Artigo Destaque dos editores

Os limites do poder normativo das agências reguladoras brasileiras:

o caso do encargo de capacidade emergencial ("seguro apagão")

Exibindo página 1 de 5
19/05/2004 às 00:00
Leia nesta página:

O trabalho analisa os limites do poder normativo das agências reguladoras brasileiras em face do princípio da legalidade. Teria a Agência Nacional de Energia Elétrica competência para regulamentar o encargo de capacidade emergencial?

1. INTRODUÇÃO

Qualquer análise técnica que se pretenda realizar acerca de instituto jurídico deve estar pautada em definições teóricas claras e embasada no direito positivo, o que confere validade jurídica às conclusões alcançadas.

No presente trabalho, buscar-se-á, a partir de uma perspectiva da Ciência do Direito, analisar a questão referente aos limites do poder normativo das agências reguladoras brasileiras à luz do Direito Constitucional vigente, especificamente em face do princípio da legalidade.

Com o objetivo de pôr a discussão em termos práticos, o presente estudo voltará às atenções à figura do encargo de capacidade emergencial, também conhecido como "seguro-apagão", tendo em vista a referida exação ter sido tratada por ato normativo de uma agência reguladora.

Desta maneira, pretende-se, ao longo da exposição, responder à seguinte indagação: teria a Agência Nacional de Energia Elétrica competência para regulamentar o encargo de capacidade emergencial?

Para tanto, parte-se da análise dos limites da competência normativa do Poder Executivo dentro de um Estado Democrático de Direito em que exista a repartição dos poderes, bem como de quais seriam os limites desta faculdade perante o princípio da legalidade.

Em seguida, passar-se-ão em revista os institutos das agências reguladoras e da função reguladora do Estado, especificamente quanto à possibilidade de edição de atos de natureza normativa para a regulação da atividade econômica.

Finalmente, trata-se do caso específico do encargo de capacidade emergencial, vulgarmente conhecido como "seguro-apagão", ocasião em que se verificarão os seus vícios de inconstitucionalidade.


2. DEFINIÇÕES PRELIMINARES

Antes que se adentre à análise detalhada acerca da questão referente aos limites do poder normativo das agências reguladoras, em especial quanto ao encargo de capacidade emergencial, mister que se proceda à fixação de algumas definições teóricas preliminares, as quais se demonstram essenciais à correta compreensão do tema que se pretende estudar.

Dentre o rol de assuntos que o tema deste trabalho permite analisar, entendeu-se necessário, na mesma esteira do que realizou Leila CUÉLLAR, estudar os quais seriam mais relevantes, a saber: 1) o Estado Democrático de Direito e o princípio constitucional da separação dos poderes; 2) o princípio da legalidade e 3) a competência regulamentar.

Evidentemente, a abordagem que se pretende efetuar dos tópicos acima mencionados não será exaustiva. Busca-se, em verdade, definir quais seriam os traços fundamentais dos institutos que servem de base à presente monografia, permitindo que se lhes seja conferida uma consistência teórica suficiente para não tornar a exposição lacunosa, incompleta ou assistemática.

Desta maneira, passa-se a analisar cada um dos itens anteriormente mencionados.

2.1 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

O estudo da questão referente ao Estado Democrático de Direito e do princípio constitucional da separação dos poderes está intimamente ligada à ao exame do princípio constitucional da legalidade, tema de fundamental importância neste trabalho.

Isto porque, apenas em Estados Democráticos de Direito, em que exista a atribuição dos três poderes tradicionalmente concebidos (Executivo, Legislativo e Judiciário) a diferentes órgãos, se é possível falar em submissão da atuação do Estado aos ditames predeterminados pelo ordenamento jurídico, o que é uma das acepções conferidas ao princípio da legalidade.

Explicando melhor: existirá um Estado Democrático de Direito quando, apenas por meio do direito positivo, a Administração Pública possa influir na realidade com o objetivo de atingir os ideais predeterminados na Constituição de uma determinada sociedade.

Dessa maneira, a fim de se coordenar melhor a exposição, primeiramente se abordará o Estado Democrático de Direito, visto que, conforme será denotado, esta espécie de Estado compreende a existência do princípio constitucional da separação dos poderes.

2.1.1 Estado Democrático de Direito

O caput do artigo 1º da Constituição Federal de 1988 prevê que a República Federativa do Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito. No entanto, a doutrina não tem conseguido ser unânime quanto à formulação de uma conceituação única do que venha a ser o referido Estado Democrático de Direito.

A dificuldade na construção deste conceito reside no fato de que a concepção de Direito e do ideal de Justiça, consectário ao primeiro, os quais são apontados como as notas fundamentais do Estado Democrático de Direito, estarem em contínuo processo de mudança.

Contudo, a par deste obstáculo, José Joaquim Gomes CANOTILHO identifica o Estado de Direito como sendo uma forma de organização político-estadual em que toda a atividade é determinada e limitada pelo Direito.

Além disso, entende o referido autor que "o princípio básico do Estado de Direito é o da eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos com a conseqüente garantia de direitos dos indivíduos perante esses poderes".

Portanto, verifica-se, num primeiro momento, que o Estado de Direito seria aquele que, por meio da limitação de toda atividade pública pelo Direito, busca eliminar o arbítrio encontrado no desempenho das funções estatais, visando à garantia das prerrogativas fundamentais dos administrados perante o governo.

No entanto, a subordinação das formas de atuação do Estado ao direito, bem como a garantia de um rol mínimo de direitos ao indivíduo não são suficientes para se verificar a presença de um Estado Democrático de Direito.

Para corroborar esta assertiva, basta lembrar que Estados totalitários, como o Estado Nazista, o Estado Fascista e o Estado-Novo, eram, também, Estados de Direito, ou seja, amparavam-se numa ordem jurídica que lhes conferia legitimidade jurídica e que continham um Estatuto mínimo de direitos, os quais, quase sempre, sequer eram respeitados.

A elucidação necessária para se chegar ao conceito de Estado Democrático de Direito é feita por José Afonso da SILVA, o qual enumera alguns princípios que fincam os parâmetros em que se buscará o seu sentido, são eles:

"(a) princípio da constitucionalidade, que exprime, em primeiro lugar, que o Estado democrático de direito se funda na legitimidade de uma Constituição rígida, emanada da vontade popular, que, dotada de supremacia, vincule todos os poderes e os atos deles provenientes, com as garantias de atuação livre da jurisdição constitucional; (b) princípio democrático que, nos termos da Constituição, há de se constituir uma democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja a garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais (art. 1º ); (c) sistema de direitos fundamentais individuais, coletivos, sociais e culturais (Títulos II, VII e VIII); (d) princípio da justiça social, referido no art. 176, caput, no art. 198, como princípio da ordem econômica e da ordem social; como dissemos, a Constituição não prometeu a transição para o socialismo mediante a realização da democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa, como o faz a Constituição portuguesa, mas abre-se ela, também, para a realização da democracia social e cultural, embora não avance significativamente rumo à democracia econômica; (e) princípio da igualdade (art. 5º, caput e inciso I); (f) princípio da divisão dos poderes (art. 2º) e da independência do juiz (art. 100); (g) princípio da legalidade (art. 5º, II); (h) princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXIII)".־

Percebe-se, desta forma, que a adoção do Estado Democrático de Direito no ordenamento jurídico constitucional brasileiro também está atribuída à necessidade de se garantir que a atividade estatal esteja sempre adstrita à observância das normas jurídicas postas pelo próprio Estado, se diferenciando da doutrina de José Joaquim Gomes CANOTILHO, todavia, no que se refere à inclusão da separação dos poderes neste conceito.

Esta inserção se faz necessária, vez que a divisão e a execução das funções estatais, justamente por serem atribuídas a diferentes órgãos ou Poderes, poderão ser submetidas a mecanismos eficazes de controle, tanto em seus âmbitos interno e externo, o que nada mais é do garantir a participação democrática do cidadão na elaboração e aplicação do Direito.

Destaque-se, ainda, o fato de um dos principais objetivos do Estado Democrático de Direito ser a superação das desigualdades sociais e regionais, ou seja, a realização de justiça social, o que vem a complementar o arcabouço teórico que demonstra ser o indivíduo o foco de atenção desta modalidade de Estado.

Assim, percebe-se que o Estado Democrático de Direito é aquele em que as formas de atuação estatais estão submetidas ao Direito resultante da participação popular no processo de sua elaboração, pautado primordialmente na concretização do bem-estar do indivíduo.

Com isto tentou-se demonstrar que o Estado de Democrático de Direito não é uma idéia pronta ou que possa ser resumida num único conceito, posto que os elementos que o compõem em sua essência estarem em contínuo estágio de mutação.

Deveras, a correta compreensão deste conceito há de ser lastreada por idéias fundamentais, tais como, a submissão das formas de atuação do Estado aos ditames fixados no ordenamento, a separação dos poderes em órgãos específicos e independentes entre si, os quais devem estar sujeitos a um amplo controle pela sociedade, observando-se, sempre, a ampla participação popular no processo de elaboração das regras jurídicas.

Desta maneira, uma vez estipulada a concepção de Estado Democrático de Direito, importa efetuar uma análise mais detida de um de seus consectários fundamentais: a separação dos poderes.

2.1.2 Separação dos Poderes

2.1.2.1 Fundamentos e Breve Análise das Teorias da Separação dos Poderes

Dalmo de Abreu DALLARI observa que "embora seja clássica a expressão separação dos poderes, que alguns autores desvirtuam para divisão de poderes, é ponto pacífico que o poder do Estado continua uno e indivisível", bem como indelegável.

Todavia, a par da unidade, indivisibilidade e indelegabilidade do poder estatal, a história demonstrou que o exercício de todas as funções do Estado não poderia estar concentrado nas mãos de uma pessoa ou de um grupo restrito de pessoas.

Desta maneira, alguns pensadores formularam teorias que buscaram, num primeiro momento, definir quais seriam as funções estatais e, noutro, definir a forma pela qual seriam aplicadas estas atribuições.

Ressoa comum atribuir a formulação da doutrina da separação de poderes a MONTESQUIEU, por meio de sua obra denominada "O Espírito das Leis" publicada em 1747. Entretanto, esta associação quase que imediata entre MONTESQUIEU e a teoria da separação de poderes deve ser vista com ressalvas, em função de não ter sido ele o responsável pela elaboração de uma teoria referente à distinção das funções estatais.

Em verdade, encontram-se teorias de separação dos poderes, muito antes de MONTESQUIEU, nas obras "A política" de ARISTÓTELES, "Dois Ensaios Sobre o Governo" de John LOCKE e "Princípios Políticos Constitucionais" de Benjamin CONSTANT, além de terem sido mencionadas em estudos de Jean Jacques ROUSSEAU e de Henry BOLINGBROKE, este último, especificamente, quanto ao sistema de checks and balances ou de freios e contrapesos observado sobretudo na Constituição dos Estados Unidos da América.

Porém, a análise feita pelos precursores do assunto não foi realizada da mesma forma como o foi por MONTESQUIEU. Celso Ribeiro BASTOS assevera que se deve ao autor de "O Espírito das Leis" a necessidade de as três funções por ele propugnadas - legislativa, executiva e judicial, serem desempenhadas por órgãos autônomos e distintos, os quais não guardam entre si qualquer relação de subordinação.

Esclareça-se, todavia, que MONTESQUIEU não sugeriu uma efetiva separação de poderes, mas, sim, realizou uma distinção entre as três funções já referidas, as quais, não obstante suas diferenças, deveriam ser exercidas de maneira harmônica.

Desta forma, MONTESQUIEU foi o primeiro pensador a idealizar uma teoria de separação das funções do Estados em que as funções fossem atribuídas a diferentes órgãos, os quais guardassem plena autonomia, em que se presenciasse a ausência de qualquer preponderância entre si, onde as tarefas eram exercidas de maneira harmônica.

Realizados estes breves esclarecimentos, analisar-se-á as teorias de separação dos poderes de John LOCKE e de MONTESQUIEU, em função de terem sido as maiores contribuições à teoria do desenvolvimento sistemático da organização do poder estatal, razão pela qual, em suas épocas, chegaram a alcançar um significado quase que absoluto.

John LOCKE inicia sua abordagem anotando a existência de quatro poderes distintos: o Poder Legislativo, o Executivo, o Federativo e o Prerrogativo.

Ao Poder Legislativo atribuiu-se a criação das regras jurídicas; para o Poder Executivo, a aplicação e execução destas prescrições nos limites territoriais de cada Estado. Por sua vez, a Função Federativa era concebida como aquela em que se poderia declarar guerra e paz, constituir ligas e alianças, bem como resolver todas as questões que deveriam ser tratadas fora do Estado. Em resumo, o Poder Federativo ligava-se ao desenvolvimento das relações externas e do Direito Internacional.

De outra banda, a Função Prerrogativa consistia na atribuição de se fazer o bem público, sem se subordinar a quaisquer regras predeterminadas. Melhor dizendo: seria aquele Poder, cuja finalidade precípua era a tomada de decisões em situações de exceção, tais como a guerra e o Estado de Emergência, sob o jugo discricionário do detentor desta prerrogativa.

Segundo o aludido autor, estas quatro funções seriam exercidas apenas por dois órgãos do governo: o Parlamento e o Rei. Incumbiria ao Parlamento o exercício do Poder Legislativo; enquanto que ao Rei competiria o exercício da Função Executiva. Durante o desempenho do Poder Executivo, o Rei, de acordo com a situação em que se encontrasse o governo e o Estado, poderia fazer vir à tona os e Poderes Federativo e Prerrogativo. Quanto ao Poder Judiciário, este foi ignorado pela doutrina de John LOCKE.

Resumidamente, a teoria apresentada consistia na separação do poder em quatro funções distintas, cujos respectivos exercícios foram delegados a apenas dois órgãos do governo. Dentre estas quatro funções, percebe-se que duas delas, a Federativa e a Prerrogativa, integravam o Poder Executivo, porquanto suas exteriorizações dependiam de situações atípicas, às quais competia ao Rei apreciar, motivo pelo qual nele estavam concentradas.

Por outro lado, MONTESQUIEU partiu do pressuposto de que para se possuir liberdade política no Estado Moderno, era necessário que o poder político fosse controlado, tendo em vista que todo o homem, quando o possuía, era levado a dele abusar.

Esclareceu que cada Estado possuiria três tipos de poderes distintos: o Legislativo, o Executivo das coisas que dependem do Direito das Gentes, ou Executivo do Estado, e o Executivo daquelas que dependem do Direito Civil, também chamado Poder de Julgar.

A cada um destes poderes corresponderiam funções diversas e específicas. Por meio do Poder Legislativo, o príncipe ou o magistrado criaria as leis, por determinado tempo ou infinitamente, e anularia aquelas anteriormente feitas.

Com o Poder Executivo das coisas que dependem do Direito das Gentes, reputado com aquele que rege as relações que os diferentes povos possuem entre si, o príncipe ou o magistrado faria a guerra ou a paz, enviaria ou receberia embaixadas, instauraria a segurança e preveniria invasões.

Por fim, com o Poder Executivo das coisas que dependem do Direito Civil, entendido como aquele que cuida das relações que todos os cidadãos possuem entre si, castigar-se-iam os crimes ou julgar-se-iam todas as questões atinentes aos conflitos entre os particulares.

Os Poderes Executivo e Legislativo, no entender de MONTESQUIEU, poderiam ser relegados a magistrados ou a corpos permanentes, haja vista que o primeiro seria a execução da vontade geral e, o outro, a própria vontade. No entanto, a Função de Julgar deveria ser conferida a um Tribunal capaz de proferir julgamentos fixos, sob pena de não se viver numa sociedade em que inexista a fixação segura dos compromissos que cada cidadão possui.

Embora estivessem delineadas, satisfatoriamente, as atribuições e a quem competia o exercício de cada "poder", MONTESQUIEU não descartou a hipótese de serem executados abusivamente.

Desta forma, explicou que a maneira pela qual desapareceria ou se extinguiria a liberdade de cada cidadão seria quando houvesse a concentração de dois ou mais poderes numa única pessoa.

Caso o Poder Legislativo e o Executivo estivessem concentrados nas mãos de um único governante, inexistiria liberdade porque o mesmo governante poderia, ao mesmo tempo, criar leis tirânicas e executá-las de idêntica maneira.

Também não haveria liberdade se a Função de Julgar não fosse separada do Poder Legislativo, em razão de a tarefa de dispor sobre a vida e a liberdade dos cidadãos tornar-se arbitrária, já que o juiz acabaria sendo legislador das próprias leis que seriam aplicadas para a resolução dos conflitos que lhe eram submetidos. Logo, na hipótese de o Poder de Julgar estar unido ao Poder Executivo, o juiz teria a mesma força que a de um opressor.

MONTESQUIEU asseverou, por fim, que tudo estaria realmente perdido se o mesmo homem exercesse todas as três funções.

Exposto isso, percebe-se que as teorias de LOCKE e MONTESQUIEU diferenciam-se uma da outra, basicamente, pelo fato de, para a deste, o Poder Judiciário ser função autônoma e, na daquele, os Poderes Federativo e Prerrogativo estarem inseridos no âmbito do Poder Executivo.

À luz do texto constitucional brasileiro, nota-se que a doutrina proposta por MONTESQUIEU foi adotada pelo artigo 2º, porque definiu que os poderes, ou as funções, estatais no Brasil serão o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, os quais são exercidos por órgãos harmônicos e, ao mesmo tempo, independentes entre si.־

Incumbe mencionar, apenas, que a teoria de Benjamin CONSTANT, a qual concebia que os poderes, numa monarquia constitucional, seriam divididos em cinco (poder real, poder executivo, poder representativo da continuidade, poder representativo da opinião e poder de julgar) foi a primeira albergada pelo texto constitucional brasileiro, conforme disposto no artigo 10 da Constituição do Império de 1824.

No entanto, com a recepção da teoria da separação dos poderes de MONTESQUIEU pelo atual constituinte brasileiro, que a erigiu à condição de princípio fundamental da República Federativa do Brasil, é comum se admitir que o monopólio da elaboração das leis seria do Poder Legislativo.

Neste sentido, Agustín GORDILLO ensina que se pode "definir a função legislativa como ‘a edição de normas jurídicas gerais feitas pelo Congresso’. Nesta definição encontramos dois elementos: a) um material, objetivo que conceitua qual é o conteúdo da função (expedição de normas jurídicas gerais); b) outro orgânico ou subjetivo, que esclarece que esta função é unicamente realizada pelo Poder Legislativo".

Contudo, a par deste posicionamento acerca do princípio da separação dos poderes, existem autores, como Eros Roberto GRAU e Anna Cândida Cunha FERRAZ, que propõem a sua revisão, em virtude do decurso de quase duzentos e cinqüenta anos desde a edição da obra de Montesquieu, bem como em função da evolução que o modelo de Estado adotado nos países ocidentais sofre atualmente.

É o que se passa a descrever.

2.1.2.2 Críticas à Teoria de Montesquieu Acerca da Separação dos Poderes

De acordo com o que fora visto anteriormente, o fato de a teoria de Montesquieu ter sido elaborada em pleno século XVIII, época em que se lutava arduamente pela efetivação dos ideais iluministas e liberais, fez com que a mesma, com o decurso do tempo, fosse alvo de críticas severas, as quais apontavam à sua insuficiência para aplicação nos moldes atuais do Estado.

No entanto, o reconhecimento da deficiência da teoria da separação dos poderes de MONTESQUIEU, reputada como a destinação do poder estatal a três órgãos distintos, cujo exercício era feito de maneira estanque e incomunicável, não significa dizer que o fim da própria teoria seja cogitado.

Nelson SALDANHA realça que a permanência da divisão dos poderes de MONTESQUIEU, ainda que em seus termos ideais, seria uma espécie de benesse constitucional que visaria, unicamente, a manter o esquema clássico simétrico, denotado como uma garantia aos cidadãos, já que visaria a limitar o poder político, o que seria inato ao Estado Democrático de Direito.

Todavia, a permanência da teoria em nosso ordenamento jurídico fez com que se fossem realizadas inúmeras revisões com o fito de manter-lhe compatível com as novas realidades social e econômica que surgem, destacando-se, entre os juristas brasileiros que se propuseram ao tema, Anna Cândida Cunha Ferraz e Eros Roberto Grau.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Para os fins deste trabalho, as novas indagações serão apresentadas sob o prisma do Poder Legislativo, vez que a abrangência do tema da reestruturação do princípio da separação dos poderes ensejaria monografias específicas, o que não é o intuito.

2.1.2.3 A Questão das Cláusulas-Parâmetro Identificadas por Anna Cândida da Cunha Ferraz

A primeira re-análise do princípio da separação dos poderes, diz respeito ao modo pelo qual se dá a sua aplicação no texto constitucional brasileiro.

Anna Cândida da Cunha FERRAZ ensina que o princípio da separação dos poderes, ao longo da história do constitucionalismo brasileiro, tem sido operacionalizado por meio de três cláusulas-parâmetros, que serviam como verdadeiros dogmas ao intérprete, a saber: 1) a independência e a harmonia entre os poderes; 2) a indelegabilidade de poderes e 3) a inacumulabilidade de funções de poderes distintos.

Por meio da primeira cláusula-parâmetro, a da independência e harmonia entre os poderes, afirma-se que, durante o desenvolvimento da aplicação da Constituição, sempre se tem garantido a existência de um mínimo e de um máximo de independência a cada órgão que exerce uma determinada função, a fim de que seja evitada a interferência excessiva de um poder no outro e, também, como conseqüência, a sua desfiguração.

Ainda por meio desta primeira cláusula, entende-se que a Constituição Federal garanta meios de resguardo de instrumentos mínimos que facilitem o exercício harmônico dos poderes, sob pena de, inexistindo quaisquer limites, um poder se sobrepor ao outro, ao invés de entre eles se formar uma atuação coerente.

A mesma doutrinadora explica, também, que a delimitação de zonas específicas de independência e harmonia tende, justamente, a manter uma das finalidades precípuas do Estado Democrático de Direito, qual seja, a limitação do poder. Contudo, as interferências de um Poder sobre o outro, para que possam ser admitidas, devem respeitar esta razão de ser estabelecida. Não se pode admitir que a invasão de uma função na esfera de outra não seja para a realização do controle recíproco dos poderes.

José Afonso da SILVA elaborou exemplos bastante elucidativos, no sentido de demonstrar que a ingerência entre os poderes visa, exatamente, a manter o equilíbrio. Ensina o referido doutrinador:

Se ao Legislativo cabe a edição de normas gerais e impessoais, estabelece-se um processo para sua formação em que o Executivo tem participação importante, que pela iniciativa das leis, que pela sanção e pelo veto. Mas a iniciativa legislativa do Executivo é contrabalançada pela possibilidade que o Congresso tem de modificar-lhe o projeto por via de emendas e até rejeitá-lo. Por outro lado, o Presidente da República tem o poder de veto, que pode exercer em relação a projetos de iniciativa dos congressistas como em relação às emendas aprovadas a projetos de sua iniciativa. Em compensação, o Congresso, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, poderá rejeitar o veto, e, pelo Presidente do Senado, promulgar a lei, se o Presidente da República não o fizer no prazo previsto (art. 66). Se o Presidente da República não pode interferir nos trabalhos legislativos, para obter aprovação rápida de seus projetos, é-lhe, porém, facultado marcar prazo para sua apreciação, nos termos dos parágrafos do art. 64. Se os Tribunais não podem influir no Legislativo, são autorizados a declarar a inconstitucionalidade das leis, não as aplicando neste caso. O Presidente da República não interfere na função jurisdicional, em compensação os ministros dos tribunais superiores são por ele nomeados, sob controle do Senado Federal, a que cabe aprovar o nome do escolhido (art. 52, III, a).

No que atine à segunda cláusula-parâmetro, a da indelegabilidade de poderes, Anna Cândida da Cunha FERRAZ elucida que, após a passagem de um longo período de tempo de aceitação abrandada, a sua não aplicação, por razões inúmeras, passou a ser amplamente aceita.

Esta vedação tomou tamanha dimensão que, atualmente, "a regra da não delegação de poderes se curva apenas a dois limites: de um lado, a impossibilidade de abdicação do poder ou competência originária constitucionalmente atribuída a determinado poder; de outro, o estabelecimento de condições e limites claros para a atuação do poder delegado".

De fato, a derrocada desta segunda cláusula-parâmetro veio a se coadunar com o pensamento constitucional brasileiro que, antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 1988, já admitia as delegações de funções, em especial a da legislativa, a qual será analisada oportunamente neste trabalho. Importa destacar, no entanto, que a omissão do texto constitucional de 1988 da cláusula da indelegabilidade das funções, evidentemente, não gerou qualquer problema à ordem jurídica.

Um dos impropérios a que deu azo a omissão da cláusula de indelegabilidade foi o atinente à não limitação das chamadas leis-delegadas às hipóteses previstas no artigo 68 da Constituição Federal de 1988.

Todavia, este problema não minora o acerto do constituinte brasileiro pela exclusão da cláusula da indelegabilidade. Isto porque, como pondera José Afonso da SILVA, o fim da aplicação rígida da cláusula-parâmetro é algo decorrente do próprio estudo do texto constitucional vigente, o qual, como já visto anteriormente, prevê várias hipóteses de delegações de poderes a órgãos distintos dos originariamente competentes, como, por exemplo, a atribuição de poderes normativos ao chefe do Poder Executivo, os quais possuem força de lei, o caso das Medidas Provisórias previstas no artigo 59, V e regulamentadas pelo caput do artigo 62, todos da Constituição Federal de 1988.

Sem dúvidas, a exclusão da cláusula da indelegabilidade do texto constitucional de 1988 evitou a existência de uma aparente contradição entre a impossibilidade de se delegar funções e a previsão de o chefe do Poder Executivo da União editar medidas provisórias providas de força de lei.

A única maneira de se privilegiar a lógica interna do ordenamento jurídico brasileiro foi conferir ao princípio da separação dos poderes uma maior flexibilidade, principalmente no que tange à co-participação da elaboração da norma jurídica.

Por fim, a terceira cláusula-parâmetro, a da inacumulabilidade de funções e poderes diferentes, há de ser entendida como uma espécie de cláusula-parâmetro de segundo grau, tendo em vista que sua função precípua é garantir a concretização da primeira cláusula parâmetro, a da independência e da harmonia entre os poderes, a qual pressupõe a não subordinação recíproca entre os exercentes de cada poder.

No entanto, a terceira cláusula-parâmetro também foi suprimida pelo atual constituinte brasileiro, o qual já previu, inclusive, o exercício cumulativo de cargos no artigo 56, I da atual Constituição. Contudo, na opinião da autora, esta supressão não merece elogios, haja vista o fato de a cumulação de funções, ou, como prefere, a confusão de poderes, "ludibria a vontade popular e é porta aberta para composições de interesse puramente pessoal, deixado completamente à margem o interesse público".

Desta forma, pode-se concluir, de tudo o que foi exposto, que o princípio da separação dos poderes não é mais aplicado de forma pura e rígida. Este desvirtuamento pode ser percebido na Constituição Federal de 1988, a qual permitiu que os três Poderes possam ser delegados a outros órgãos aos quais, originariamente, não competia o exercício da nova função atribuída, bem como tolerando o acúmulo de Poderes em pessoas que não estariam habilitadas para o seu exercício, ainda que em detrimento ao interesse público.

Contudo, esta não é a única releitura que a doutrina tem proposto ao princípio da separação dos poderes. Outra formulação diz respeito à extinção do critério orgânico de classificação das funções, a qual passa a ser estudada agora.

2.1.2.4 A Derrocada do Critério Orgânico para Determinação dos Poderes

Como já visto, o princípio da separação dos poderes também tem recebido críticas quanto à maneira pela qual se dá a classificação das três funções constitucionalmente previstas, em face da atual sistemática adotada pela Constituição Federal de 1988.

Eros Roberto GRAU entende que a doutrina da separação de poderes, tal como descrita por MONTESQUIEU, deveria ser reformulada, a partir de um critério denominado material, em detrimento à classificação de SANTI ROMANO, segundo a qual as funções seriam legislativa, executiva e judiciária, conforme as autoridades que as exercessem.

Primeiramente, para sustentar seu posicionamento, o qual foi inspirado na obra de Renato ALESSI, aduziu que o critério orgânico ou institucional havia se demonstrado insuficiente para abarcar todas as realidades conjunturais.

Além disso, a deficiência do critério orgânico decorreria da adoção de um modelo de sistematização organizacional, ou seja, pelo fato de se buscar atribuir aos centros ativos das funções as próprias titularidades das mesmas.

Melhor dizendo: a inaptidão do critério orgânico estava evidenciada pelo fato de ter se confundindo o órgão que possui a titularidade do exercício do poder, com o poder em si.

Desta forma, a partir de uma noção de função estatal sob o aspecto material, o qual releva a essência jurídica do poder, Eros Roberto GRAU propõe a classificação das funções estatais em função normativa, administrativa e jurisdicional.

À função normativa corresponderia o dever-poder de emanar estatuições primárias (impostas com força própria), em decorrência do exercício de um poder originário ou de um poder derivado (atribuição, por meio da Constituição explícita ou implicitamente ou por meio de lei formal de poder normativo a um órgão que ordinariamente não o detinha), contendo preceitos abstratos e genéricos.

Contrapõe-se à função normativa a noção de função legislativa, a qual pode ser definida como aquela de emanação de prescrições primárias, geralmente, mas não necessariamente, com conteúdo normativo, sob a forma da lei.

Portanto, distingue-se a função normativa da legislativa pelo grau de abstração e generalidade que as suas prescrições possuem, bem como pela forma, pelo nomen juris que surgem no ordenamento jurídico.

Ilustrando a correção de seu pensamento, Eros Roberto GRAU explica que "o fundamento do poder regulamentar, pois, está nesta atribuição de poder normativo – e não no poder discricionário da Administração (como, equivocadissimamente, apregoam nossos publicistas). Assim, o fundamento da potestade regulamentar decorre de uma atribuição de potestade normativa material, de parte do Legislativo, ao Executivo".

Por outro lado, as funções administrativa e jurisdicional, segundo, ainda, o mesmo autor, seriam, respectivamente, a de execução das normas jurídicas e a de aplicação das normas jurídicas.

Saliente-se que, com a releitura do princípio da separação dos poderes, nos moldes propostos, Eros Roberto GRAU almejou, também, conferir uma nova roupagem ao princípio da legalidade.

Conforme o entendimento do aludido autor, o princípio da reserva da legal, esculpido nos artigos 5º, II e 68, §1º da Constituição Federal de 1988, ao restringir as matérias que somente devam ser tratadas por meio de lei, conseqüentemente, possibilita a exclusão das sobressalentes, as quais poderiam ser versadas por regulamentos.

Nesta ótica, os regulamentos, em razão de decorrerem do exercício do poder normativo de um órgão que o possua como função típica, imporiam obrigações e deveres reputados como surgidos por meio de lei.

Assevera, ainda, o mesmo autor que, em razão de o texto constitucional ter atribuído implicitamente o poder regulamentar ao Poder Executivo, a expedição dos regulamentos autônomos estaria devidamente autorizada, pois "a sua emanação seria indispensável à efetiva atuação do Executivo em relação a determinadas matérias, definidas como de sua competência".

Logo, percebe-se que Eros Roberto GRAU almejou, em verdade, ampliar o significado do princípio da legalidade, por meio da hostilização do princípio da separação dos poderes, nos moldes que havia sido proposto por MONTESQUIEU e que vem sendo recepcionado pelas constituições brasileiras.

No entanto, a aceitação irrestrita aos propósitos de Eros Roberto GRAU dá margem à instauração de problemas que, embora menosprezados pelo autor, não podem ser aceitos por juristas comprometidos com a Constituição, como é o caso da possibilidade de edição de regulamentos autônomos.

Evidentemente, conforme será visto adiante, os regulamentos autônomos não passam de uma deturpação do poder regulamentar, conferido ao Chefe do Poder Executivo pelo artigo 84, IV da Constituição Federal, razão pela qual, por meio da aplicação do princípio da separação dos poderes, especificamente da cláusula-parâmetro da independência e harmonia entre os poderes, os referidos regulamentos devem ser reputados inconstitucionais.

Contudo, pode-se considerar útil a análise de Eros Roberto GRAU no que atine à possibilidade do Poder Executivo exercer poder normativo, desde que o seja com limitações quanto ao seu conteúdo e ao seu exercício desvinculado, tal qual se verifica nos casos das agências reguladoras brasileiras, consoante será visto oportunamente.

Feitas estas considerações, passa-se, agora, efetivamente, ao estudo efetivo do princípio da legalidade.

2.2 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

2.2.1 Notas Introdutórias

Assim como boa parte dos assuntos jurídicos, o princípio da legalidade possibilita inúmeras formas de abordagem. Isto se deve tanto em razão da própria dificuldade de se conceituar o que venha a ser um princípio, como pela amplitude que o princípio da legalidade possui no ordenamento jurídico brasileiro.

Acerca das dificuldades de se estudar determinado princípio jurídico, Margarita Beladiez ROJO adverte que:

A definição do que há de se entender por princípio jurídico ou princípio geral de Direito é uma das mais difíceis questões que se apresentam aos juristas. A razão desta dificuldade pode ser entendida apenas com a verificação de seu significado gramatical. É claro que, se por princípio se entende o elemento fundamental de alguma coisa, os princípios jurídicos apenas podem ser os fundamentos do Direito e, neste ponto, reside, precisamente, a complexidade de sua definição. Averiguar quais são as idéias essenciais sobre as quais se constrói um ordenamento constitui uma tarefa mais apropriada aos filósofos do que aos juristas, o que pode ser comprovado pelo fato de a determinação do fundamento do Direito sempre ter resultado do pensamento filosófico de cada momento. Não obstante, os juristas não podem abdicar do conhecimento destes princípios, não por um ímpeto meramente intelectual de se aprofundar nos alicerces sobre os quais se constrói a ciência a que se dedicam, mas, sim, porque constitui um problema jurídico de primeira ordem do qual derivam importantes efeitos práticos que todo profissional do Direito está obrigado a conhecer..

De outro lado, Paulo de Barros CARVALHO ressalta a importância do princípio da legalidade no Direito brasileiro, ao lecionar que a referida norma fundante do ordenamento jurídico espraia toda a sua influência pelos demais ramos do Direito positivo, razão pela qual não seria lógico se pensar no surgimento de direitos subjetivos e dos deveres correlatos, sem que estejam previstos em lei. O mesmo doutrinador elucida, ainda, que "como o objetivo primordial do Direito é normar a conduta, e ele o faz criando direitos e deveres correlativos, a relevância desse cânone transcende qualquer argumentação que pretenda enaltecê-lo".

Estas advertências são bastante relevantes porque demonstram, de antemão, que a tarefa daquele que se propõe a estudar o princípio da legalidade será quase sempre infrutífera, já que incompleta.

A fim de que se tenha um exemplo nítido da dificuldade de se abordar o tema, cumpre destacar um primeiro conflito doutrinário surgido já no que diz respeito à sua denominação.

Sustentando uma primeira opinião, Carmem Lucia Antunes ROCHA prefere usar a expressão princípio da juridicidade, em função da salutar importância que a autora atribui aos preceitos constitucionais.

Justificando sua posição, assim discorre a referida doutrinadora:

A preferência que se confere à expressão deste princípio da juridicidade, e não apenas ao da legalidade como antes era afirmado, é que, ainda que se entenda esta em sua generalidade (e não na especificidade da lei formal), não se tem a inteireza do Direito e a grandeza da Democracia em seu conteúdo, como se pode e se tem naquele. Se a legalidade continua a participar da juridicidade a que se vincula a Administração Pública – e é certo que assim é – esta vai muito além da legalidade, pois afirma-se em sua autoridade pela legitimidade do seu comportamento, que não se contém apenas na formalidade das normas jurídicas, ainda que consideradas na integralidade do ordenamento de Direito. A transformação não é apenas do nome do princípio, mas do seu significado e, em especial, do seu conteúdo.

De outro lado, André Ramos TAVARES ensina que "antes de falar em legalidade, deve-se ter em mente a constitucionalidade entendendo-se por esta que toda lei ou ato normativo de um Estado seja praticado em consonância com a Constituição e, pois, que perante esta seja controlável".

Em que pesem as diferentes nomenclaturas, o certo é que esta aparente discrepância não interfere de modo vital na compreensão do sentido do princípio da legalidade, porque todas as leis são presumidas conformes à Constituição até que as suas constitucionalidades sejam impugnadas judicialmente.

Portanto, toda lei supõe-se constitucional até o trânsito em julgado da ação pertinente que vise à declaração do vício de inconstitucionalidade, razão pela qual se demonstra inútil qualquer tergiversação acerca da denominação que seja dado ao princípio da legalidade, mas, ao revés, já apresenta as dificuldades que o tema comporta.

Feito esta breve apresentação, mister que se passe ao estudo do sentido da expressão lei, bem como, posteriormente, do princípio da legalidade.

2.2.2 A Lei

A compreensão do que é o princípio da legalidade está ligada à idéia que se tenha do vocábulo lei. Poder-se-ia dizer grosso modo que a lei é o ato resultante do exercício da atividade legislativa por qualquer um dos órgãos do Poder Legislativo, independentemente do conteúdo do referido ato. Todavia, esta resposta simples não é suficiente para esclarecer a questão.

Carlos Ari SUNDFELD ensina que a lei é o resultado da atividade estatal de legislar, à qual cumpre inovar originariamente a ordem jurídica, pois, apenas ao produto desta função, seria atribuída a faculdade de definir e limitar o desempenho dos direitos individuais, em conformidade com o texto constitucional.

No mesmo sentido, aduz Clèmerson Merlin CLÈVE que a lei traduzir-se-ia num ato, em geral normativo, capaz de inovar, originariamente, a ordem jurídica (ato legislativo).

O vocábulo lei, no entanto, não guarda um único sentido. Além da forma de abordagem genérica acima referida, a definição de lei alberga outra sistemática que é a da classificação de lei em sentido material e lei em sentido formal.

A lei em sentido material é a regra de direito ou a norma jurídica, melhor dizendo, é o conteúdo do ato normativo produzido. Manuel Afonso VAZ explica que a lei material "é a regra jurídica abstracta e geral, sendo que a abstracção se refere ao suposto fáctico-situacional a regular e a generalidade ao grupo-categorial de pessoas a que vá dirigida. É a exigência da generalidade que lhe permite ser regra, norma, premissa maior apta para o silogismo judicial."

De outra banda, lei em sentido formal, conforme lição de Hans KELSEN, pode ser "toda e qualquer norma jurídica geral surgida em forma de lei, isto é, emitida pelo parlamento e – de conformidade com as determinações típicas da maioria das Constituições – publicada por determinada maneira, quer, em geral, todo o conteúdo que surja nesta forma".

Miguel Seabra FAGUNDES defende interessante posicionamento ao dizer que "a lei (no sentido formal) é o ato do órgão investido, constitucionalmente, na função legislativa. Todo ato emanado das entidades às quais a Constituição atribua função legislativa, se praticado no uso da competência outorgada, é lei no ponto de vista formal".

Impende notar que o entendimento do autor acima mencionado vai ao encontro da tese defendida por Eros Roberto GRAU no que atine à equiparação dos atos normativos expedidos pelo Poder Executivo àqueles do Poder Legislativo, desde que previstos no rol do artigo 59 da Constituição Federal de 1988.

No entanto, a par desta posição doutrinária, crê-se que a distinção entre lei em sentido formal e lei em sentido material deve permanecer rigidamente estabelecida. Isto porque as referidas noções retratam realidades distintas e promovem rico debate técnico jurídico acerca, por exemplo, dos limites da atividade normativa do Poder Executivo quando o mesmo invade matéria de reserva legal.

Dada a relevância da discussão nos limites deste trabalho, insta realizar rápidos comentários acerca da reserva legal.

Conforme Vezio CRISAFULLI, "tem-se pois, reserva de lei quando uma norma constitucional atribui determinada matéria exclusivamente à lei formal (ou à atos equiparados, na interpretação firmada na praxe), subtraindo-a, com isso, à disciplina de outras fontes, àquela subordinadas".

Sobremaneira no âmbito da legalidade tributária, a qual é fundamental para a compreensão deste estudo, defende-se a reserva de lei, pois, como leciona Alberto XAVIER, "sempre se entendeu ser de tal modo intensa a intervenção na propriedade dos particulares, em que os tributos se traduzem, que se reputou indispensável rodear tal intervenção das garantias da lei formal".

Portanto, vislumbra-se que a reserva legal deve ser entendida como uma garantia que se apresenta ao cidadão, segundo a qual determinadas matérias, escolhidas pelo texto constitucional, devem ser obrigatoriamente veiculadas por meio de lei, em sentido formal, pois isso assegura um amplo controle de seu conteúdo, pelos órgãos competentes.

Fixadas estas noções preliminares, passa-se agora, ao exame do princípio da legalidade, haja vista estar o referido princípio circunscrito à idéia de lei.

2.2.3 Princípio da Legalidade

De acordo com a doutrina de André Ramos TAVARES, o princípio da legalidade significa que "apenas nos termos das leis, editadas conforme as regras do processo legislativo constitucional, é que se pode validamente conceder direito ou impor obrigação ao indivíduo".

Esclarece o mesmo autor que se verifica o respeito ao princípio da legalidade quando os enunciados das normas inferiores à lei, em sentido formal, não possuem o condão de inovar na ordem jurídica, seja impondo deveres ou criando direitos não previstos em lei anterior.

Não sem razão Geraldo ATALIBA afirma que nenhuma expressão da vontade estatal será compulsória se não amparada em lei, já que, partindo se do pressuposto que só a lei obriga, tudo o que não seja lei não obriga, salvo exceções expressas, as quais devem ser interpretadas restritivamente.

Demais disso, vale lembrar que a lei representa a vontade geral dos cidadãos, uma vez que o Poder Legislativo, que é quem possui a incumbência constitucional de elaborá-la, é a casa que abriga os representantes da nação.

No entanto, estas concepções não traduzem, de fato, a dimensão que o princípio da legalidade tomou no texto constitucional brasileiro. Hoje, não se fala mais numa única legalidade e, sim, em várias, já que para cada ramo do Direito que se lhe queira aplicar, existirá um sentido diverso.

Ratificando a assertiva, basta verificar que, no âmbito do Direito Penal, o princípio da legalidade está previsto no artigo 5º, XXXIX da Constituição Federal de 1988 e, representa as idéias de proibir a retroatividade da lei penal, de vedar a criação de crimes e penas pelo costume, de proibir o emprego de analogia para criar crimes, fundamentar ou agravar penas, bem como de proibir incriminações vagas e indeterminadas.

Já na seara do Direito Tributário, o princípio da legalidade vem contido no artigo 150, I da Lei Fundamental brasileira e exprime a necessidade de que, no Brasil, "ninguém possa ser obrigado a pagar um tributo ou a cumprir um dever instrumental tributário que não tenham sido criados por meio de lei da pessoa política competente".

Existe, também, a legalidade verificada no campo do Direito Administrativo, a qual é trazida pelo caput do artigo 37 da Constituição Federal de 1988. A noção deste princípio nos é oferecida nas palavras sintéticas de Celso Antônio Bandeira de MELLO, segundo o qual "o princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis".

Caio TÁCITO aprimora o conceito de legalidade no âmbito da Administração Pública, esclarecendo que "ao contrário da pessoa de Direito Privado, que, como regra, tem a liberdade de fazer aquilo que a lei não proíbe, o administrador público somente pode fazer aquilo que a lei autoriza expressa ou implicitamente".

No entanto, Celso Antônio Bandeira de MELLO entende, ainda em se tratando do princípio da legalidade no Direito Administrativo, que:

Para avaliar corretamente o princípio da legalidade e captar-lhe o sentido profundo cumpre atentar para o fato de que ele é tradução jurídica de um propósito político: o de submeter os exercentes do poder em concreto – o administrativo – a um quadro normativo que embargue favoritismos, perseguições ou desmandos. Pretende-se através da norma geral, abstrata e por isso mesmo impessoal, a lei editada, pois, pelo Poder Legislativo – que é o colégio representativo de todas as tendências (inclusive minoritárias) do corpo social -, garantir que a atuação do Executivo nada mais seja senão a concretização desta vontade geral.

Desta forma, se percebe que o princípio da legalidade comporta inúmeras tratativas, vez que se aplica a todos os ramos do Direito positivo brasileiro. Contudo, não podemos perder de vista que a viga-mestra do princípio em análise está no artigo 5º, II, da Constituição Federal de 1988. Este dispositivo é reputado como o fundamento de direitos individuais e, assim, por ser o natural desdobramento de direitos políticos da representação popular na constituição dos poderes, reprime o absolutismo do poder estatal e condiciona a atividade da Administração Pública.

Num apanhado geral do que foi exposto, tem-se que:

O princípio da legalidade garante o particular contra os possíveis desmandos do Executivo e do próprio Judiciário. Instaura-se, em conseqüência, uma mecânica entre os Poderes do Estado, da qual resultar ser lícito apenas a um deles, qual seja o Legislativo, obrigar aos particulares. Os demais atuam as suas competências dentro dos parâmetros fixados pela lei. A obediência suprema dos particulares, pois, é para com o Legislativo. Os outros, o Executivo e o Judiciário, só compelem na medida em que atuam a vontade da lei. Não podem, contudo, impor ao indivíduo deveres ou obrigações ex novo, é dizer, calcados na sua exclusiva autoridade.

Destarte, deflui-se do exposto que o princípio da legalidade garante às pessoas que suas liberdades e o seu patrimônio não serão perturbados senão em decorrência de mandamento advindo do Poder Legislativo, órgão representativo dos cidadãos.

2.3 COMPETÊNCIA REGULAMENTAR

2.3.1 Panorama Geral da Competência Regulamentar e Conceito de Regulamento

O artigo 84, IV da Constituição Federal de 1988 prescreve que ao chefe do Poder Executivo compete expedir decretos e regulamentos para fiel execução das leis que tiver sancionado, publicado e promulgado.

Esta competência se domina competência regulamentar e se caracteriza, primeiramente, por ser uma função típica, ou seja, intrínseca ao Poder Executivo, já que, dentre a idéia de execução das leis, está incluída a regulamentação dos referidos ditames normativos.

Deve-se ressalvar, todavia, que não se trata de uma competência cujo exercício, por parte do órgão do Poder Executivo, seja facultativo. Como bem salienta Cármen Lucia Antunes ROCHA "a Administração Pública não expede regulamentos porque quer ou pode, mas porque deve, tem que, quando a lei o exigir expressa ou implicitamente, bem como quando a efetividade da lei dele dependa".

A importância da competência regulamentar é bem explicitada por Vanessa Vieira de MELLO, ao aduzir que a imprescindibilidade da função está diretamente voltada à condição da máquina administrativa. "O bom andamento da função administrativa pressupõe a tomada de decisões, por parte do Executivo, conducentes à concretude das normas jurídicas, dando-lhes plena executoriedade". Portanto, percebe-se que a competência regulamentar é algo instrumental, acessório à lei e que visa a lhe dar maior efetividade e alcance.

Por outra senda, José Afonso da SILVA ressalta que a idéia dominante, quando se trata de função regulamentar, é a de que o poder regulamentar consiste num poder administrativo no exercício de função normativa subordinada, qualquer que seja seu objeto. Trata-se de poder limitado que se distingue do poder legislativo pelo fato de não poder inovar na ordem jurídica e que encontra seus limites naturais no âmbito da competência executiva e administrativa onde se insere.

Assim, verifica-se que a competência regulamentar é um dever-poder conferido ao Poder Executivo para que este complemente o sentido da lei para lhe dar fiel cumprimento, visando a maior celeridade das decisões administrativas, sendo, no entanto, vedado à Administração Pública, quando de seu exercício, inovar na ordem jurídica.

Uma questão bastante polêmica acerca da competência regulamentar é a de sua titularidade. Por meio da interpretação do artigo 84, IV da Constituição Federal de 1988, tem-se a impressão que a função regulamentar somente poderá ser exercida pelo Presidente da República, já que o artigo citado se refere às suas competências privativas. Celso Antônio Bandeira de MELLO, ao conceituar o regulamento, a exteriorização da função regulamentar, preceitua que a sua titularidade é exclusiva dos chefes dos Poderes Executivos.

Aderindo à opinião do autor mencionado, Clèmerson Merlin CLÈVE afirma que "apenas ao Chefe do Executivo é conferido o exercício regulamentar e esta atribuição é indelegável, segundo se depreende da leitura do art. 84, parágrafo único, da CF."

De outro lado, defende-se que, em razão de a Administração Pública pautar o seu agir com base na lei, ela não pode ser furtada de exercer competência normativa, a qual está compreendida na idéia de função executiva, já que ficará impedida de concretizar as estatuições advindas do Poder Legislativo.

Neste sentido, Oswaldo Aranha Bandeira de MELLO ensina que a atribuição regulamentar também é exercida pelas entidades político-administrativas menores e as autarquias de serviços ou estabelecimentos públicos para o efeito de aplicação das leis que regulam a sua organização e ação determinar.

Destarte, é inegável o fato de todo o Poder Executivo exercer função regulamentar, tendo em vista que o próprio escopo da Administração Pública é, justamente, concretizar o mandamento legal e, para tanto, deverá se valer dos instrumentos que lhe é dispensado, sendo que o principal deles é o exercício de poder regulamentar, a teor do que prevê o artigo 2º da Constituição Federal de 1988 quando determina que o exercício dos poderes seja realizado de maneira harmônica.

Visto o que é a competência regulamentar, cumpre analisar o que venha a ser o regulamento e as diferentes formas de sua exteriorização.

Clèmerson Merlin CLÈVE aponta duas acepções para o conceito de regulamento. Num sentido lato, o regulamento "pode ser definido como qualquer ato normativo (geral e abstrato) emanado dos órgãos da Administração Pública. Em sentido estrito (que importa para o Direito Constitucional), regulamento será o ato normativo editado, privativamente, pelo Chefe do Poder Executivo".

Desta maneira, em consonância com o posicionamento afirmado acima, segundo o qual se adota o conceito de regulamento em sentido amplo, cabe mencionar o conceito elaborado por Jorge Manuel Coutinho de ABREU, para quem o regulamento administrativo é "norma escrita, geral e abstracta por via de regra, subordinada à lei, emanada por uma autoridade administrativa, ou por uma entidade provada no desempenho de uma função público-normativa". Celso Antônio Bandeira de MELLO esclarece que os regulamentos são normas requeridas "para que se disponha sobre o modo de agir dos órgãos administrativos, tanto no que concerne aos aspectos procedimentais de seu comportamento quanto no que respeita aos critérios que devem obedecer em questões de fundo, como condição para cumprir os objetivos da lei".

Vitor Nunes LEAL acentua que o regulamento se distingue da lei no que se refere à subordinação do primeiro ao último, mas elucida que "o regulamento não é mera reprodução da lei. É um texto mais minucioso, mais detalhado, que completa a lei, a fim garantir a sua exata e fiel execução. É fundamental, entretanto, que nesta sua função de complementar a lei, não a infrinja".

Além disso, Marcello CAETANO afirma que "a lei formal, unicamente sujeita à Constituição, pode ser inovadora, criando e restringindo direitos, introduzindo modificações na Ordem jurídica. Ao passo que o regulamento tem de respeitar as leis, não pode conter preceitos que contrariem disposições constantes de leis formais".

Portanto, já é possível ter-se em mente qual é o traço característico dos regulamentos no Direito Brasileiro, qual seja: o de complementação dos ditames prefixados em lei, em seus sentidos formal e material, sendo vedada a inovação da ordem jurídica por meio de seus preceitos abstratos e gerais, por carecerem de legitimidade para tanto.

Visto o que são os regulamentos, incumbe realizar breves apontamentos sobre a sua classificação, tendo em vista que o tema é de fundamental importância para o presente estudo, em razão de as várias teorias, que justificam o poder normativo conferido às agências reguladoras, partirem das idéias que passarão a ser expostas.

2.3.2 Espécies de Regulamentos

A doutrina tem identificado, basicamente, três modalidades de regulamentos, a saber: 1) regulamento de execução; 2) regulamento autônomo e 3) regulamento delegado.

Para fins didáticos, estudar-se-á cada uma das espécies de regulamento detidamente.

2.3.2.1 Regulamento de Execução

Chama-se regulamento de execução aquele tradicionalmente conferido ao chefe do Poder Executivo destinado a dar fiel execução às leis aprovadas pelo Legislativo, tal qual disposto no artigo 84, IV da Constituição Federal de 1988.

O regulamento de execução tem por objetivo principal a instrumentalização da execução da lei, "detalhando e explicitando seus comandos, interpretando seus conceitos e dispondo sobre os órgãos e procedimentos necessários para a sua aplicação pelo Executivo".

Noutras palavras, os regulamentos executivos são atos administrativos que visam a efetivar a exeqüibilidade da lei, notadamente quando seja esta de caráter genérico, de modo a facilitar os seus entendimento e desejo, detalhando-a de modo a torná-la praticável, muito embora não seja esta a sua única finalidade.

Ainda na mesma esteira, Hely Lopes MEIRELLES sinteticamente define que o regulamento de execução é aquele cujo fim é explicar o modo e a forma de execução da lei.

Desta forma, verifica-se que esta primeira espécie de regulamento presta-se a precisar o conteúdo dos conceitos que, de modo sintético ou de modo impreciso, foram referidos pela lei e determinar o modo de agir da Administração nas relações que, necessariamente, travará com os particulares na oportunidade da execução da lei.

Por fim, melhor dizendo, nas palavras de Eduardo GARCÍA DE ENTERRÍA e Tomás-Ramon FERNÁNDEZ, a necessidade de expedição de regulamentos de execução surge da composição de duas razões: "por uma parte, os tecnicismos da atuação administrativa não são conhecidos pelo órgão legislativo e por isso se remetem à determinação da Administração". De outro lado, "o concurso das normas paralelas pode permitir a mais solene de ambas, a lei, uma concentração de princípios mais imune ao passar do tempo, em tanto que o casuísmo regulamentário pode ser objeto de adaptações constantes. Deste modo se dota o conjunto normativo de uma maior flexibilidade".

2.3.2.2 Regulamento Autônomo

Geraldo ATALIBA, ao tratar dos regulamentos autônomos, adverte que seria "ridículo que um brasileiro, tratando da faculdade regulamentar, à luz do nosso direito, abra um tópico sob tal designação. Tão ridículo como seria criar um capítulo sobre a inspiração de Alah na ação dos seus delegados-governantes. Nos dois casos, a finalidade de menção seria afirmar o não cabimento do próprio estudo, pela inexistência de reconhecimento constitucional a esses institutos".

Clèmerson Merlin CLÈVE esclarece que "são autônomos os regulamentos criados pelo Executivo em virtude de competência outorgada diretamente pelo texto constitucional ou, no caso das antigas monarquias européias, pelo costume".

Para Manoel Gonçalves FERREIRA FILHO "tais regulamentos flagrantemente criam regras jurídicas novas. Estabelecem limitações à liberdade individual, impõem obrigações, que a lei não previu. Assim, por aplicação estrita do princípio da legalidade, deveriam ser rejeitados por inconstitucionais". Ademais, "essas formas apenas abriam caminho para a transformação do Executivo, na ordem constitucional, em poder também legislativo".

No entanto, faz-se necessário realizar uma distinção entre os regulamentos autônomos e os chamados independentes, os quais são, com certa freqüência, reputados como sinônimos.

A diferença existente entre os referidos regulamentos é a de que, no independente, não há previsão constitucional a seu respeito, discrepando-se, ainda, no que atine à necessidade de haver indicação do ato legislativo que reclama o ato regulamentar, sendo que neste particular inexiste determinação do conteúdo a ser regulamentado.

Sérgio Varella BRUNA ensina que "os regulamentos autônomos são atos normativos editados pelo Poder Executivo com base em competências normativas próprias, estabelecidas na Constituição, para as quais não se prevê a interferência do Poder Legislativo".

Logo, percebe-se, facilmente, que a razão pela qual os referidos regulamentos são veementemente combatidos pela doutrina brasileira é a frontal violência ao princípio da legalidade e da separação dos poderes, visto que os atos normativos provindos da competência regulamentar são formalmente diferentes de lei, razão pela qual não podem inovar o ordenamento jurídico.

Demais disso, o fato de o Poder Executivo exercer função normativa sem qualquer espécie de controle pelo Poder Legislativo fere o princípio constitucional da separação dos poderes, na medida em que o exercício autônomo e desmesurado da função regulamentar implica a inobservância da cláusula-parâmetro da independência e harmonia entre os Poderes.

2.3.2.3 Regulamento Delegado

No âmbito da Administração Pública, é bastante que a lei indevidamente confira ao administrador o poder de dispor sobre o exercício dos direitos pelos particulares. Melhor dizendo: a lei apenas fixa a regra de competência (em seu sentido mais restrito, ligado à determinação do aspecto subjetivo), deixando ao alvedrio do administrador o poder de normatizar determinada matéria.

A este fenômeno tem-se dado o nome de delegação legislativa, espécie do gênero delegações de funções, que nada mais é do que o repasse, por um dos Poderes estatais, de uma função que lhe é típica aos demais.

Luis Roberto BARROSO esclarece que a delegação legislativa é o meio pelo "qual se opera uma transferência da função normativa, constitucionalmente deferida ao Poder Legislativo, a outros órgãos, notadamente os do Poder Executivo".

No âmbito do Poder Executivo, a delegação de poderes se manifesta notadamente por meio das leis-delegadas e dos regulamentos delegados.

Oswaldo Aranha Bandeira de MELLO explica que "os regulamentos autorizados ou delegados são aqueles emanados pelo Executivo, em razão de habilitação legislativa que lhe é conferida pelo Legislativo, porém nos termos dessa determinação de competência, para desenvolver os preceitos constantes da lei de habilitação, que delimita o seu âmbito a respeito".

A questão referente à delegação de funções nunca foi pacífica no Direito. De um lado, existem doutrinadores, como Vitor Nunes LEAL, que entendem inexistir inconstitucionalidade na delegação legislativa, desde que:

Se considerarmos que o próprio texto constitucional poderia traçar limitações às delegações legislativas, impedindo que fossem dadas as autorizações em branco e exigindo sempre que a lei de delegação contivesse os princípios básicos da regulamentação autorizada, os possíveis receios ficam reduzidos a proporções bem menores. Mesmo na ausência de limitações constitucionais, se o congresso resiste em conceder delegações genéricas, se não se curva servilmente diante do executivo, se considera a si mesmo emanação da vontade soberana do povo, nada terá que temer.

Sob a perspectiva inversa, há autores que não têm aceitado a possibilidade de delegações legislativas, em virtude de a "regra da indelegabilidade ter por escopo a proteção do sistema constitucional contra a hipertrofia de um dos poderes da Soberania e a intromissão indevida na esfera dos demais, e não a cura da fidelidade do mandato".

No entanto, como já visto anteriormente, percebe-se que a possibilidade de delegação de poderes, em face do direito brasileiro, é perfeitamente viável, já que houve a supressão da cláusula da indelegabilidade dos poderes do texto constitucional brasileiro de 1988.

Com efeito, a regra da não delegação de poderes deve obediência apenas à impossibilidade de abdicação da competência originária e constitucionalmente atribuída a determinado poder; bem como ao estabelecimento de condições e limites claros para a atuação do poder delegado.

Para que se possa realizar uma delegação de poderes, Luis Roberto BARROSO aponta a existência de duas linhas fundamentais advindas do ordenamento jurídico norte-americano e que foram importadas pelo Brasil, quais sejam:

Pela primeira, a teoria do filling up details (preenchimento de detalhes), seriam legítimas as delegações de competência legislativa ao Executivo quando a esse coubesse tão-somente minudenciar a aplicação da norma geral já editada. Algo, assim, em tudo e por tudo, análogo ao nosso poder regulamentar. A segunda teoria fundava-se em que a delegação legislativa não era vedada, desde que o ato emanado do órgão legislativo transferindo atribuições fixasse parâmetros, standards adequados e satisfatórios para pautarem a atuação legiferante do órgão delegado, limitando-a. A teoria do delegation with standards fez carreira na jurisprudência da Suprema Corte americana, que no entanto, vez por outra, coibiu abusos.

Por importação de tais noções, também a doutrina brasileira passou a encarar com certa atenuação a questão das delegações legislativas, para admiti-las, com reservas, sempre que o legislador oferecesse standards adequados, isto é, quando houvesse início de legislação apta a confinar dentro em limites determinados a normalização secundária do órgão delegado. Inversamente, quando o órgão legislativo abdicasse de seu dever de legislar, transferindo a outros a responsabilidade pela definição das alternativas políticas e das diretrizes a seguir, a invalidade seria patente.

Além disso, eventuais normas que proviessem do Poder Executivo devem estar circunscritas, sempre, ao espaço que é conferido ao poder regulamentar, o qual se conterá dentro das balizas enunciadas na lei, sob pena de estarem eivadas de flagrante inconstitucionalidade.

Atente-se ao que ensina Pedro Carlos Bacelar de VASCONCELOS:

O exercício pela Administração dos poderes que lhe forem delegados pelo Congresso há de ser aferível por princípios claramente definidos na lei delegante. A referência ao Princípio da Separação dos Poderes já não significará tanto preservar uma dada compartimentação de funções, como garantir a efetividade de um vínculo. A partir de agora, na expressão delegação legislativa é permitido subentender uma autorização para legislar, embora apenas no quadro programático que o legislador primário estabeleceu. Contudo a deferência judiciária pela geometria constitucional, tal como protelou uma distinção dogmática entre Executivo e Administração, preferiu também perpetuar o primitivo esquema conceptual da delegação para cobrir práticas tão díspares como actos administrativos, regulamentos das "agencies", actos normativos do Executivo e actos políticos do Presidente.

Assim, percebe-se que o fenômeno da delegação dos poderes deu origem aos regulamentos delegados, os quais são aceitos no Brasil, sob outra nomenclatura, em razão da eliminação da cláusula-parâmetro da indelegabilidade de poderes, bem como em razão de não ter havido abdicação da competência originária, tampouco face à estipulação de limitações ao conteúdo dos atos normativos transferidos.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Guilherme Mussi

advogado em Curitiba/PR

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUSSI, Guilherme. Os limites do poder normativo das agências reguladoras brasileiras:: o caso do encargo de capacidade emergencial ("seguro apagão"). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 316, 19 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5274. Acesso em: 24 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos