Quando nasce o bebê, nem sempre nasce uma mãe

– a contradição entre Direito e Biologia.

26/09/2016 às 19:22
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Um convite à reflexão sobre o marco inicial do reconhecimento da maternidade, distinto em termos jurídicos e biológicos.

Desde os tempos das cavernas, os homens saíam à caça e as mulheres permaneciam na furna, cuidando das crias e esperando que o alimento fosse provido pelo macho alfa paleolítico. Séculos se passaram e a realidade mudou, um pouco, mas mudou. Na época feudal, os camponeses trabalhavam todos, independentemente de gênero e idade, e a mulher ainda somava a exclusividade dos cuidados da casa e da família, enquanto na nobreza, os homens realizavam suas atividades profissionais durante o período em que as mulheres permaneciam responsáveis por fiscalizar os cuidados dos filhos, zelados por servas fieis.

A sociedade evoluiu a passos largos, mas ainda assim, predominantemente, os brinquedos femininos induzem à panelinhas e bonecas, no intuito de estimular o senso maternal, e os garotos são presenteados com miniaturas de carros, brinquedos de lógica e de luta, realçando a virilidade.

Mais recentemente denotamos uma reversão de papeis com a colocação da mulher no cenário profissional, o que ocasionou o rebaixamento de preconceitos machistas que predominaram em uma comunidade que não encontra mais lugar no cenário atual. Hoje, há homens que permanecem no lar e cuidam dos filhos, enquanto suas esposas são as responsáveis pela satisfação das despesas comuns.

Lamentavelmente, mesmo com a assunção mais significativa de responsabilidades paternas, a evolução humana não compreende o fato lógico de que é a mulher que desenvolve em seu corpo outra vida, mas a concepção é fruto da atuação incisiva também do homem na relação, que possui igualdade de direitos e obrigações em relação ao filho.

Assim, sem a cultura do planejamento familiar, a roda dos expostos, onde eram largados bebês para serem cuidados por instituições de caridade, deu lugar a um aumento repugnante de estatística sobre abandonos em lixões, vielas e um assombroso número de mortes por abortos ilegais.

As escolas, os postos de saúde e as farmacêuticas distribuem mecanismos contraceptivos, que, por si sós, não se revelam suficientes para evitar o abandono de crianças e a busca desesperada por soluções reprováveis à gestação indesejada.

Há um fator ainda mais grave: concepção precoce em crianças e pré-adolescentes, muitas das quais não contam com o apoio familiar e cujas gestantes restam impossibilitadas de se inserir no mercado de trabalho para colaborar com a criação da prole rejeitada, inclusive, pelo próprio genitor, quando este é conhecido.

A realidade brasileira é semelhante à de outros países subdesenvolvidos, e o cenário atual tem se revelado incapaz de se adaptar a esse perfil gestacional, seja no âmbito protetivo e de políticas públicas, ou na busca por solução pacífica de conflitos judiciais decorrentes do abandono infantil, inaptidão para o exercício do poder familiar e a efetiva punição aos praticantes do aborto ilegal.

A par de toda essa situação caótica, encontra-se a posição ainda gritante de mulheres que, independentemente do nível de instrução, optam pelo planejamento de sua vida com base no relógio biológico. O alerta vermelho que se aciona conforme a idade avança lembra sempre que há um tempo cronometrando em direção aos resquícios de sua fertilidade, disparando mensalmente os últimos óvulos que se despedem antes do início dos primeiros sintomas da menopausa.

Essa pressão social pela maternidade pode induzir à gestações não desejadas ou planejadas, muitas das quais ocorrem sem o adequado planejamento familiar, e consequentemente impactando no aumento de doenças emocionais em decorrência do abandono da grávida e do bebê, bem como induzindo a mãe à se submeter a condições de trabalho degradantes, isto em razão da necessidade de manutenção material da nova constituição familiar, instaurando assim um ciclo vicioso na nossa sociedade, ainda patriarcal.

Biologicamente, a mulher se percebe mãe no instante em que se dá conta que aquela bendita visita mensal não chega, e então os instantes de fúria foram substituídos por náuseas, pelo sono descontrolado e pela incomparável sensibilidade decorrente das manifestações hormonais, denunciando o desenvolvimento de um outro ser humano. O teste de farmácia e o exame de sangue apenas confirmam o que o corpo já demonstrava com os típicos sintomas de uma gestação.

Nesse momento, apesar de naturalmente a gestante ser declarada como responsável por aquela vida que se estabelece em seu ventre, há aparente contradição jurídica quanto ao reconhecimento da sua condição no sistema legal.

Isso porque o sistema biológico e jurídico nem sempre caminham lado a lado, de mãos dadas em direção à harmônica integração das convicções. A discussão acerca da possibilidade de aborto de fetos anencefálicos é um exemplo desta posição. A existência de decisões jurídicas que extinguem e reconhecem vínculos familiares entre pessoas vivas também demonstra que este pensamento comporta inúmeras e imprevisíveis exceções.

O instinto protetivo, que alguns defendem ser decorrente da própria gravidez, nem sempre se revela presente, como nos casos de opção consciente por aborto e abandono infantil. Se a gestação inspirasse a maternidade, não teríamos mulheres incapazes de amar aqueles que carregaram consigo por 9 meses. Do mesmo modo, o instinto materno não afloraria apenas na gestação uterina, mas também naquela expectativa gerada nos corações de mulheres que se tornaram mães com a adoção destas mesmas crianças excluídas do seu núcleo familiar originário.

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Além dessa circunstância, o reconhecimento da gestação e o instinto materno não fornecem guarida aos operadores jurídicos para superar os marcos biológicos do reconhecimento da maternidade. Para tanto, a supremacia do valor da vida ganha outros contornos que transcendem a personalidade da genitora e a própria existência fetal.

Nesse sentido, o ponto central da discussão do Supremo Tribunal Federal sobre a [im]possibilidade de interrupção de gravidez de feto anencefálico é o início da vida, que para alguns se dá a partir da concepção, enquanto outros o consideram desde a transformação do embrião em feto, por volta da décima semana, e alguns outros apenas com a existência de vida extrauterina.

Dispondo sobre o assunto, o Código Civil estabelece em seu artigo 2° que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, isto apesar de não haver no no conjunto legislativo qualquer rol desses direitos a serem garantidos a quem ainda não respirou além das paredes uterinas.

Presume-se, então, que os alimentos gravídicos são cabíveis por uma necessidade biológica e que beneficiam não apenas a gestante, o feto em desenvolvimento que o principal sujeito de direitos dessa espécie de relação jurídica e natural.

Assim, a legislação especifica a possibilidade de se resguardar a vida do nascituro, com a atribuição de responsabilidade aos genitores, mas pouco se encontra na doutrina em relação às obrigações iniciais do exercício da maternidade, já que somente declarado legalmente que ao pai conhecido compete auxiliar materialmente durante a gestação (Lei n. 11.804/2008). Talvez assim agiu o legislador porque tal concepção inerente ao dever de proteger e cuidar dos filhos, mesmo aqueles ainda não nascidos, deveria ser muito bem compreendida por uma sociedade que se autodetermina fraternal.

Como a realidade é bem diferente, não se denota harmonia de entendimento nos tribunais pátrios a respeito do tema, e pouco se discute nos autos processuais sobre a liberação de aborto, já que tal possibilidade é absolutamente rechaçada na atual conjuntura legal, não havendo qualificação para o ato decidido de uma mulher que simplesmente não deseja ser mãe.

Logo, é mais do que conveniente não se reconhecer a possibilidade do livre aborto no Brasil, mantendo-se apenas as hipóteses legalmente previstas (art. 128 do Código Penal: para salvar a vida da gestante ou em caso de gravidez decorrente de estupro).

Esse posicionamento contrário ao aborto se revela o mais acertado não só pela inexistência de uma cultura de planejamento familiar e segurança nos procedimentos médicos, mas também em decorrência de uma análise integrativa do conjunto de dispositivos da Constituição Federal, segundo a qual a família e a maternidade são referências do Estado Democrático de Direito, ao passo que aquela recebe especial proteção, indissociável das escolhas e da responsabilidade inerentes a esta.

Sob esta ótica, seria possível transportar do sistema legislativo conceitos básicos no sentido protetivo da vida intrauterina, apesar das concepções pessoais, filosóficas e religiosas de cada gestante.

Não se ignora com esta escolha legal que algumas mulheres podem ser submetidas à manutenção de uma gestação indesejada, causando com isto constrangimento e problemas de ordem pessoal ao exporem a escolha de não permanecerem com o bebê após o parto. A opção pela entrega voluntária de recém-nascidos, que é plenamente possível e não é punível, ainda é um mito que causa temor a muitas mulheres que decidem por abandonar seus filhos e coloca-los em situação de risco, e com isto ensejando a figura delitiva do abandono de incapaz.

Biologicamente, quando da concepção, é reconhecida a capacidade da mulher de gerar outra vida, e o nascimento do feto induz à qualificação da maternidade. Todavia, juridicamente, mãe é aquela que opta livremente por assumir os poderes e os deveres inerentes à condição de responsável pela criação e desenvolvimento dos filhos, nascidos ou não. Bem por isso que há o reconhecimento da extinção do poder familiar quando a mãe ou o pai não revelam aptidão para tanto, atribuindo-se à outra pessoa, que não gerou em seu ventre, a possibilidade de assumir tal encargo com zelo e maturidade.

Além das discussões enraizadas no discurso feminista, e no empoderamento feminino, não basta simplesmente se fazer uma analogia carente de apego ao significado biológico e jurídico da maternidade para se defender admissível o aborto a livre consenso, até mesmo porque o estado hormonal decorrente da gravidez nem sempre permite que a mulher possa tomar conscientemente decisões de tamanha importância, causando reflexos na sua percepção futura do ocorrido, como semelhança ao estado puerperal.

Portanto, enquanto a sociedade brasileira não evolui ao ponto de tornar mais efetivas as políticas públicas de educação e planejamento familiar, admitindo-se a existência de relações físicas apenas enquanto evidenciada a maturidade sexual e a adoção de métodos contraceptivos, não há que se falar em liberação de aborto, porque, juridicamente, a responsabilidade da mãe nasce bem antes do bebe vir ao mundo, e contra este fato não há quesito biológico que prevaleça.

 

 

 

 

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Sobre a autora
Naiara Czarnobai Augusto

SECRETARIA DE INTEGRIDADE E GOVERNANÇA no Governo do Estado de Santa Catarina. Peofissional bacharel em Direito, e pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal, em Propriedade Intelectual, em Compliance e Direito Corporativo. Possui Certificação internacional em compliance público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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