Nexum e a teoria dualista

24/09/2016 às 07:05
Leia nesta página:

O nexum é um dos institutos mais antigos do direito romano a tratar de contratos. Por sua vez, a teoria dualista das obrigações tem aplicações contemporâneas. A evolução histórica do direito mostra sua correlação.

I – NEXUM E A MANCIPATIO

Na história do direito, destaco o nexum, que é considerado o mais antigo contrato formal romano.

Revestia-se do mesmo ritual da mancipatio, processando-se, per aes et libram, presentes cinco testemunhas e o libripens. A passagem do dinheiro era, a principio real, depois passou a ser fictícia. O nexum, era inicialmente um empréstimo, tornou-se, depois, em Roma, um processo para criar quaisquer obrigações em dinheiro.

Nexum era uma forma de mancipatio , uma transferência simbólica dos direitos que envolveu um conjunto de balanças, pesos de cobre, e um juramento de fórmulas, como disse Lívio(A história de Roma, VIII, 28). Nos termos do contrato Nexum, um homem livre se tornou um escravo ligação ou nexo, até que pagasse a sua dívida ao credor, ou obaeratus. 

Varro deriva a palavra Nexum desuum nec "e não a própria," e embora esta etimologia seja  incorreta à luz da ciência moderna lingüística.

 Além disso, não há formalmente um  único contrato Nexum, é possível que houvesse muitas variações do contrato Nexum, e que os detalhes de contratos Nexum foram trabalhados em uma base caso a caso.  

Servidão por dívida existia no início da República, em grande parte como resultado da crescente controle sobre o ager publicus , ou terras públicas, por indivíduos que adquiriram riqueza desproporcional e poder, e distorceram o ideal republicano de uma comunidade . Como os agricultores e trabalhadores perderam o acesso à terra que teoricamente foi realizado em comum pelas povo romano (Populus Romanus), eles foram incapazes de ganhar a vida, e ao Nexum recorreram como garantia de dívidas.

Apesar de ser constrangedor, em afronta à liberdade (libertas), os contratos Nexum eram uma alternativa em Roma preferível à escravidão para os devedores, uma vez que os escravos podiam ser vendidos ou mortos por seus mestres na vontade. Embora NEXI eram frequentemente espancados e abusados por sua obaerati, mantiveram (se, por vezes, apenas em teoria) a sua cidadania romana e direitos(A Cambridge História Antiga 2ª Ed. Vol. Vol VII. II: The Rise of Rome a 220 aC Cambridge University Press.. Grã-Bretanha: 1990. p 209).  Os credores poderiam lucrar mais com um contrato Nexum, uma vez que recebiam  um trabalhador de forma motivada, em vez de um escravo. Uma dívida pater famílias , ou a cabeça legal da família Romana, poderia  oferecer seu próprio filho para Nexum ao invés de si mesmo.

A mancipatio, como resumiu Renato Avelino de Oliveira Neto (Mancipatio)  é um dos modos de aquisição derivada da propriedade; é um negócio jurídico do ius civile formal e bilateral. É ato mediante o qual alguém transfere a outrem a propriedade ou poder semelhante a propriedade sobre determinadas coisas. Serve para adquirir direitos dominicais sobre pessoas ou coisas 

O seu ritual clama a presença de no mínimo cinco testemunhas convocadas para o ato e o libripens intervêm como portador da balança. Na presença do alienante (mancipio dans) e das pessoas já mencionadas, o adquirente (mancipio accipiens) coloca a mão sobre a coisa ou pessoa a adquirir ("daí mancipatio, mais antigo: mancipium de manus e capere")[ [e recita a fórmula : hunc ego hominem ex iure Quiritium meum esse aio isque mihi emptus esto hoc aere aeneaque libra. [Ao mesmo tempo que pronuncia a fórmula, o adquirente pesa o cobre na balança, que representa certa quantia em dinheiro, e o libripens bate com o metal (raudusculum) na balança para se certificar da qualidade do mesmo e entrega o cobre já pesado ao alienante. Tudo se passa sob a inspeção do portador da balança.  

É uma compra em dinheiro, em que a propriedade se adquire por troca, contra um preço pago em simultâneo. Isto nos remete a tempos em que o dinheiro em Roma ainda não era em moeda cunhada, e sim barras de cobre não amoedado, cujo valor dependia do peso. Por isso, a mancipatio do direito antigo apresenta-se como uma permuta, uma venda real realizada sempre à vista, pois as barras metálicas eram os instrumentos de troca e sua pesagem era real.

Na Época Arcaica e durante toda a Época Clássica do Direito Romano, a mancipatio, cujo objetivo era dar publicidade ao ato de transferência de propriedade perante cinco testemunhas, foi muito utilizada. "As últimas referências legislativas datam dos anos 355 e 395" 

Só podem ser objeto de mancipatio res mancipi [que são os prédios itálicos, os escravos, gado grosso (bois, cavalos e burros) e servidões rústicas (que tenham finalidade agrícola)  v.g., servidão de passagem e águas. Todas as outras coisas são res nec mancipi, cuja propriedade é transferida mediante traditio. 

Este fato de dar preferência a estes tipos de coisas (res mancipi), explica-se, pois na época rural eram eles os bens mais valiosos. 

 Ela começa a perder a importância já no final da Época Clássica, como explicou Bonfarte(Corso di diritto romano , II, 1928) quando a transmissão não formal de res mancipi produz a propriedade bonitária. No período justinianeu, o imperador através das interpolações acaba com a distinção entre res mancipi e nec mancipi, desaparecendo assim a mancipatio, que foi substituída pela  "E se ainda há vestígios nos séc VI e VII e nas épocas lombardas e franca, estamos perante puras fórmulas notarias que revelam, todavia, a força que sua tradição obteve nos espíritos" 

 Veja-se o procedimento.

No fim de 30 dias podia o credor intentar a legis actio per manus iniectionem a qual o autorizava, se o devedor não pagasse nem apresentasse  quem o fizesse(vindex), a prender o devedor(nexus) em sua prisão doméstica durante 60 dias, acorrentando-o e fazendo-o  trabalhar servorum loco. Se esse último prazo se esgotasse sem que fosse feito o pagamento ou um acordo, o credor podia matar o devedor ou vende-lo como escravo, além do Tibre.

O credor do nexum não precisava, por conseguinte, de uma sentença para proceder a execução. O contrato, por si, só tinha força executiva, proporcionando imediatamente a sujeição física do devedor ao credor. Essa eficácia do nexum, na lição de Ebert Chamoun(Instituições de direito romano, 1968, pág. 355) depois de ocasionar batalhas entre patrícios credores e os plebeus devedores, foi abolida, pela Lei Poetelia, de 326 a.C, que suprimiu a condição dos nexi. A partir daquela lei não o corpo do devedor, mas seus bens é que podiam ser responsabilizados pelos seus débitos ou por débitos alheios.

De acordo com historiador Tito Lívio, o  Nexum foi abolida por causa da excessiva crueldade e luxúria de um único usurário, Lúcio Papirio. Em 326 aC, um jovem rapaz chamado Gaius Publilius foi fiador à dívida de seu pai, tornando-se o nexo de Papirio(em outra versão, Dionísio de Halicarnasso registra que Publilius havia emprestado o dinheiro para o funeral de seu pai). O rapaz era conhecido por sua juventude e beleza, e Papirio o desejava sexualmente.  Ele tentou seduzir Publilius com "lasciva conversa ", mas quando o menino não respondeu, Papirio ficou impaciente e lembrou o menino de sua posição como escravo vínculo. Quando o menino novamente recusou seus avanços contundentes, Papirio lhe tinha despojado das  amarradas. O menino ferido correu para a rua, e um clamor entre as pessoas levou  os cônsules a convocar o senado, resultando na Lex Poetelia Papiria, que proibiu fossem segurados devedores em cativeiro por sua dívida e exigiu que a propriedade do devedor fosse usada como garantia. Todas as pessoas confinadas ao abrigo do contrato Nexum foram libertadas e  o Nexum como uma forma de contrato legal foi proibido depois, conforme Tilo Livio(História de Roma, VIII, 28).

Cicero considerada a abolição do Nexum principalmente uma manobra política para acalmar temporariamente os plebeus. 

É importante ter em mente o que segue:

1.     Embora o Nexum como um contrato legal foi abolida, servidão por dívida persistiu no caso de devedores em falta, uma vez que um tribunal pode conceder aos mutuantes o direito de tornar  insolventes devedores como escravos de títulos, segundo Brunt( Conflitos Sociais na  República romana,  Chatto & Windus Ltd. Londres:. 1971. pp 56-57)

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Depois dessa lei, privado que foi de sua característica fundamental , que era também a sua grande vantagem, o nexum ficou reduzido a um conjunto de formalidades difíceis e incômodas.


II – TEORIA DUALISTA

Veio a teoria dualista.

Alois (Aloys) Ritter von Brinz foi o  percursor da Teoria Dualista das Obrigações, dividindo o vínculo obrigacional em Schuld (débito) e Haftung (responsabilidade), o que equivaleria ao debitum e à obligatio do direito romano. Isso foi feito a partir de uma releitura das fontes. Isso no século XIX.

Na Itália, a materia foi desenvolvida por Pacchioni.

É antiga a noção pelal qual o vínculo é elemento da obrigação. Das Institutas de Justiniano consta que “obligatio est iuris vinculum, quo necessitate adstringimur alicuis solvendae rei secundum nostrae civitatis iura”.

O vínculo, constituído pelo enlace dos poderes conferidos ao credor com os correlativos deveres impostos ao titular passivo da relação, forma o núcleo central da obrigação, o elemento substancial da economia da relação.

A teoria dualista foi aperfeiçoada, no século XX, por Von Gierke, decompondo a obrigação em dois momentos: schuld, como um dever legal em sentido amplo, mas em sentido estrito é a dívida autônoma em si mesma, que tem por conteúdo um dever legal; e haftung, que consiste na submissão ao poder de intervenção daquele a quem não se presta o que deve ser prestado.

O primeiro elemento consiste no dever de prestar, na necessidade de observar certo comportamento e o segundo na sujeição dos bens do devedor ou do terceiro aos fins próprios da execução, ou seja, na relação de sujeição que pode ter por objeto, tanto a pessoa do devedor(antigo direito romano) como uma coisa ou complexo de coisas do devedor ou de terceiro.

Enquanto a dívida consiste no dever de prestar, a responsabilidade é prerrogativa conferida ao credor de tomar bens do devedor para a satisfação da dívida.

Cabe ao mutuário entregar bem equivalente  em quantidade e qualidade ao emprestado(dívida ou schuld). Seus bens se sujeitam ao adimplemento da obrigação (responsabilidade ou haftung). Se entregar a prestação primária se extingue. Se não, pode o credor colocar em ação a prerrrogativa de tomar bens do devedor(haftung).

Na lição do Ministro José Carlos Moreira Alves (Direito romano, volume I, pág. 5), duas são as importantes distinções entre dívida e responsabilidade. A primeira é que surgem em dois momentos diversos: a dívida desde a formação da obrigação e a responsabilidade posteriormente quando o devedor não cumpre a prestação devida. A segunda é que o debitum é elemento não coativo(o devedor é livre para realilzar ou não a prestação), já a obligatiio é um elemento coativo.

Para Serpa Lopes (Curso de direito civil, 2º volume, 1995, pág. 11)  o debate se coloca nos seguintes termos: “onde, pois, assenta o núcleo essencial da obrigação? Estará na obrigação do devedor de cumprir a prestação ou no poder do credor de contra ele agir coativamente e, definitivamente, no poder de agressão em sobre o seu patrimônio, no caso do inadimplemento?” O autor esclarece que para os clássicos a essência da obrigação esta na dominação do credor sobre certo ato do devedor e a segunda pretende situá-la nos próprios bens a que o devedor é obrigado a prestar.

Fica a máxima no direito moderno: dever de pagar as obrigações e responsabilidade patrimonial caso não pagas. É a teoria dualista, que envolve o SCHULD e HAFTUNG. O princípio da responsabilidade patrimonial no processo de execução moderno, origina-se da distinção entre débito (Schuld) e responsabilidade (Haftung), admitindo a sujeição dos bens de terceiro à excussão judicial, nos limites da previsão legal.

Na lição de Fábio Konder Comparato (Essai d´analyse dualiste de l´obligation em droit privé, 1964, pág. 8)  “o grande aporte da teoria dualista da obrigação à doutrina contemporânea foi o de demonstrar que a obrigação não é uma relação simples e unitária, mas que se compõe de dois elementos: a relação de crédito e de débito, schuld, que nós chamamos de dever e a relação de coerção e de responsabilidade(haftung), a que nós chamaremos de vinculo". 

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos