Frequentemente, órgãos responsáveis pela persecução penal — incluindo o Ministério Público e o Poder Judiciário —, bem como agentes públicos e advogados, levantam questionamentos sobre as decisões tomadas pela Autoridade Policial. Um dos debates mais recorrentes gira em torno da autoridade do Delegado de Polícia para decidir sobre a formalização ou não do Auto de Prisão em Flagrante Delito.
É importante salientar que a legitimidade da função do Delegado de Polícia é amplamente reconhecida tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina.
Entretanto, antes de enveredar pelo campo doutrinário e jurisprudencial, cumpre trazer à tona, por exemplo, uma breve passagem em que a Lei Complementar Estadual (Mato Grosso) n.º 405, de 30 de junho de 2010, assegura expressamente a autonomia e a independência ao Delegado de Polícia do Estado de Mato Grosso no exercício de suas atribuições, in verbis:
“Dispõe sobre a Organização e o Estatuto da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso e dá outras providências.
Art. 195. O Delegado de Polícia tem autonomia e independência no exercício das funções de seu cargo.
Art. 196. O Delegado de Polícia goza do mesmo tratamento dispensado às demais carreiras jurídicas”.
Com isso, os vocábulos e as expressões empregadas supra e ao longo do texto referentes à autonomia e independência não são meras palavras que possuem apenas o condão de trazer conotação de grandeza de ferramentas protetivas conferidas ao Delegado de Polícia, no exercício do cargo, mas possuem uma relevância extraordinária, porquanto em termos práticos dão independência e autonomia ao Delegado de Polícia para deliberar na atividadefim, de forma isenta, imparcial e de acordo com sua convicção técnico-jurídica, sem interferências internas e externas.
Portanto, em sua atividadefim, o Delegado tem independência funcional e autonomia para deliberar e optar pelo melhor caminho que juridicamente lhe aprouver – ainda que isso contrarie posições institucionais internas e de outros órgãos incumbidos também em seus papéis pela persecução penal. Aliás, a palavra e o poder de deliberação nesse instante são conferidos ao Delegado e não podem ser usurpados, ainda que a pretexto de não se concordar com a deliberação encampada, sob pena de retomarmos as tentativas fracassadas no passado de criminalizar o “crime de hermenêutica/interpretação/exegese” que assolou a classe da magistratura e volta a assombrar, além dessa nobre classe na atualidade, outras classes jurídicas.
Por isso, a importância da fundamentação na deliberação pelo Delegado de Polícia no exercício da função.
Cumpre anotar que o Delegado de Polícia, desde o advento do art. 2.º da Lei 12.830/2013, necessariamente deve possuir formação superior no curso de Direito, cujos membros são integrantes das “carreiras jurídicas”, essenciais e exclusivas de Estado.
Nesse ponto, traz-se à baila outra legislação no mesmo pórtico direcionada ao cargo de Delegado da Polícia Federal e do Delegado de Polícia da Polícia Judiciária Civil do Distrito Federal que apresentou a roupagem de atividade jurídica exercida pelo Delegado de Polícia (de ambas as carreiras), ilustrando a carga de juridicidade e científica no desempenho do indigitado cargo. Aliás, calha destacar nesse viés que, a atividade jurídica de uma carreira, proporciona uma gama de proteção no desempenho do cargo na vertente da autonomia, independência, discricionariedade de analisar um tema posto – além da segurança jurídica em si do núcleo decisório. Dessa feita, confiramse as transcrições da Lei n.º 13.043/2014:
“A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1.º A Lei n.º 9.266, de 15 de março de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 2.ºA, 2.ºB e 2.ºC:
“ Art. 2.ºA. A Polícia Federal, órgão permanente de Estado, organizado e mantido pela União, para o exercício de suas competências previstas no § 1.º do art. 144. da Constituição Federal, fundada na hierarquia e disciplina, é integrante da estrutura básica do Ministério da Justiça.
Parágrafo único. Os ocupantes do cargo de Delegado de Polícia Federal, autoridades policiais no âmbito da polícia judiciária da União, são responsáveis pela direção das atividades do órgão e exercem função de natureza jurídica e policial, essencial e exclusiva de Estado.
Art. 2.ºB. O ingresso no cargo de Delegado de Polícia Federal, realizado mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, é privativo de bacharel em Direito e exige 3 (três) anos de atividade jurídica ou policial, comprovados no ato de posse.
Art. 2.ºC. O cargo de DiretorGeral, nomeado pelo Presidente da República, é privativo de delegado de Polícia Federal integrante da classe especial”.
[…]
Art. 2.º O art. 2.º e o § 1.º do art. 5.º da Lei n.º 9.264, de 7 de fevereiro de 1996, passam a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 2.º A Carreira de Delegado de Polícia do Distrito Federal, de natureza jurídica e policial, é constituída do cargo de Delegado de Polícia. (NR)
Art. 5.º ……………………………………………………………….
§ 1.º O ingresso na Carreira de Delegado de Polícia do Distrito Federal darseá mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, exigindose diploma de Bacharel em Direito e, no mínimo, 3 (três) anos de atividade jurídica ou policial, comprovados no ato da posse.
………………………………………………………………………..” (NR)
Verdadeiramente, avançando as abordagens, compete registrar que o Delegado de Polícia possui certa margem de discricionariedade jurídica na condução de seus trabalhos, assim como ocorre nas carreiras de magistratura, defensores públicos, procuradores do Estado, procuradores municipais, promotores de justiça, entre outras. Se assim não fosse, não teriam razão de existir comandos normativos que entregam sob a batuta do Delegado de Polícia a atribuição e a responsabilidade de deliberar sobre os casos postos a seus cuidados conduzidos até a Delegacia de Polícia, em sua independência funcional e convicção técnico-jurídica.
Em reforço aos argumentos expendidos que dão margens à construção na logicidade e na solidez quanto à possibilidade de o Delegado de Polícia optar ou não pela ratificação da voz de prisão, há necessidade perene da motivação (fundamentação) sempre nas análises técnico-jurídicas do fato nos atos inerentes ao cargo de Delegado de Polícia. Essa exigência não poderia ser diferente. Tanto é assim que no ato de indiciamento, por exemplo, o art. 2.º, § 6.º, da Lei n.º 12.830/2013 preconiza que:
“O indiciamento, privativo do delegado de polícia, darseá por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e circunstâncias.”
Aqui não se podem perder de vista as discussões relativas ao momento adequado para indiciamento – que possuem inúmeras correntes encampando os vários momentos para tanto,1 embora o que nos interessa esteja limitado à temática proposta quanto ao fato de o Delegado de Polícia poder ou não deixar de lavrar Auto de Prisão em Flagrante Delito.
Retomando a discussão central do debate, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADIN n.º 3.460/DF, cuja relatoria coube ao Ministro Carlos Ayres de Britto, reconheceu em comentários obter dictum 2 que, se a atividade policial diz respeito ao cargo de delegado, ela se define como de caráter jurídico, embora o objeto da referida ADIN n.º 3.460/DF tenha sido outro cargo. O citado aresto restou insculpido da seguinte forma:
“Constitucional. Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 7.º, parágrafo único, da Resolução n.º 35/2002, com a redação dada pelo art. 1.º da Resolução n.º 55/2004, do Conselho Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. A norma impugnada veio atender ao objetivo da Emenda Constitucional 45/2004 de recrutar, com mais rígidos critérios de seletividade técnico profissional, os pretendentes à carreira ministerial pública. Os três anos de atividade jurídica contamse da data da conclusão do curso de Direito e o fraseado “atividade jurídica” é significante de atividade para cujo desempenho se faz imprescindível a conclusão de curso de bacharelado em Direito. O momento da comprovação desses requisitos deve ocorrer na data da inscrição no concurso, de molde a promover maior segurança jurídica tanto da sociedade quanto dos candidatos. Ação improcedente”
(STF, Tribunal Pleno, ADIn n.° 3.460/DF, Rel. Min. Carlos Brito, j. 31.08.2006, DJe037, divulg. 14.06.2007, public. 15.06.2007, DJ 15.06.2007, p. 20, Ement. 228002/233, LEXSTF, v. 29, n. 344, p. 3369, 2007)
Não custa lembrar que para o ingresso na carreira de Delegado de Polícia é requisito essencial ser bacharel em Direito. É inescondível que o Delegado de Polícia exerce “atividade jurídica”,3 cuja terminologia perpassa aspectos conceituais, trazendo desdobramentos impactantes na órbita jurídica, inclusive permitindo que o Delegado, graduado no curso de bacharelado em Direito, adote o posicionamento que lhe parecer mais adequado segundo sua independência funcional,4 autonomia e discricionariedade motivada.
Na mesma direção, o eminente jurista Celso Bastos, em sua obra Comentários à Constituição do Brasil, escrita em parceria com Ives Gandra Martins, comenta a decisão do Supremo Tribunal Federal dada na ADIn n.º 171MG e cita o voto vencido do Ministro Celso de Mello, no sentido de que os delegados de polícia exercem funções isonômicas também com os membros do Ministério Público, especialmente “na fase investigatória criminal” (acréscimo nosso):
“Todas elas são de carreiras jurídicas – preleciona José Afonso da Silva – primeiro porque exigem formação jurídica como requisito essencial para que nelas alguém possa ingressar; segundo porque todas têm o mesmo objeto, qual seja: a aplicação da norma jurídica; terceiro porque, por isso mesmo, sua atividade é essencialmente idêntica, qual seja, a do exame de situações fáticas específicas, emergentes, que requeiram a solução concreta em face da norma jurídica, na busca de seu enquadramento nesta, o que significa a subsunção das situações de fato na descrição normativa, operação que envolve interpretação e aplicação jurídica, campo essencial comum que dá o conceito dessas carreiras […]”.
Desse modo, cabe ao Delegado de Polícia, como operador do Direito, analisar o caso concreto e verificar a legalidade da prisão e se esta deve subsistir. Conforme lições do Professor Francisco Sannini Neto:
“O Delegado de Polícia é aquele que tem o primeiro contato com o crime e que, portanto, apresenta as melhores condições para efetivar a investigação. Temos de enxergar a figura da autoridade policial como a de um juiz da fase préprocessual. O Delegado é um sujeito imparcial e que deve atuar como um garantidor dos direitos fundamentais dos sujeitos passivos da investigação.” 5
Ademais, vale lembrar, como mencionado em linhas anteriores, que o Delegado de Polícia possui discricionariedade na formação do seu convencimento jurídico, o que reforça o entendimento de que é possível encampar várias vertentes que a lei traçar, desde que de maneira fundamentada. Com isso, pode-se afirmar sem receio e sem titubear que, o Delegado de Polícia no âmbito de suas atribuições constitucionais e legais é soberano em suas posições decisórias. Por isso, se comenta na doutrina, guardada as proporções devidas nas atribuições de cada um nos respectivos cargos que, o Delegado de Polícia é o juiz de fato na esfera policial.
Nesse diapasão, é a lição de Roger Spode Brutti:
“As Autoridades Policiais, por suposto, constituemse agentes públicos com labor direto frente à liberdade do indivíduo. É da essência das suas decisões, por isso, conterem inseparável discricionariedade, sob pena de cometeremse os maiores abusos possíveis, quais sejam, aqueles baseados na letra fria da Lei, ausentes de qualquer interpretação mais acurada, separadas da lógica e do bom senso.” 6 .
Oportuna doutrina defendida por Julio Fabbrini Mirabete profere:
“Ao receber o preso e as notícias a respeito do fato tido como criminoso, a autoridade policial deverá analisar estes e os elementos que colheu com muita cautela, a fim de verificar se é hipótese de lavrar o auto de prisão em flagrante. A prisão não implica obrigatoriamente na lavratura do auto, podendo a autoridade policial, por não estar convencida da existência de infração penal ou por entender que não houve situação de flagrância, conforme for a hipótese, dispensar a lavratura do auto, determinar a instauração de inquérito policial para apurar o fato, apenas registrálo em boletim de ocorrência etc., providenciando então a soltura do preso”.
Fernando Capez entende possível a liberdade imposta pelo Delegado de Polícia após a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, como hipótese de juízo negativo de valor, ocorrendo o dito relaxamento se o Delegado de Polícia, após o recolhimento ao cárcere e antes da comunicação imediata ao juiz de um fato que tornaria a prisão abusiva, procedesse à soltura. 8
Maurício Henrique Guimarães Pereira apregoa que:
“O Delegado de Polícia pode e deve relaxar a prisão em flagrante, com fulcro no art. 304, § 1.º, interpretado a contrario sensu, correspondente ao primeiro contraste de legalidade obrigatório, quando não estiverem presentes algumas condições somente passíveis de verificação ao final da formalização do auto, como, por exemplo, o convencimento, pela prova testemunhal colhida, de que o preso não é o autor do delito, ou, ainda, quando chega à conclusão que o fato é atípico”.
Sobre o mesmo tema em discussão, Fernando da Costa Tourinho Filho aduz que:
“Por derradeiro: como se infere do próprio § 1.º do art. 304, quando da ouvida do condutor e das testemunhas, “pode não resultar suspeita contra o conduzido”, não podendo então a autoridade mantêlo preso. É até caso de o Delegado relaxar o flagrante”. 10
E prossegue o dito autor, Fernando da Costa Tourinho Filho:
“ Poderá a Autoridade Policial relaxar a prisão? Pelo que se infere do § 1.º do art. 304. do CPP, tal será possível. Se, quando da lavratura do auto, não resultar das respostas dadas pelo condutor, pelas testemunhas e pelo próprio conduzido, fundada suspeita contra este, a autoridade não poderá mandar recolhêlo à prisão. E, se não pode assim proceder, concluise que a Autoridade Policial deve relaxar a prisão, sem, contudo, descumprir o preceito constitucional inserto no art. 5.º, LXII, a fim de que se apure possível responsabilidade da autoridade coatora, isto é, da autoridade que efetuou a detenção”. 11
Acerca do despacho ratificador da Autoridade Policial (Delegado de Polícia de carreira) os Professores Cleyson Brene e Paulo Lépore ensinam que:
“Em seguida, a Autoridade Policial deve realizar um juízo de tipicidade sobre os fatos e, se resultar das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhêlo à prisão (art. 304, § 1.º, CPP).
No denominado despacho ratificador, deverá o Delegado de Polícia justificar a prisão do autor, descrevendo em qual hipótese de flagrante do art. 302, CPP, se amolda, bem como elencar as diligências necessárias para a conclusão do inquérito policial”. 12
E continuam a bradar que:
“Não estando convencido o Delegado de Polícia de que o fato apresentado autorizaria o flagrante, deixará de autuar o conduzido, relaxando a prisão. Portanto, caso entenda insuficiente o conjunto probatório, justificará tal medida mediante despacho não ratificador de voz de prisão. Em tal situação, determinará a liberação do conduzido, passando o inquérito policial a gozar do prazo de 30 dias para sua conclusão”. 13
Na mesma senda, Guilherme de Souza Nucci afirma que:
“[…] conforme o auto de prisão em flagrante desenvolvese, com a colheita formal dos depoimentos, observase a Autoridade Policial que a pessoa presa não é aparentemente culpada. Afastada a autoria, tendo sido constatado o erro, não recolhe o sujeito, determinando sua soltura. É a excepcional hipótese de se admitir que Autoridade Policial relaxe a prisão”. 14
O Professor Renato Brasileiro Lima leciona sobre a ratificação ou não de voz de prisão em flagrante:
“[…] Parte da doutrina não interpreta o art. 304, 1.º, CPP como relaxamento da prisão em flagrante, mas sim situação em que a autoridade competente deixa de ratificar a voz de prisão em flagrante dada pelo condutor por entender que não fundada suspeita contra o conduzido”. 15
A jurisprudência encampa o mesmo posicionamento capitaneado pela doutrina pátria nesse viés jurídico, entendendo pela discricionariedade do Delegado de Polícia na lavratura ou não da prisão em flagrante delito, senão vejamos:
“A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o Delegado de Polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante” (RT 679/351).
“A autoridade policial goza de poder discricionário de avaliar se efetivamente está diante de notícia procedente, ainda que em tese e que avaliados perfunctoriamente os dados de que dispõe, não operando como mero agente de protocolo, que ordena, sem avaliação alguma, flagrantes e boletins indiscriminadamente” (RJTACRIM 39/341).
“Compete privativamente ao delegado de polícia discernir, dentre todas as versões que lhe sejam oferecidas por testemunhas ou envolvidos em ocorrência de conflito, qual a mais verossímil e, então, decidir contra quem adotar as providências de instauração de inquérito ou atuação em flagrante. Somente pode ser acusado de se deixar levar por sentimentos pessoais quando a verdade transparecer cristalina em favor do autuado ou indiciado e, ao mesmo tempo, em desfavor daquele que possa ter razões para ser beneficiado pelos sentimentos pessoais da autoridade” (RT 622/2967; JTACRIM 91/192).
Portanto, a visão acurada da discussão sinaliza na vertente de que a Autoridade Policial deve atuar como um garantidor dos direitos fundamentais dos cidadãos, impedindo que inocentes tenham os seus direitos à liberdade e locomoção tolhidos, assegurando, por outro lado, o dever de atuar com foco para que não haja hipertrofia do aparato policial na repressão criminosa no momento da formalização da prisão em flagrante.
O Delegado de Polícia – assim como nas carreiras do Ministério Público, Magistratura, Advocacia Pública e correlatas – não pode agir como verdadeiro protótipo da robótica, conferindo automaticidade a toda situação aparentemente flagrancial que lhe é apresentada, que pode permear ou não efetivamente a prisão em flagrante delito.
Nesse ponto, o Delegado de Polícia, de forma motivada como exigem a Lei n.º 12.830/2013 e outros diplomas legais, deve deliberar, consignando seu entendimento, quer seja pela ratificação ou não da prisão em flagrante delito.
Em suma, como se pode observar, a isso também se convenciona denominar de discricionariedade motivada ou fundamentada em sua deliberação.
Logo, diante do quadro fático e dos elementos cotejados e pelas demais fundamentações, em cognição sumária em sede de flagrante, verificase que o Delegado não só pode, mas deve, sob seu feixe técnico jurídico, avaliar se as supostas condutas do conduzido foram ou não surpreendidas à luz do art. 302, incisos I usque IV, todos do CPP.
Por isso, a Autoridade Policial, após a fase do art. 304, caput e § 1.º, ambos do CPP, numa leitura a contrario sensu, além de não ratificar, deve determinar a soltura (ou relaxamento da prisão efetuada), sem prejuízo de instaurar procedimento por meio de portaria ou investigação preliminar.
Certamente, não faz sentido estar a Autoridade Policial, perante situação em que não restou subsumida em nenhuma das situações do art. 302, incisos I usque IV, todos do CPP, obrigada a lavrar a prisão em flagrante delito, incorrendo inclusive em eventual abuso de autoridade, caso seja constatado dolo nessa direção, sem prejuízo das apurações, devendo as investigações prosseguir para apurar os fatos em análise mediante portaria ou investigação preliminar, se for a hipótese.
Essa análise é de suma importância e traz consequências e efeitos práticos relevantes na atuação de uma Autoridade Policial, principalmente para deixar de lavrar Auto de Prisão em Flagrante Delito, sem que incorra em crime de prevaricação, improbidade administrativa e infrações administrativas.
Pensar o contrário, além de afrontar a razoabilidade, a proporcionalidade e a isonomia da carreira de Delegado de Polícia com outros cargos no âmbito da atividade jurídica, é adotar o fomento de eventuais chancelas de prisões eivadas de vícios, ilegais e inconstitucionais, com imposição a qualquer preço da ratificação e lavratura da prisão em flagrante – o que não ocorreria em nenhuma outra das carreiras jurídicas.
O Delegado de Polícia, Fabrício de Santis, antevendo essa problemática de não se imiscuir na livre convicção em deliberações – interferência esta que não ocorreria em nenhuma outra das carreiras jurídicas – na tomada de decisões16 pelo Delegado de Polícia, assevera:
“[…] Finalizando, se não cabe a ninguém discutir sobre a livre convicção sustentada por um juiz de direito na aplicação da sentença, bem como da independência funcional do promotor de justiça quando do oferecimento ou não da denúncia, de igual sorte a ninguém cabe se imiscuir na decisão tomada pelo delegado de polícia quando da lavratura ou não de auto de prisão em flagrante, bem como do indiciamento ou não de suspeitos em sede de inquérito policial devidamente instaurado. Ainda mais agora, com o advento da Lei 12.830/2013, que sacramentou entendimento nesse sentido, conferindo ao delegado de polícia a incumbência da condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, conforme art. 2.º, § 1.º, do mesmo diploma”. 17
Não se está pregando que as deliberações policiais sejam inquestionáveis. De fato, nenhuma deliberação (independentemente de qualquer cargo) está imune ao manejo de procedimentos e ferramentas que se insurjam no Estado Democrático de Direito, em face de eventuais ilegalidades e inconstitucionalidades.
Em verdade, o que deve ficar claro é que a Autoridade Policial, em sua independência funcional, autonomia e discricionariedade, deve deliberar com liberdade sob sua reserva discricionária de convicção técnico-jurídica – ainda que contrariando interesses de indivíduos, classes e instituições –, sem que isso lhe atraia responsabilidades.
Portanto, não se pode fazer letra morta nem interpretação rasa desses importantes dispositivos de envergadura legal, mesmo porque são de grande relevância essas garantias legais conferidas ao Delegado de Polícia para deliberar de forma independente e autônoma no combate e repressão ao crime e na esfera administrativa, livre de ingerências e interferências de qualquer ordem.
Por fim, conclui-se pela possibilidade de o Delegado de Polícia, sob o prisma legal, doutrinário e jurisprudencial, deixar de lavrar Auto de Prisão em Flagrante Delito de forma motivada, a lastrear-se sua convicção técnico-jurídica, sob sua independência funcional, autonomia e discricionariedade, sem que incorra em crime de prevaricação, improbidade administrativa e infrações administrativas.