A (im)possibilidade da regulamentação do comercialização de órgãos diante de princípios constitucionais

17/10/2016 às 19:32
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O número de pessoas na lista única de transplantes inversamente proporcional ao número de doadores traz a possibilidade da comercialização de órgãos, vedada constitucionalmente, mas que deve ser analisada, diante da busca pela preservação da vida.

Resumo:

Transplante é o procedimento médico cirúrgico que visa à transferência de um órgão, tecido ou parte do corpo, de um indivíduo sadio (doador), para outro indivíduo doente (receptor), visando à preservação da vida humana e à efetivação do princípio da dignidade humana. Assim, tem-se um número de pessoas na lista única de transplantes inversamente proporcional ao número de doadores e, partindo dessa situação, surge a possibilidade da comercialização de órgãos, em que pessoas buscam melhores condições de vida, tanto por parte de quem vende, quanto por quem compra. No estudo realizado, inicialmente, são desenvolvidas noções basilares médico-jurídicas sobre o transplante, abordando princípios e direitos fundamentais, bem como disposições gerais da Lei 9.434/1997. Na sequência, é analisada a comercialização de órgãos diante da preservação da vida, pautando seu aproveitamento como um direito humano, a lista única para transplantes e o direito à burla como como estado de necessidade, para ao fim, averiguar a (im)possibilidade jurídica da regulamentação do comércio de órgãos humanos. Nesse sentido, conclui- se que a comercialização de órgãos não pode ser legalizada, sob pena de mercantilizar e coisificar o corpo humano, desprezando o princípio da dignidade humana, bem como em face da inobservância do texto constitucional, que veda a comercialização de órgãos em seu artigo 199, § 4º, e do direito fundamental à vida.

Palavras-chave: Transplante de órgãos. Comercialização de partes do corpo humano. Princípio da dignidade humana. Direito fundamental à vida.

Introdução

A comercialização de órgãos é um tema instigante e polêmico tanto na área médica, quanto na ética e na jurídica. Desse modo, há diversos aspectos relevantes no que tange à possibilidade de legalização desse comércio, dentre eles, salienta-se o princípio da dignidade humana e a autonomia do indivíduo, bem como a preservação da vida, que devem ser sopesados antes de qualquer discussão acerca do assunto.

O número de pessoas que falecem em uma fila de transplante, na espera de uma segunda chance para a vida, é imensurável. Perante tal situação, surgem polêmicas acerca do direito fundamental à vida, bem como sobre a falta de informação e de incentivo à doação de órgãos, que poderia ser a solução para esse problema.

Assim, é de se considerar de importância do estudo dessa temática, principalmente pelo fato de a comercialização ilícita de órgãos ser uma prática mais usual do que se imagina. Em que pese a existência de uma legislação específica, ainda que de forma compacta, o transplante e a doação de órgãos não vêm sendo amplamente abordados no âmbito jurídico. Ademais, a comercialização ilícita é pouco exposta pela mídia, fazendo acreditar que não faz parte de nossa realidade.

Nesse diapasão, objetivo do artigo é analisar a (im)possibilidade jurídica da comercialização de órgãos humanos para fins de transplante, direcionando-se à resolução da seguinte problemática: a regulamentação do comércio de órgãos é possível, bem como será eficaz para suprir a necessidade de órgãos para transplantes, considerando o princípio da dignidade humana e o direito fundamental à vida?

Uma provável hipótese para esse questionamento apresenta-se através da possibilidade da comercialização de órgãos vir a ser uma possível atenuante para a extensa lista de pessoas na fila para transplantes, que, muitas vezes, não conseguem sobreviver até receber um órgão para transplante. Ainda, por estar em questão um bem jurídico indisponível, a vida, é de caráter fundamental a análise da (im)possibilidade da regulamentação desse comércio.

Imprescindível salientar, desde já, a vedação expressa da Constituição Federal para tal prática, em seu artigo 199, § 4º, bem como da Lei de Transplantes de Órgãos, fundamentada no artigo 15.

NOÇÕES PRELIMINARES E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS AO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS

O transplante de órgãos é visto por muitas pessoas como uma última chance de vida. Tal situação torna plausível os esforços demandados pela ciência e pelo direito, a fim de viabilizar a preservação da vida humana, bem jurídico inestimável e primordial, garantido pela Constituição Federal.

A ciência e o direito sempre andaram de mãos dadas. No entanto, constantemente, a ciência está além do direito. Delmanto, Delmanto Júnior e Delmanto (2014, p. 381) afirmam que “a cada nova descoberta científica, o legislador é desafiado a lhe dar regulamentação jurídica”. Especialmente na área médica, tem-se um processo extraordinário nas últimas décadas. No que concerne aos transplantes, aqueles que antes eram considerados perigosos, de alto risco, hoje estão cada vez mais estáveis e seguros.

Com o intuito de compreender os transplantes, bem como sua legislação específica, Lei nº 9.434/1997, cumpre, inicialmente, abordar alguns conceitos e definições que serão de suma importância para a compreensão do presente tema.

Transplante, no estrito sentido do vocábulo, é o ato ou a ação de arrancar um vegetal de um local e plantá-lo em outro. Já na área do conhecimento médico e jurídico, tal termo é a transferência de um órgão, ou parte deste, de um indivíduo, para outra parte desse mesmo indivíduo, ou também, um indivíduo vivo ou morto para outro indivíduo (PAGNOZZI, 2003).

Sinteticamente, compreende-se por transplante o procedimento médico-cirúrgico, que visa à transferência de um órgão, tecido ou parte do corpo, de um indivíduo sadio, que é denominado doador, para outro indivíduo doente, o receptor, visando ao reestabelecimento da saúde deste.

O transplante se dá de dois modos: inter vivos (doador e receptor vivos) e post mortem (doador falecido e receptor vivo). Para que seja possível a realização do transplante, no caso post mortem, é imprescindível que seja constatada a morte encefálica, a qual é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina.

De forma sintética, Sá (2003), ensina que o critério essencial para o diagnóstico de morte encefálica é cessação irreversível das funções do encéfalo, incluindo o tronco encefálico, no qual estão situadas as estruturas responsáveis pela manutenção dos processos vitais autônomos.

O transplante não é somente um ato de bondade do homem. Desde que um órgão é doado até a realização de seu transplante estão intrinsecamente ligados os direitos fundamentais concernentes ao doador e ao receptor, como o direito à vida, à dignidade humana e a liberdade e disposição ao próprio corpo (SILVA E SPENGLER NETO, 2005).

Importante salientar que, é de grande dificuldade minimizar a um conceito ou fórmula abstrata e genérica a dignidade da pessoa humana, ou seja, conceber uma delimitação específica de seu âmbito de proteção/incidência. No entanto, isso não significa que não se deva buscar tal definição, sendo que esta, não obstante, alcançará pleno sentido apenas quando colocada no plano concreto, como ocorre, em regra, com o restante dos princípios e direitos fundamentais (SARLET, 2005).

Para Magalhães (2012) importante referir a alusão à igualdade e à justiça que dispõe o preâmbulo da Constituição Federal. O princípio da igualdade está pautado na dignidade da pessoa humana; conforme o ser humano é digno lhe são outorgados os direitos fundamentais. Neste viés, importante destacar que:

O art. 1º da Constituição declara quais são os fundamentos do Estado Democrático de Direito, isto é, aquilo que é o seu alicerce e, portanto, nesse momento começa a materialização do espirito constitucional que os constituintes indicaram no Preâmbulo, pois ganha sua racionalidade, estabelecendo os princípios pelos quais o Estado brasileiro se pautará no seu agir. Entre eles, está o princípio da dignidade humana, o mais importante, pois constitui o núcleo de toda a ação estatal, já́ que o Estado tem como último escopo proporcionar o bem comum, que é a promoção da dignidade do ser humano [...]. O reconhecimento da dignidade da pessoa humana é o pilar de interpretação de todo o ordenamento jurídico e toda a Constituição Federativa do Brasil (MAGALHÃES, 2012, p. 153).

Assim, de acordo com Bittencourt (2014), o princípio em tela é considerado bem supremo e basilar aos demais direitos fundamentais, motivo pelo qual, passa a atrair valores constitucionais para si. Por fim, Nunes (2010, p. 63) assevera que “a dignidade nasce com a pessoa. É-lhe inata. Inerente à sua essência [...]. O ser humano é digno porque é”.

Por sua vez, a Carta Magna, em seu artigo 5º, caput, garante a intangibilidade do direito à vida, a qual é um bem jurídico tutelado como direito fundamental básico. Tal direito é outorgado ao ser humano desde a concepção, condicionado ao nascimento com vida, permanecendo agregado até a morte, bem como é inerente a toda e qualquer espécie humana, independendo do modo de nascimento, da condição de ser, de estado físico ou psíquico (BITTAR, 2000).

O direito à vida é apreciado como um direito humano por todas as declarações internacionais, o qual surge como o mais relevante, por ser requisito imprescindível para a aquisição e o exercício dos demais direitos. Desse modo, explica-se seu tardio acréscimo na Constituição Federal por seu valor como símbolo, independentemente de recognição pelo ordenamento jurídico (XAVIER, 2007).

Diante de tal panorama, conforme leciona Oliveira (2013), tem-se o princípio da autonomia da vontade, que é pressuposto essencial para a validade da doação de órgãos. Logo, só será válida a manifestação se a intenção se der de forma clara e livre. O sentido altruísta e a vontade de ajudar o próximo é o que rege a doação, podendo tal conceito ser equiparado com a solidariedade, na medida em que aquele que dispõe de algo que lhe pertence, o faz a título de bondade, classificando-se assim, a doação como pura, eis que não há qualquer natureza de troca.

Desse modo, verifica-se que o princípio da autonomia da vontade está intimamente ligado ao consentimento do receptor/doador, nos termos do artigo 10 da Lei de Transplantes, na medida em que este é imprescindível, sendo que, ante sua ausência tem-se como inviável a realização do transplante.

A importância da autonomia da vontade e do consentimento nos transplantes/doação de órgãos está pautada no fato de que, caso seja averiguado que a manifestação de vontade do doador não se deu de forma livre, a remoção do órgão caracterizará a ocorrência do crime tipificado no artigo 129 do Código Penal Brasileiro; lesão corporal dolosa. Ademais, se o procedimento resultar no falecimento do doador, o médico responsável, bem como sua equipe, poderão incorrer nas sanções do crime de homicídio, previsto no artigo 121 do mesmo diploma. Além das punições penais, os médicos poderão responder civilmente, sendo obrigados a reparar os danos materiais e morais suportados pela vítima, ou ainda, por seus parentes (CARDOSO, 2002).

Ademais, imprescindível tecer breves considerações acerca da Lei de Transplantes – Lei n. 9.434/1997, que aduz que os órgãos, tecidos e partes do corpo humano poderão ser dispostos, para fins de transplantes, de duas formas: post mortem e inter vivos, reguladas nos capítulos II e III, respectivamente.

A Lei de Transplantes, em seu artigo 9º, assevera que:

Art. 9º. É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea.

O objetivo desse artigo é proibir, categoricamente, a venda de órgãos, tecidos ou partes do corpo. Tal proibição é imprescindível, na medida em que visa à proteção de pessoas hipossuficiente, mais vulnerável ao aliciamento dos traficantes de órgãos (DELMANTO, DEMANTO JÚNIOR E DELMANTO, 2014).

Outrossim, a Lei preocupou-se em assegurar que não será permitida a doação, em casos que, mediante realização de exames prévios, restar comprovada a debilidade ou comprometimento da saúde e das atividades do doador, garantindo, assim, o direito à integridade do corpo humano, nos termos do artigo 20 do Decreto nº 2.268/1997, que regulamenta a lei em tela.

A REGULAMENTAÇÃO DO COMÉRCIO DE ÓRGÃOS PERANTE O DIREITO À VIDA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

Diante do expressivo número de pessoas que falecem à espera de um órgão, surge uma prática ilícita: a comercialização de órgãos humanos. Contudo, como tentativa de amenizar o número de pessoas e a dor das famílias daqueles que perdem uma segunda chance de viver, contrapõe-se a essa situação ilícita um direito fundamental, garantido constitucionalmente: a vida.

Nesse ponto está pautada a importância da análise do assunto, na medida em que se faz necessário colocar na balança duas situações de peso: a comercialização de órgãos, vedada pela Carta Magna e em legislação específica, versus o direito à vida, garantido constitucionalmente a todos, sem ressalvas.

O princípio do direito à vida, ao lado do princípio da dignidade humana, é elemento basilar ao ser humano, sendo este irrevogável e absoluto. Assim, sendo o transplante de órgãos um meio de garantir a vida, ou ainda, de garantir melhores condições de vida, pode-se concluir que o transplante de órgãos, mais especificadamente, o aproveitamento de órgãos, pode ser visto com um direito humano fundamental.

Acerca da questão preservação da vida e transplantes de órgãos, Parrili in Chaves (1986, p. 47) ensina que “se um dos fins do Direito é hierarquizar os interesses em conflito, não deve prevalecer aquele que decide enterrar um corpo para sua decomposição, ou autorizar sua incineração, quando elementos desse cadáver são exigidos para preservar uma vida”.

Desse modo, percebe-se que se trata de uma questão de grande relevância, não somente por versar acerca de direitos de personalidade e autonomia da vontade do de cujus, ou da família, mas, sim, por tratar de um meio de preservação da vida, que poderá ser alcançado quando a sociedade abrir mão do receio de submeter seu ente querido a um transplante, seja por medo de que este possa vir a ser vítima do tráfico de órgãos, ou seja por desconhecimento da lei e dos procedimentos acerca dessa questão tão importante, que é o transplante de órgãos.

Os transplantes de órgãos humanos podem ser considerados como a mais extraordinária conquista das ciências médicas. Araújo (2006) declara que esta técnica pode salvar vidas e recuperar a saúde de muitos seres humanos, sendo que este procedimento médico-cirúrgico visa ao reestabelecimento da saúde do paciente, bem como à preservação da vida.

Conforme entendimento de Berliguer (1993), o transplante de órgãos é um procedimento que, combinado com a solidariedade do homem para com seu semelhante, possibilita a transferência de parte de nosso próprio corpo para o corpo alheio, com o intuito de vencer uma enfermidade ou preservar uma vida. Portanto, o procedimento é um dos fenômenos mais benéficos da humanidade, com o qual a as ciências médicas e biológicas muito contribuem. Contudo, são essas mesmas habilitações que possibilitam que o corpo humano seja reduzido à condição de mercadoria.

De acordo com Araújo (2006), na idealização pela preservação da saúde do homem, bem como na busca por uma maior sobrevida, nasce a possibilidade da substituição de órgãos humanos, que estão comprometidos funcionalmente, por outros órgãos sadios, adequados para o funcionamento do corpo humano.  Assim, verifica-se que o transplante de órgãos desempenha um dom divino, de uma forma sutil e poética, de assegurar a preservação da vida humana.

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No que concerne aos transplantes, princípios e a questão da preservação da vida humana, oportuno trazer à tona as palavras de Santos (2000, p. 31):

O Direito Constitucional relaciona-se com a Bioética, pois o profissional da área jurídica, ao se deparar com as novas indagações, em decorrência das novas tecnologias, deve sempre decidir a questão baseado nos princípios constitucionais de dignidade da pessoa humana, inviolabilidade do corpo humano e direito absoluto à vida. Algumas vezes, sem dúvida, essa decisão será muito difícil, pelo fato de serem aplicáveis ao mesmo caso vários princípios. Deve, entretanto, o juiz decidir qual princípio, no caso concreto, prevalecerá. Vale dizer, interpretar a norma.

Nesse contexto, é importante fazer referência ao direito de preservação da sobrevida, ou seja, acerca da sobrevivência do doador, que recentemente teve diagnosticada a morte encefálica.

É necessário ter consciência de que, constatada a morte encefálica, todas as chances de vida são eliminadas, na medida em que, certamente, a lesão sofrida pelo paciente é incompatível com a vida. Ainda que o coração bata, a pressão arterial exista e o corpo permaneça quente, o quadro é irreversível. Tal situação não pode ser confundida com o coma, o qual poderá ser reversível. Até o momento da constatação da morte cerebral, todos os tratamentos necessários e possíveis deverão ser analisados e utilizados, visando tanto à preservação da vida quanto ao alívio da dor. Imperioso destacar que, em momento algum, a morte é desejada, simplesmente busca-se amenizar a dor e o sofrimento do paciente (SÁ, 2003).

Nesse mesmo sentido, Sá (2003) é categórica ao afirmar que, quando se busca a preservação da vida, esta deverá ser visada tanto para o receptor, quanto para o doador, sob pena de se estar incorrendo nas sanções de homicídio, tipificado no artigo 121 do Código Penal. É inviável que seja antecipada a morte de uma pessoa, não esgotando todas as possibilidades terapêuticas para salvá-la, visando possibilitar a cura de outro ser humano.

Assim, percebe-se a formação do trinômio transplante de órgãos X direitos fundamentais X preservação da vida humana. Desse modo, deverão estes ser sopesados a fim de garantir a eficácia dos transplantes, sendo devidamente observados os direitos fundamentais e princípios constitucionais, buscando sempre a preservação da vida humana.

Como principal meio para a efetivação de transplantes, e consequentemente, da preservação da vida, tem-se a lista única, com fulcro no artigo 10 da Lei nº 9.434/1997, com as alterações introduzidas pela Lei nº 10.211/2001. Teixeira e Baêta (2004) asseveram que esta lista é tida como um instrumento de aplicação do Princípio da Justiça, na medida em que garante a distribuição igualitária de órgãos disponíveis pelo uso dos parâmetros cronológicos e de histocompatibilidade.

A ordem da lista se dá pela data de inscrição do receptor, contudo, não será somente adotado o critério cronológico. Deve-se considerar, ainda, a compatibilidade do organismo do receptor com o órgão a ser recebido. Quanto à histocompatibilidade, serão prioritários os casos mais sérios (TEIXEIRA E BAÊTA, 2004).

De acordo com entendimento de Delmanto, Delmanto Júnior e Delmanto (2014, p. 382), o transplante post mortem é regulamentado pelo artigo 33 da Portaria nº 3.407/1998, do Ministério da Saúde, que dispõe que: “o sistema de lista única [...] é constituído de cada tipo de órgão ou tecido, selecionando, assim, o receptor adequado”. Ainda, importante referir que o artigo 34 da mesma Portaria dispõe que: “todos os órgãos ou tecidos obtidos de doador cadáver, que para a sua destinação contarem com receptores em regime de espera, deverão ser distribuídos segundo o sistema de lista única”. Desse modo, os candidatos a receber órgão para transplante, deverão estar devidamente inscritos na Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos – CNCDO.

Para Lamb (2000, p. 178), “uma distribuição de órgãos para transplantes, clara e imparcial, exige imperativos éticos e políticos para a gerência eficiente da distribuição de órgãos que transcendem fronteiras nacionais”. Outrossim, a problemática para que seja alcançado um sistema equânime não foi resolvida. Tal questão é um problema que vai muito além da ética dos transplantes, na medida em que se está diante de uma questão essencial, a distribuição justa de recursos.

Contudo, assinala-se que, com a lista única de transplantes, o que se objetiva é a efetivação da busca pela distribuição justa, através do princípio da igualdade. No entanto, Lamb (2000) aduz que a aplicação deste princípio gera diversas problemáticas na atualidade, ante a imensa dificuldade de manter a igualdade quando não há órgãos disponíveis para atender a todos que dele necessitam, a fim de preservar sua vida ou reestabelecer sua saúde.

No entanto, ainda que com a intensa busca por um aumento de doadores de órgãos através de programas e políticas de conscientização, face à desproporcionalidade entre doadores e possíveis receptores na lista única de espera, verifica-se que o número de doadores vem diminuindo.

De acordo com os relatórios de estatística da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO, 2015, texto digital), o ano de 2015 foi de dificuldades, mas de algum avanço. Ao comparar os dados deste ano de 2015 com os de 2014, “a taxa de doadores efetivos (14,1 pmp) teve leve queda em relação ao ano passado (14,2 pmp), associada à diminuição na taxa de notificação de potenciais doadores (47,8 pmp), embora tivesse ocorrido pequeno aumento no total de doações e notificações”

Ainda, conforme estatísticas da ABTO, estima-se que em dezembro de 2015, dados mais atualizados disponíveis, a lista única contava com 31.915 pessoas na espera para um transplante, em nível nacional. Já no Rio Grande do Sul, 1.149 pessoas esperam por uma nova chance de vida.

Contudo, à frente de particularidade e um tempo notadamente expressivo na espera de um órgão, “aqueles que se vêem na iminência de ter sua vida ceifada pela moléstia que os acomete não tiveram outra alternativa, senão buscar socorro e guarida no Poder Judiciário, onde pugnam pela burla na famigerada fila de espera” (LIMA, 2006, texto digital).

Diante de tal situação, acabou sendo imposto ao Judiciário a decisão sobre a realização emergente de um transplante. Independente do teor dessa decisão, poderá restar caracterizada uma injustiça, pois não assegurou o direito à vida para todos, na medida em que possivelmente existirão outras pessoas em condições iguais, ou ainda, piores do que daquele que buscou o Poder Judiciário (LIMA, 2006).

O princípio norteador dos transplantes, no que concerne à lista única, conforme já mencionado, é o Princípio da Justiça. Teixeira e Baêta (2004, p. 94) lecionam que ele determina o dever de igualdade de tratamento entre os homens e no que diz respeito ao Estado, este deverá possibilitar uma distribuição justa de recursos para a saúde e visa ao acesso equânime a todos aqueles que buscam no transplante de órgãos uma esperança de vida. No entanto, “isto não se traduz em tratar a todos de modo igual, pois são diferentes as situações clínicas e sociais, mas os valores essenciais e constitucionais como a vida, o respeito e a dignidade da pessoa humana devem sempre prevalecer”.

Assim, verifica-se que, ainda que não totalmente eficiente, a lista única é imprescindível para efetivação do direito à saúde, ainda que não para todos. Importante ressaltar que o Poder Judiciário possibilita àquele doente enfermo postular judicialmente a “burla” à lista de órgãos, desde que não seja injustificada.

A lista única de espera, ainda que não impeça diretamente, vem enfrentando a comercialização de órgãos de modo efetivo. Assim, diante da exploração da lista única, torna-se necessário analisar a liberdade do indivíduo de comercializar seu próprio corpo, burlando a lista sem o acesso ao Poder Judiciário, ante seu estado de necessidade, bem como do futuro receptor.

A liberdade de vender partes do próprio corpo humano está pautada no princípio da autonomia da vontade e no direito a partes separadas do corpo humano, ou quais são intimamente ligados entre si, e com o transplante de órgãos.

Salienta-se que, para Berlinguer e Garrafa (2001), a autonomia é baseada no direito que o indivíduo possui de dispor de seu corpo. Contudo, importante referir que, nos últimos tempos, a livre manifestação das vontades do corpo e das legítimas aspirações do indivíduo vem sendo freada por limites religiosos e jurídicos, em especial no que concerne aos transplantes de órgãos.

Bittar (2000) leciona que, em busca da preservação da vida e da saúde, bem como na pesquisa e cura de doenças, tem-se como elemento primordial a disposição do próprio corpo, ficando a preceito do profissional da saúde habilitado seu uso, respeitado o consentimento do interessado ou de seu representante. No entanto, importante referir que o estado de necessidade é tido com ressalva, devendo ser respeitado.

Percebe-se que é ilícita a disposição da vida e da integridade física de outrem, sem seu consentimento ou contra a vontade deste. Desse modo, verifica-se a contraposição de dois princípios em contraste: o princípio da liberdade e o princípio da indisponibilidade da vida e da integridade física (SANTOS, 2000).

Enquanto parte da espécie humana, não podem ser-lhes negados todos os direitos. Desse modo, origina-se a venda da iniquidade e exploração dos abismos, na medida em que estes direitos deveriam ser protegidos de fraudes e todas as formas de coação. Assim, sustenta-se o caráter ético da compra e venda de órgãos em nome da liberdade que o indivíduo possui de dispor de si (BERLINGUER E GARRAFA, 2001).

Com base na proposta de um mercado de órgãos humanos, surge um argumento comum: a necessidade oriunda da instabilidade entre a demanda e a oferta. Nesse sentido, Berlinger e Garrafa (2001) afirmam que a criação desse mercado, ainda que restrito, e a insistência na tentativa de legitimá-lo e expandi-lo, induz ao descrédito na ciência e na medicina, criando insegurança quanto ao conjunto dos transplantes, desencorajando as doações e majorando o desequilíbrio entre a necessidade e a disponibilidade de órgãos.

Cabe referir que a liberdade de vender-se e o estado de necessidade está pautada em duas situações: a) a liberdade, elencada na autonomia da vontade, do indivíduo sadio de vender parte de seu corpo, mais especificadamente, órgãos, na medida em que este, em situação de hipossuficiência, de falta de recursos financeiros, vê na comercialização de órgãos um modo de melhorar sua vida na questão econômica; b) o indivíduo enfermo, como uma última esperança no intuito de preservar, ou ainda, melhorar as condições de sua vida, visualiza a solução no mercado ilícito de órgãos, idealizando tal situação como estado de necessidade.

Diante de tais circunstâncias, imprescindível conceituar estado de necessidade. Para Bitencourt (2012, p. 409) este “pode ser caracterizado pela colisão de bens jurídicos de distinto valor, devendo um deles ser sacrificado em prol da preservação daquele que é reputado como mais valioso”.

O estado de necessidade tem fulcro no artigo 24 do Código Penal, que dispõe que: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.”

Salienta-se que, conforme entendimento de Nucci (2014), o estado de necessidade possui os seguintes requisitos: a) presença de perigo atual; b) involuntariedade na geração do perigo; c) perigo ou lesão inevitável; d) proteção/preservação de direito próprio ou alheio; e) proporcionalidade do sacrifício do bem ameaçado; e f) ausência de dever legal de enfrentar o perigo.

Ao aplicar a situação da comercialização de órgãos como meio de preservação da vida diante do estado de necessidade, verifica-se que, analogicamente, os requisitos estabelecidos pelas alíneas a, b, d, e f estão devidamente caracterizadas. Contudo, as condições previstas nas alíneas c e e não estão cristalinamente evidenciadas.

Senão vejamos: Diante da questão da inevitabilidade do perigo e lesão, indaga-se: a venda/compra de órgãos humanos é o único meio de assegurar a preservação da vida àquele que necessita de um transplante de órgãos, e tal situação é o único artificio que resta ao hipossuficiente para ascender economicamente?

Quanto ao requisito elencado por Nucci, a proporcionalidade do sacrifício do bem ameaçado, surge o questionamento: é proporcional praticar ato ilícito, a comercialização de órgãos, para preservar a própria vida, ou ainda, no caso do “doador-vendedor”, a fim de melhorar sua situação econômica e, consequentemente, qualidade de vida de sua família?

Tais questões serão analisadas na sequência, com o intuito de deliberar acerca da problemática central do presente artigo: a (im)possibilidade da regulamentação da comercialização de órgãos humanos diante do princípio da dignidade humana e do direito fundamental à vida.

A comercialização de órgão humanos é uma dura realidade que afeta uma quantidade de pessoas inimaginável, em especial, quando se fala no âmbito internacional. À vista disso, surge uma questão de suma importância: a legalização do comércio de órgãos humanos. No entanto, conforme já elucidado, essa prática é vedada pela nossa Constituição Federal. Destarte, emerge a necessidade de analisar acerca da possibilidade, ou impossibilidade, da regulamentação dessa comercialização ilícita.

Conforme entendimento de Diniz (2009), a comercialização de órgãos é incontrolável, na medida em que há uma insaciável sede de lucro e casos de pessoas com baixo poder aquisitivo que, na esperança de atenuar sua miséria, vendem seus órgãos para pessoas ricas, tornando, assim, a mercantilização uma triste realidade de nossa sociedade.

Acerca dos relatos relacionados com o tema em epígrafe, importante trazer à tona as palavras de Delmanto, Delmanto Júnior e Delmanto (2014, p. 390):

Após a escravidão, abolida formalmente em nosso país em 1888, negociar órgãos, tecidos e parte do corpo humano é o que há de mais abjeto, transformando pessoas e seus corpos em coisas precificadas. Há notícia da existência de organizações criminosas transnacionais especializadas na prática desse crime, seja cooptando pessoas em situação de vulnerabilidade, seja sequestrando-as e extraindo os seus órgãos sem o seu consentimento. Como se vê, a capacidade do ser humano para a prática do mal não tem limites, merecendo severa repressão penal.

Nesse mesmo sentido, de suma importância abordar a comparação feita por Berlinguer (1993) entre o mercado de corpos humanos na época da escravidão e o mercado atual, que abrange as sequências de DNA, os embriões para uso experimental e os órgãos para transplante.

Berlinguer (1993) afirma que, para ele, não há diferença substancial. A diferença que há é a de objetos, na medida em que, no primeiro caso, o comércio dizia respeito ao corpo num todo, e no caso atual, o corpo é fragmentado em partes, sendo que cada uma é utilizada com a finalidade de caráter terapêutico ou científico, mas sobretudo, para fins mercantis. Salienta, ainda, que existe uma diferença quanto ao procedimento, sendo que na escravidão a organização do mercado se dava somente de forma brutal, especialmente com o uso de força, ao passo que o mercado de órgãos necessita da interferência da medicina e da ciência biológica. Ausente essa colaboração, o mercado de órgãos não subsistiria, na medida em que são imprescindíveis centros altamente aparelhados, bem como profissionais especializados.

Diniz (2009) afirma que a venda de órgãos é perigosa, antiética e ilícita, na medida em que acarreta diversas consequências, sendo relevante citar o desencorajamento de doações voluntárias; a criação de preços preestabelecidos por órgão; a manipulação das finanças referentes à alocação de órgãos, desconsideração aos imprescindíveis fatos genéticos, psicossociais; entre outras.

Ainda, Diniz (2009, p. 352) traz à tona as seguintes questões: “Suas consequências morais, éticas e jurídicas não serão mais negativas do que os benefícios que poderia trazer? A mercantilização de estruturas humanas não seria um desrespeito à dignidade da pessoa humana? ” Desse modo, posiciona-se pela inconstitucionalidade da comercialização, preservando o altruísmo desse gesto tão nobre.

Contudo, há autores que defendem a comercialização. Castro (2002) afirma que, enquanto a doação de órgãos mediante alguma espécie de recompensa não for revelada com uma atividade lícita e legítima, os doadores tenderão a camuflar sua cooperação. Assim, essas pessoas continuarão vulneráveis e hipossuficientes diante dos intermediários (médicos e traficantes) inescrupulosos, num mercado clandestino, recebendo cuidados negligentes.

Conforme leciona Lima (2012), o mercado de órgãos poderia trazer algumas vantagens, sendo que as principais seriam o aumento da autonomia sobre o próprio corpo; o término da discussão e da disformidade acerca do valor dos órgãos; a comercialização ilícita seria combatida e desestimulada; e, por fim, várias pessoas teriam suas vidas preservadas.

Outrossim, o que mais se mostra relevante é a contribuição para a criação de laços entre o doador e o receptor; “o motivo é que compensar os doadores é algo que confirma um alto nível de valorização proporcional ao sacrifício que eles fazem e transmite a mensagem de que não se está tirando vantagem de seu altruísmo” (CASTRO, 2002, p. 431).

Importante ressaltar as palavras de Garrafa (1993, texto digital):

Quem mais radicaliza na proposta de criação de um mercado de órgãos de cadáveres é o advogado Blumstein. Ele parte do princípio de que deve ser eliminado o controle do doador ou de sua família sobre a distribuição de órgãos doados para transplantes, passando o órgão humano a ser considerado uma espécie de “propriedade nacional”, uma sugestão que traz alguns aspectos positivos e merece ser mais discutida [...]. Segundo ele, as pessoas que foram criadas no regime de economia de mercado só doam algo quando incentivadas monetariamente, pois estão culturalmente acostumadas com esse sistema, e, além disso, “os medicamentos são pagos, o hospital é pago, o médico é pago. Por que os órgãos não devem ser também pagos?”

Inviável não concordar com Garrafa ao afirmar que a proposta do advogado Blumstein é radical. Diante de um posicionamento tão extremista, encontra-se uma resposta simples para seus questionamentos: os órgãos não devem ser pagos, pois se tratam de partes do corpo humano, um bem indisponível e de valor imensurável. Se fossem os órgãos pagos, surgiriam diversas problemáticas, como por exemplo valores dos órgãos, bem como se o Estado teria estrutura para fiscalizar tal mercado.

Bortoloti (2007) considera que há milhares de pessoas na espera de órgão, sendo que a fila pode durar de três a dez anos. Este obstáculo vem estimulando a comercialização, que, em que pese proibido por lei específica e constitucionalmente, vem sendo a única e última solução para os enfermos que já se encontram desesperados, em virtude de ver seu tempo de vida passar sem poder fazer nada.

O mesmo autor aduz que existem razões humanitárias para a comercialização de órgãos, em especial por parte de quem comprar. Contudo, a lei é rígida e cristalina ao vedar a proibição e, para conseguir frear os traficantes de órgãos, o Estado deverá agir com celeridade, a fim de impedir que o desespero seja a propulsão para o traficante.

Revela-se de suma importância destacar as palavras de Garrafa (1993, texto digital) acerca dos argumentos utilizados por doutrinadores que defendem a comercialização de órgãos:

A linha de argumentação aqui defendida vai muito além do raciocínio reducionista que discute de forma isolada a salvação de alguns poucos milhares de vidas humanas; pela sua importância e pelos reflexos que certamente acarretará, influenciará diretamente nas formas de viver e morrer da humanidade e, de certo modo, no futuro da própria humanidade. A questão da comercialização de estruturas e órgãos humanos, portanto, permeia em um dos principais marcos de referência filosófico-ético-morais dos próximos séculos. Os cientistas e demais defensores da implantação de teorias de mercado neste delicadíssimo campo talvez não estejam se dando conta de que as suas palavras e ações de hoje fatalmente interferirão em outras questões ainda muito mais profundas do que aquelas que se referem somente aos transplantes e doações de tecidos e órgãos humanos. E estas outras questões, quando explodirem, estarão fora dos seus insignificantes alcances, mas, mais do que nunca, dentro de suas significativas responsabilidades.

No entanto, ainda que com vários doutrinadores defendendo a comercialização, há vozes aguerridas que lutam contra essas propostas, que buscam, de todo modo, legalizar um procedimento totalmente destoante à prática médica. Se legitimado, este procedimento poderá alterar bruscamente a abordagem humana, que, orgulhosamente, a medicina consegue manter. Especialmente, porque as questões de bioética e comércio de órgãos humanos excederam as fronteiras da área médica em si mesma, na medida em que os profissionais da medicina devem analisar o assunto com uma cautela maior ainda, pois erros cometidos poderão suscitar consequências imprevisíveis e, de certo modo, até mesmo irreversíveis. Nesse momento, os compromissos axiomáticos da medicina serão reivindicados pela humanidade (GARRAFA, 1993).

Neste viés,  Lima (2012) refere que a legalização do mercado de órgão não irá solucionar a situação financeira do doador, o qual somente despendará maiores gastos com a saúde. Outrossim, tal mercado não seria aproveitado por todos que carecem de um órgão, na medida em que grande parte deles não possui recursos financeiros para isso, bem como, diante da impossibilidade do Estado custear estes tipos de tratamentos a todas as classes, a solução é o estímulo de doações altruístas por meio de políticas públicas.

Dessa forma, em que pese alguns doutrinadores aceitem e incentivem a mercantilização do corpo humano, tal situação não pode ser alterada. Assim, deve permanecer a proibição expressa pela Constituição Federal da República Federativa do Brasil, prevalecendo, sobretudo, o direito à dignidade humana, com fulcro no artigo 1º, inciso III, da Carta Magna, bem como o direito à vida, eis que este é decorrente daquele.

conclusão

O presente artigo versa, de forma mais ampla, sobre a análise da (im)possibilidade jurídica da legalização do comércio de órgãos humanos, o qual é vedado pela Constituição Federal, em seu artigo 199, § 4º, bem como por legislação específica, com fulcro no artigo 15 da Lei nº 9.434/1997.

O transplante de órgãos é um procedimento que visa à preservação da vida humana, baseado na solidariedade e no altruísmo do ser humano. Nesse sentido, a exploração da (im)possibilidade da comercialização de órgãos, deu-se com base em princípios, sendo enfatizado o princípio da dignidade humana e o direito à vida.

Inicialmente, foram explorados alguns conceitos médicos para compreensão do presente tema. Desse modo, conceituou-se transplante como o procedimento médico cirúrgico, que visa à transferência de um órgão do doador para o receptor, visando reestabelecer a saúde deste; bem como definiu a morte encefálica que, sinteticamente, pode ser descrita como a cessação das funções do encéfalo, que são responsáveis pela manutenção dos processos vitalícios do corpo humano.

Além disso, abordou o transplante diante dos princípios da dignidade humana, do direito à vida e do princípio da autonomia, sustentada a supremacia do princípio da dignidade humana, fundamento da República Federativa Brasileira, com fulcro no artigo 1º, inciso III, da Carta Magna.

Por fim, chegou-se ao ápice do estudo: examinar o comércio de órgãos diante do princípio da dignidade humana, bem como do direito à vida. Desse modo, traçou-se o aproveitamento de órgãos humanos como um direito e como um meio de preservação da vida humana, restando caracterizada a formação do trinômio transplante de órgãos versus direitos fundamentais versus preservação da vida humana, devendo estes ser sopesados antes da realização do transplante, sob pena de se perder o objeto da doação de órgãos: o altruísmo.

Encerrando o estudo, abordou-se a (im)possibilidade da regulamentação jurídica do comércio de órgãos, trazendo à baila posicionamentos de doutrinadores contra e a favor do assunto, sendo que, após análise minuciosa dos argumentos, conclui-se pela impossibilidade da regulamentação do tema.

Nesse sentido, adota-se a ideia de Lima (2012) ao referir que a regulamentação do comércio de órgãos vai em direção oposta ao ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que tal prática é enfaticamente proibida pela Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 199, § 4º. Ainda que tal artigo não está incluído no rol das cláusulas pétreas previstas no artigo 60, § 4º da Carta Magna, sustenta-se a equiparação deste com a indisponibilidade do corpo, a qual decorre do artigo 5º da Constituição, que é considerado cláusula pétrea. Desse modo, ante a inviolabilidade do corpo, tem-se como inadmissível a mercantilização de órgãos. Assim, nem mesmo por meio de emenda seria possível legalizar o comércio de órgãos na legislação brasileira.

Salienta-se, ainda, que tal discussão não é novidade; desde o século passado, alguns doutrinadores e estudiosos ocupavam-se em legalizar esse comércio, bem como outros uniam forças e argumentos a fim de barrar essa proposta. Contudo, essa discussão não está nem perto do fim.

Dentre os argumentos favoráveis à legalização da mercantilização de órgãos, sobressai-se a ideia de Castro (2002), de que diante de um gesto tão nobre como é a doação de órgãos, o indivíduo deve ser recompensado, sob pena de desvalorizar o sacrifício do indivíduo, difundindo a mensagem está aproveitando-se indevidamente de seu ato altruísta.

No entanto, os doutrinadores que vão contra a regulamentação do comércio de órgãos, encontram amparo no fato de que, o artigo 199, § 4º da Carta Magna, que veda a comercialização de órgãos humanos, é norma constitucional originária. Desse modo, enfatiza-se que o STF não admite a tese de normas constitucionais inconstitucionais, ou seja, aquelas normas advindas do poder constituinte originário.

Por fim, nesse panorama, conclui-se pela impossibilidade jurídica da regulamentação do comércio de órgãos, na medida em que tal situação acabaria por criar uma mercantilização do corpo humano, desrespeitando a Constituição Federal e seus princípios. Importante salientar, ainda, que se estaria diante de uma irreverência ao princípio da dignidade humana, bem como do direito fundamental à vida, sendo ambos considerados basilares e indisponíveis ao ser humano.

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Sobre a autora
Emile Steffens

Graduada em Direito pelo Centro Universitario Univates, advogada, assessora de nível superior na FADERS - órgão estadual gestor de políticas públicas para pessoas com deficiência.

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