 7.716/89, que trata dos crimes de preconceito de raça ou de cor” (TJSP, RT 752/594). [3]

Bitencourt é ainda mais incisivo e chama de “deploráveis” os equívocos na tipificação daquilo que é uma injúria qualificada como se “crime de racismo” fosse. [4]

Capez faz uma análise percuciente da questão do conflito entre a Injúria Racial e o crime de racismo. Aponta que o surgimento da alteração no Código Penal teve exatamente por motivação o fato de que se costumava, indevidamente, tipificar meros xingamentos como crime de racismo, o que revelava impropriedade e desproporcionalidade. Por outro lado, a ofensa verbal envolvendo elementos de preconceito não tinha tratamento especial e o merecia. Com a previsão da qualificadora a questão foi resolvida. [5] Não obstante, segue necessário ter em mente a devida distinção entre a Injúria Racial e o Crime de Racismo. Este último se concretiza se a ofensa proferida tiver a qualidade de promover “verdadeira segregação racial”, nos termos da Lei 7716/89. Neste ponto é preciso salientar que, eventualmente, uma ofensa proferida a uma pessoa pode configurar “verdadeira apologia à segregação racial”, o que então, excepcionalmente, pode fazer com que uma ofensa verbal configure infração ao artigo 20 da Lei 7716/89 e não simples crime contra a honra.

São exemplos jurisprudenciais retirados da obra especializada de Christiano Jorge Santos, citado por Capez, a manifestação de um jornalista acerca da crítica à atuação de uma sindicalista negra, afirmando com todas as letras “ai que saudades do açoite e do pelourinho” (sic)! Perceba-se que numa situação como esta, mormente por meio de um veículo de comunicação de massa, a conduta não é um mero crime contra a pessoa, no caso contra a honra subjetiva. A situação, no caso concreto, realmente extrapola para a apologia ao racismo. O que não pode ocorrer é uma decisão no sentido de que toda e qualquer Injúria com elementos preconceituosos configure, por si só, crime de racismo.

Outro exemplo do citado Christiano Jorge dos Santos é do radialista da cidade de São Carlos-SP que foi condenado porque ao narrar a ocorrência de um furto na cidade, perpetrado por três indivíduos, um deles negro, afirmou: “Só podia ser preto” (sic). E ainda completou a barbaridade dizendo “cana neles, principalmente no preto” (sic)!!! Novamente a questão ultrapassa a honra subjetiva do ofendido e se constitui em nítida apologia ao racismo nos exatos termos do artigo 20 da Lei 7716/89. [6] Os exemplos são muito elucidativos. Primeiro no sentido de que Injúria Racial não é crime de racismo. Segundo esclarecendo que eventual ofensa verbal pode sim consistir em apologia ao racismo, espécie de crime de racismo, previsto no artigo 20 da Lei 7716/89. Mas, para isso é necessário que a ofensa ultrapasse o atingimento da honra subjetiva individual em situações nitidamente excepcionais. Ou seja, não é possível estabelecer o entendimento de que, como regra, a Injúria Racial constitui crime de racismo. A generalização pretendida pelo STJ constitui uma verdadeira afronta ao “Princípio da Legalidade”, à proibição de analogia “in mallam partem” no Direito Penal e um retrocesso à Responsabilidade Objetiva, pois que abriga uma presunção de intenção e atingimento de toda uma coletividade quando, na verdade, a ofensa se dá apenas entre os envolvidos sem qualquer extrapolação.

Conforme destacam Mirabete e Fabbrini, não se pode confundir a injúria qualificada pelo preconceito com seu direcionamento natural à honra subjetiva individual do sujeito passivo determinado, com os crimes de racismo previstos na Lei 7716/89 que descrevem condutas voltadas “à segregação ou discriminação de alguém”. [7]

Greco colaciona três julgados esclarecedores, inclusive o último do próprio STJ (5ª. Turma): [8]

“O agente que, tencionando atingir a honra subjetiva da vítima, direciona-lhe expressões pejorativas, a exemplo de ‘negra safada’, ainda que tenham relação com cor e raça, comete, em tese, a conduta delituosa descrita no artigo 140,§ 3º., do CPB, e não aquela definida no artigo 20 da Lei n. 7.716/1989, que exige,  como dolo específico, a intenção de ofensa a um grupo étnico ou racial, considerado em sua generalidade” (TJPB, ACr 055.2005.000.232-2/001. Rel. Des. Joás de Brito Pereira Filho, DJPB 30.03.2010, p. 8).

“Não se confunde injúria racial ou preconceituosa (art. 140, § 3º. do Código Penal) com os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça e cor, definidos e punidos pela Lei 7.716/89: enquanto aquela é a ofensa à honra subjetiva relacionada com a raça ou cor, a nota distintiva dos crimes de racismo consta da prática de atos de segregação, que visam impedir ou obstar alguém, por amor dos acidentes de sua cor ou etnia, o acesso aos bens da vida, ou o livre exercício de seus direitos” (TJSP, RESE 10839283500, 5ª. Câmara de Direito Criminal, Rel. Des. Carlos Biasotti, reg. 20.12.2007).

E finalmente do próprio STJ:

“O crime do art. 20 da Lei 7716/89, na modalidade de praticar ou incitar a discriminação ou preconceito de procedência nacional, não se confunde com o crime de injúria preconceituosa (art. 140, § 3º., CP). Este tutela a honra subjetiva da pessoa. Aquele, por sua vez, é um sentimento em relação a toda uma coletividade em razão de sua origem (nacionalidade)” (STJ, RHC 19166/RJ, Rel. Min. Felix Ficher, 5ª. Turma, DJ 20/11/2006, p. 342).

A decisão inusitada do STJ, proferida em decisão monocrática da lavra do Desembargador do TJSP convocado, na qualidade de Relator, Ericson Maranho, apresenta-se, “data venia”, teratológica pela infração à legalidade, à proibição de analogia “in mallam partem” e o retrocesso à chamada “Responsabilidade Objetiva”. Pretender equiparar, em conduta de ativismo judicial, a injúria racial a crime de racismo, não elencado na Lei 7716/89 é uma flagrante violação ao Princípio da Legalidade e uma manifestação de analogia prejudicial ao réu, inviável no Estado Democrático e de acordo com os mais comezinhos princípios do Direito Penal hodierno. Além disso, generalizar a ofensa verbal ou por sinais, invocadora de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião, origem, condição de idoso ou deficiente como sendo “crime de racismo”. Fazer isso de maneira genérica e indiferenciada, pretendendo impor uma regra legalmente inexistente, para além de violar a legalidade e até a divisão dos Poderes (ativismo judicial indevido na área legislativa), constitui uma clara e evidente defesa da “Responsabilidade Objetiva”. Isso porque se passa a presumir que qualquer ofensa irrogada contra alguém com elementos preconceituosos tem o fito de atingir uma comunidade de pessoas, um grupo social com objetivo de segregação e discriminação e não somente ao ofendido em sua honra subjetiva. Essa presunção também viola a Presunção Constitucional de Inocência, pois que se caracteriza como uma indevida presunção de culpa quanto ao elemento subjetivo específico do racismo, mediante mera análise superficial dos elementos objetivos da conduta.

A decisão, para além de teratológica, conforme acima exposto, é também desprovida, em seu conteúdo argumentativo, de um mínimo de obediência aos princípios lógicos mais básicos. Acontece que no decorrer do texto o Relator aborda a questão da decadência do direito de ação. Ora, se a decisão, logo em seguida, afirma que a injúria racial é um dos crimes de racismo, tal qual previsto na Lei 7716/89 e na Constituição Federal, então se torna incoerente a análise de questões sobre “representação” ou “decadência”. Ao afirmar que o artigo 140, § 3º., CP é um crime de racismo, então, consequentemente, esse crime, inobstante o que diga o Código Penal, tem de ser de ação penal publica incondicionada, jamais sujeito à representação do ofendido e a prazos decadenciais. Mas, o eminente Relator afirma tratar-se de racismo e não de crime contra a honra e discorre sobre a decadência e o direito de representação da vítima! Ora, se o crime de injúria racial é um crime de racismo, portanto imprescritível, isso significa que para ele não existe a possibilidade de extinção de punibilidade pela “prescrição”, a qual é comum a praticamente todos os crimes, salvo as exceções constitucionais. A prescrição é uma causa de extinção de punibilidade de maior envergadura e amplitude do que a decadência, a qual somente tem aplicação para crimes de ação penal privada ou pública condicionada, que são exceções. Qual a base lógica ou de razoabilidade para que um crime considerado imprescritível dependa de representação do ofendido sob o risco de decadência em seis meses? Não havendo possibilidade de extinção da punibilidade, mesmo passados muitos anos pela prescrição, como seria imaginável que em meros seis meses a mesma extinção se operasse por via do instituto da decadência? No caso de haver coerência na manifestação monocrática do eminente Relator, a questão da discussão sobre a decadência deveria ter sido afastada de plano sem maiores considerações, partindo-se para a argumentação de que se trata de um crime de racismo, portanto imprescritível. Porém, não foi isso que aconteceu. O Relator acaba, consciente ou inconscientemente, criando um híbrido que viola a lógica no que diz respeito ao chamado “Princípio do Terceiro Excluído” (“Tertium non datur”). Esse princípio básico a reger a estrutura do pensamento humano, dispõe que

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“se uma proposição é verdadeira sua negação é necessariamente falsa; se é falsa, sua negação é necessariamente verdadeira, ficando, portanto, excluída uma ‘terceira possibilidade’”. [9]

Sob esse prisma, ou bem a injúria racial é um crime de racismo e não pode jamais estar sujeita à representação do ofendido e prazo decadencial porque é imprescritível, ou não é um crime de racismo e por isso pode ser condicionada à representação da vítima e prazo decadencial, assim como à prescrição como qualquer outro crime. O que não é possível por violação a um princípio fundamental da lógica, é uma terceira opção híbrida aventada pelo Relator em sua manifestação. A criação dessa terceira opção inviável logicamente torna a manifestação do STJ autofágica.

Não há a menor razoabilidade em permitir a convivência entre decadência e imprescritibilidade quando a primeira é meramente um prazo estabelecido para atuação do ofendido, enquanto a segunda, para além de muito mais alargada em termos temporais, está relacionada ao chamado “Direito ao Esquecimento”, hoje reconhecido como um dos direitos fundamentais da personalidade, conforme inclusive Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal - CJF. [10] Segundo esse entendimento, “as pessoas têm o direito de serem esquecidas pela opinião pública e até pela imprensa. Os atos que praticaram no passado distante não podem ecoar para sempre, como se fossem punições eternas”. [11] Esse “Direito ao Esquecimento” já foi reconhecido em decisão proferida pela 4ª. Turma do próprio STJ (REsp 1.334.097-RJ, DJe 10/9/2013) e pelo STF com relatoria do Ministro Dias Toffoli no ARE 833248/RJ.

Observe-se que se até mesmo uma causa extintiva da punibilidade como a prescrição é vedada ao crime de racismo, afastando, portanto, o chamado “Direito ao Esquecimento”, fazendo pairar sobre aquele que comete tal ilícito essa pecha “ad aeternum”, não é possível que um crime dessa envergadura possa se extinguir pela via da mera decadência.

Ademais, o “decisum” do STJ sob discussão se sustenta na doutrina isolada e também desprovida de fundamentação argumentativa válida do autor Guilherme de Souza Nucci. O citado autor usa a famosa decisão do STF sobre o “caso Ellwanger”, onde aquela Corte Suprema estabeleceu a devida amplitude do termo “racismo” para afirmar que a injúria racial constituiria um exemplo de crime da mesma espécie previsto posteriormente pelo legislador no Código Penal. [12]

Ocorre que toda a argumentação doutrinária se dá por uma ligação artificiosa entre o “caso Ellwanger” (HC 82424/RS, Rel. Min. Moreira Alves, 17.09.2003) e a afirmação de que a injúria racial seria uma espécie de crime de racismo. Na decisão do STF, comentada por Nucci exaustivamente, a questão não é ser um mero xingamento pessoal capaz de se tornar crime de racismo. Ali se discute o conceito (ou preconceito) do próprio termo “raça” e sua aplicabilidade a outras situações que revelam discriminação ou segregação. Ellwanger escreveu um livro em que denegria a imagem de todo o povo judeu. Não ofendeu um judeu, um negro, um chinês, um branco, um idoso, um deficiente, índio ou seja lá quem for por questões discriminatórias. A conduta de Ellwanger analisada pelo STF era tipificada claramente no artigo 20 da Lei 7716/89. Tratava-se nitidamente de um caso de apologia ao racismo, jamais de mera injúria racial. Assim sendo, acenar com tal decisão do Pretório Excelso para fundamentar a classificação do artigo 140, § 3º., CP como “crime de racismo” é algo sem qualquer possibilidade de nexo, já que se tratam de assuntos totalmente diversos.

Contudo é possível encontrar quem pretenda defender a tese de que a não previsão e o não reconhecimento da injúria racial como uma espécie de crime de racismo configura um tecnicismo conspiratório que acaba criando barreiras institucionais para a devida punição da discriminação. Neste sentido se manifestam Munhoz e Brandão, recebendo com satisfação a decisão ora criticada do STJ:

“Entendemos que a distinção entre esses tipos penais confere um manto de tecnicidade que, em verdade, acaba por exacerbar o fosso entre a norma e a realidade, dificultando, na prática, o reconhecimento da ocorrência de discriminação racial”. [13]

É praticamente impossível não perceber nessa espécie de “Teoria da Conspiração”, o marco indelével deixado pela chamada “Escola de Frankfurt”, fundada por Felix Weil e sua denominada “Teoria Crítica”, no bojo da qual tudo e todos (menos os críticos da escola e seu adeptos) são mal intencionados opressores, sendo premente uma destruição ou desconstrução, não se sabendo o que se deve construir no lugar, mas sendo certo que a destruição é necessária.

O que se encara neste caso como um “tecnicismo” é o respeito ao Princípio da Legalidade e ao Princípio do “Favor Rei”, bem como à Presunção de Inocência e à culpa ou responsabilidade subjetiva. O que se deve criticar é um ativismo judicial indevido, violador inclusive da divisão de poderes. Isso porque, se for verdade que a punição da injúria racial, que difere amplamente do artigo 20 da Lei 7716/89, como crime contra a honra e não como crime de racismo, se constitui em uma espécie de inconstitucionalidade por deficiência protetiva, então o caminho não é que o Judiciário se arvore em legislador, procedendo a uma interpretação construída com analogia prejudicial ao réu. O caminho é a proposta de “lege ferenda” para alteração do quadro legislativo, revogando-se o § 3º., do artigo 140, CP e transplantando o ilícito para o bojo da Lei 7716/89. Aí sim, então, a injúria racial tornar-se-ia, legitimamente, um crime de racismo com todas as consequências correlatas.

Entende-se que mesmo essa reforma escorreita não seria o melhor caminho porque se trataria de uma reação violadora da proporcionalidade, onde a proclamada inconstitucionalidade por deficiência protetiva se converteria em inconstitucionalidade por excesso. Um mero xingamento verbal ou gestual direcionado a um indivíduo não se pode equiparar a crime de racismo dentro de um mínimo de razoabilidade e proporcionalidade. Afirmar isso não é defender quem assim atua, mas deixar claro que a reação penal tem de ser adequada à gravidade da ofensa, sob pena, inclusive, de banalizar o que se entende por efetivo “racismo”.   

Há inclusive quem na doutrina entenda que a punição especial da injúria racial já viola a proporcionalidade se comparada sua pena prevista com a de outros crimes como um homicídio culposo, aborto consentido, crimes de perigo individual etc. Damásio dá o exemplo daquele que ofende alguém de “alemão batata” e recebe pena idêntica àquele que mata um feto ou pena menor do que aquele que mata alguém culposamente. [14]

Pode-se afirmar, portanto, que a decisão do STJ sob comento foi equivocada e equiparou condutas que não são equiparáveis dentro do quadro legislativo atual. E mais, que não devem mesmo ser equiparadas, ainda que obedecendo a um processo legislativo adequado.


REFERÊNCIAS

ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Código Penal Anotado. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 2. 14ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

CANÁRIO, Pedro. STJ aplica “direito ao esquecimento” pela primeira vez. Disponível em www.conjur.com.br , acesso em 14.09.2016.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2014.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 7ª. ed. Niterói: Impetus, 2013.

JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar1996.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Volume 2. 32ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

LOPES, Marcelo Frullani. Direito ao Esquecimento. Disponível em www.migalhas.com.br, acesso em 14.09.2016.

MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. 30ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

MUNHOZ, Maria Letícia Puglisi, BRANDÃO, Juliana Ribeiro. Nas entrelinhas da distinção de injúria racial e racismo. Boletim IBCCrim. n. 285, ago., p. 17 – 18, 2016.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9ª. ed. São Paulo: RT, 2008.


Notas

[1] Cf. STJ, AgRg no AREsp 686965/DF, 6ª. Turma, j. 18.08.2015, DJe31.08.2015.

[2] ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Código Penal Anotado. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 352 – 353.

[3] Op. Cit., p. 353.

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 2. 14ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 375.

[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 313.

[6] Op. Cit., p. 315 – 316.

[7] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. 30ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 143.

[8] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 7ª. ed. Niterói: Impetus, 2013, p. 380.

[9] JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar1996, p. 260.

[10] LOPES, Marcelo Frullani. Direito ao Esquecimento. Disponível em www.migalhas.com.br, acesso em 14.09.2016.

[11] CANÁRIO, Pedro. STJ aplica “direito ao esquecimento” pela primeira vez. Disponível em www.conjur.com.br , acesso em 14.09.2016.

[12] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9ª. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 669 – 670.

[13] MUNHOZ, Maria Letícia Puglisi, BRANDÃO, Juliana Ribeiro. Nas entrelinhas da distinção de injúria racial e racismo. Boletim IBCCrim. n. 285, ago. 2016, p. 18.

[14] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Volume 2. 32ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 265. No mesmo diapasão e inclusive citando Damásio: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 2. 14ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 375 – 376. Este autor por último citado alerta para o perigo de “uso abusivo da proteção legal”. Op. Cit., p. 376. 

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Para o STJ, injúria é crime de racismo. Será?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4835, 26 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52141. Acesso em: 18 dez. 2024.

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