Direito ao esquecimento como decorrência dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana

19/09/2016 às 12:27

Resumo:


  • O direito ao esquecimento é um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na Constituição Federal de 1988.

  • No Estado Social, a Constituição Federal passou a ter uma concepção jurídica, com normas constitucionais possuindo força normativa e interagindo com legislações infraconstitucionais.

  • Os direitos da personalidade, como a vida privada, a intimidade e a imagem, são fundamentais para a proteção da dignidade da pessoa humana, sendo essenciais para garantir a harmonia nas relações jurídicas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Parte da doutrina considera o direito ao esquecimento como um direito da personalidade não positivado, porém, socialmente reconhecido como fundamental para resguardar a dignidade da pessoa humana.

           O direito ao esquecimento decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto na CF/88, no art. 1º, IIII. Tal posição ganhou força com a aprovação do enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil, defendendo que a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.

           Com a transição do Estado Liberal para o Estado Social, o Direito Civil passa por profundas modificações. O enfoque deixa de ser a garantia da autonomia e liberdade dos cidadãos e passa a ser a promoção de justiça social nas relações privadas. No ordenamento jurídico brasileiro, o Estado social se consolidou com a Constituição Federal de 1988 (CF/88).

            No Estado Social, a Constituição Federal deixa de ter uma concepção política para adotar uma concepção jurídica. Assim, todas as normas constitucionais possuem força normativa. Nesse contexto temos a Constituição Federal tratando de matérias paralelamente com legislações infraconstitucionais.

            Considerando que o ordenamento vem se apresentando cada vez mais aberto com inúmeras normas jurídicas regulando diversas matérias, percebeu-se a necessidade de compreensão harmônica do sistema jurídico. Com isso, o paralelismo que existia entre o Código Civil e a Constituição Federal não existe mais. Agora, o Código Civil passa a interagir com a Constituição Federal em um verdadeiro “diálogo das fontes” (CARNACCHIONI, 2012, pg 40).

            É verdade que a Constituição da República é a norma suprema do ordenamento jurídico, e que todas as demais normas e atos jurídicos lhe devem obediência formal e material, sob pena de se lhes reconhecerem a inconstitucionalidade. No entanto, tratando-se do sistema jurídico de um país no qual, historicamente, o desrespeito à norma constitucional se fez costumeiro, motivos diversos levavam ao reconhecimento de verdadeiro desprezo das potencialidades da norma constitucional como fonte de um direito vivo, próximo da realidade social brasileira (CHAVES e ROSENVALD, 2012, pg 62).

            Por essa razão, afirma-se que esse novo paradigma constitucional trouxe unificação e coerência ao sistema jurídico brasileiro, tornando-o um sistema jurídico uniforme, coerente e harmonizado a partir do referencial garantista da Constituição Federal.

            Nesse dialogo das fontes, o Código Civil se apresenta como norma geral e de aplicação genérica a todas as relações privadas. No entanto, não se pode ignorar que todas as normas de Direito Privado (Código Civil e Leis Extravagantes) estão fundamentadas a partir da normatividade constitucional, devendo obediência aos valores emanados da Carta Magna e, por isso, fundamentadas em princípios de dignidade, solidariedade social, igualdade substancial e liberdade (CHAVES e ROSENVALD, 2012, pg 62).

            A CF/88 prevê expressamente regras e princípios de direito privado, que antes estavam previstos apenas em legislações infraconstitucionais. A partir da CF/88 o Direito Civil não é visto apenas como um ramo do direito privado que trata de questões exclusivamente patrimoniais, sendo necessária uma nova releitura do Direito Civil sob uma perspectiva constitucional – Direito Civil Constitucional.

            Hoje é inegável que os princípios constitucionais gozam de força normativa e eficácia jurídica. Para Carnacchioni, em razão desse reconhecimento “passa a ser construída uma teoria dos direitos fundamentais, toda ela baseada no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”. Dessa forma, a pessoa humana passa a ser o centro das relações jurídicas, sendo titular de uma proteção diferenciada, principalmente no âmbito dos direitos fundamentais (CARNACCHIONI, 2012, pg 41).

            A CF/88 prevê em seu artigo 1º, inciso III, que a dignidade da pessoa humana é um fundamento da nossa República. Tal afirmação repercute diretamente na interpretação do Direito Civil e consequentemente nas relações privadas. Nessa releitura do Direito Civil à luz da Constituição o ser humano é o centro do sistema jurídico, que tem como entorno todos os demais institutos direcionados à tutela das pessoas e à garantia da dignidade destas.

            O principio da dignidade da pessoa humana, clausula geral de todas as normas jurídicas privadas, representa um direito geral da personalidade.  Portanto, o estudo do tema do direito ao esquecimento passa necessariamente pela análise de direitos da personalidade como à imagem, à honra, à intimidade, à privacidade, cujo respeito à sua essência reflete a observância do princípio da dignidade da pessoa humana. 

            Daniel Carnacchioni (CARNACCHIONI, 2012, pg. 213) afirma que:

A dignidade da pessoa humana representa um direito geral da personalidade, a base de todos os demais direitos relacionados à personalidade da pessoa natural, denominados direitos especiais, como honra, liberdade, nome, imagem, vida, privacidade, intimidade, entre outros. Portanto, o fundamento de todos os direitos relacionados à personalidade é a dignidade da pessoa humana. Essa clausula geral é o ponto de referencia, o valor fundamental a ser objeto de tutela do estado e a base de inúmeras situações existenciais.

            Os direitos da personalidade são direitos subjetivos, essenciais, inatos, vitalícios e fundamentais para resguardar a dignidade da pessoa humana. Tem como características a imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, relatividade, efetividade e aplicabilidade imediata nas relações privadas.

            Segundo Daniel Carnacchioni (CARNACCHIONI, 2012, pg. 213):

Os direitos da personalidade, quais sejam vida, integridade física, liberdade, honra, imagem, vida privada e intimidade, entre outros, são inerentes à existência da pessoa humana e essenciais para a pessoa ter dignidade, ser uma cidadã respeitada, viver em sociedade onde as relações privadas necessitam de cooperação mútua entre os sujeitos, não sofrer discriminações de qualquer natureza, não viver em estado de absoluta pobreza e ter oportunidades no meio social. Os direitos relativos à personalidade garantem a concretização desses princípios e objetivos previstos e tutelados em nossa Lei fundamental.

            Seguindo a mesma linha de argumentação, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald afirmam que os direitos da personalidade derivam da própria dignidade reconhecida à pessoa humana para tutelar valores mais significativos do indivíduo, seja perante outras pessoas, seja em relação ao poder público. Com as “cores” constitucionais, os direitos da personalidade passam a expressar o minimum necessário e imprescindível à vida com dignidade (CHAVES e ROSENVALD, 2012).

            Kildare Gonçalves Carvalho (CARVALHO, 2007, p. 549) aduz que a dignidade da pessoa humana:

é o fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa e que com base nesta é que devem aqueles ser interpretados.

            Os direitos da personalidade estão diretamente ligados à dignidade da pessoa humana, então eventual violação aos direitos da personalidade também violam a dignidade do individuo.  Por esse motivo, o direito à vida privada (privacidade e intimidade), que é um dos mais relevantes, no que diz respeito à proteção da dignidade e personalidade humana, é reconhecido de modo expresso na Constituição Federal.

            Segundo SARLET (2012, p. 390/391), diversamente de outras ordens constitucionais, a Constituição Federal de 1988 não reconheceu apenas um direito genérico à privacidade (ou vida privada), mas optou por referir tanto à proteção da privacidade, quanto da intimidade, como bens autônomos, tal como no caso da honra e imagem.

            A constituição Federal no artigo 5º, inciso X, prevê a proteção à vida privada e à intimidade. Porém, o Código Civil no artigo 21, regula apenas a vida privada, não fazendo referencia à intimidade.

            A vida privada é um direito da personalidade, sendo, portanto, objeto de tutela estatal. A vida privada, ou direito à privacidade, está relacionada aos aspectos sociais e profissionais da pessoa humana e nas suas relações sociais. A intimidade é o direito da personalidade, cujo objeto de tutela é restrito à vida pessoal. É o direito de estar só ou de ficar isolado (CARNACCHIONI, 2012, pg. 307).

            Por conta da proteção constitucional e legal dos direitos da personalidade, havendo violação a tais direitos, quando não autorizada, caracteriza dano moral ou dano à pessoa, passando a pessoa lesada ter direito a uma compensação financeira por essa violação.

            Os direitos à privacidade e à própria imagem formam a proteção constitucional à vida privada, protegendo um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas. Segundo Alexandre de Moraes (MORAES, 2014, pg, 54):

         Encontra-se em clara e ostensiva contradição com o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1ª, III), com o direito à honra, à intimidade e à vida privada (CF, art. 5 a, X) converter em instrumento de diversão ou entretenimento assuntos de natureza tão íntima quanto falecimentos, padecimentos ou quaisquer desgraças alheias, que não demonstrem nenhuma finalidade pública e caráter jornalístico em sua divulgação. Assim, não existe qualquer dúvida de que a divulgação de fotos, imagens ou notícias apelativas, injuriosas, desnecessárias para a informação objetiva e de interesse público (CF, art. 5º, XTV), que acarretem injustificado dano à dignidade humana autoriza a ocorrência de indenização por danos materiais e morais, além do respectivo direito à resposta.

             A proteção aos direitos humanos e aos direitos da personalidade não tem se limitado ao domínio reservado do Estado, isto é, a competência nacional exclusiva. Por tal razão a CF/88 prevê no artigo 5º, § 2º, que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

            No âmbito internacional, também temos a proteção aos direitos da personalidade que fundamentam a tese do direito ao esquecimento. O artigo 12 da Declaração Universal dos Direitos do Homem protege expressamente o direito a intimidade aduzindo que ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação.

            O pacto de São José da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos), vigente em nosso país, também reconhece a proteção à honra no art. 11, dispondo que “toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”.

            Reconhece, ainda, a proteção à vida privada da pessoa, asseverando que “ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”.

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            A tese do direito ao esquecimento surge a partir da violação dos direitos da personalidade. A pessoa não pode ter seu nome, sua intimidade e sua vida privada, expostos indevidamente e ainda ter que conviver com essa exposição sempre que alguém achar conveniente noticiar na mídia. Ainda que os fatos noticiados sejam verdadeiros, não podem ser explorados por tempo indeterminado.

            Com fundamento nos direitos da personalidade citados, tem-se admitido a existência de um “direito fundamental ao esquecimento”. Proteger o individuo, sua dignidade e seus direitos personalíssimos, é assegurar a esse individuo o direito de não ser lembrado por fatos que lhe cause constrangimento.

            O direito ao esquecimento, não assegura ao individuo apagar a sua história. Porém, lhe assegura à possibilidade de discutir o modo que sua história está sendo contada, e até mesmo a finalidade da informação ao reviver fatos pretéritos.

            Essa proteção é essencial nos dias atuais. Dada tamanha relevância, o tema foi objeto de debate entre vários juristas brasileiros na VI Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho de Justiça Federal/STJ, que resultou na aprovação do Enunciado n. 531, cujo teor ora se transcreve:

ENUNCIADO 531 – A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.

Artigo: 11 do Código Civil

Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.

            Os enunciados do CJF são interpretações doutrinárias que servem de orientação para o entendimento de artigos do Código Civil. Neste caso, o referido enunciado, afirma que o direito ao esquecimento está implícito na tutela da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, CF/88).

            O direito ao esquecimento tem sua origem no âmbito do Direito Penal, e está intrinsicamente ligado à ressocialização do ex-detento, que tem direito a uma nova chance para se reintegrar à sociedade, conseguir emprego e restaurar sua dignidade sem sofrer preconceitos e constrangimentos.

            No âmbito do Direito Civil, o direito ao esquecimento geralmente está atrelada a fatos noticiados pela mídia. Se por um lado o direito à informação é garantido pela Constituição Federal, por outro, é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem, àquele que se sentir ofendido pela publicação da noticia.

            No Código Civil, também temos a previsão de tutela preventiva e reparatória aos direitos da personalidade. É o que dispõe o art. 2º: “pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.

            O direito de ser esquecido é um direito da personalidade, não previsto na legislação, mas socialmente reconhecido e protegido no ordenamento jurídico atual. Fruto de uma construção doutrinária, o direito ao esquecimento decorre da própria dignidade da pessoa humana.

            O direito ao esquecimento é também chamado de “direito de ser deixado em paz” ou o “direito de estar só” e, surge nesse conflito, sendo definido como o direito que uma pessoa possui de não permitir que um fato, ainda que verídico ocorrido em determinado momento de sua vida seja exposto ao público em geral, causando-lhe sofrimento ou transtornos. (CAVALCANTE, 2014, p. 198)

            O direto ao esquecimento se fundamenta exatamente no fato de ser reconhecido como um direito da personalidade, isso porque, está intimamente ligado, à imagem, à vida privada (privacidade e intimidade) e à honra. Tutelar, tais direitos significa tutelar a própria dignidade humana, objetivo final de todo o ordenamento jurídico.

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Sobre o autor
Thiago Santos Ribeiro

Advogado. Graduado em Direito pela Centro Universitário Unieuro – Brasília. Pós-Graduado em Ordem Jurídica e Ministério Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - FESMPDFT (798 horas aulas), e em Direito Público pela Faculdade Processus (382 horas aulas). <br>

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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