Epistemologia do pragmatismo.

Uma introdução ao pensamento pragmático

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29/10/2016 às 12:36
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O artigo tem por objetivo discorrer, de forma introdutória, a respeito do pragmatismo do ponto de vista epistemológico e, consequentemente, em um cunho filosófico.

INTRODUÇÃO

            O presente artigo tem por objetivo geral a introdução do pragmatismo dentro de uma perspectiva de cunho filosófica, dentro da discussão da epistemologia. Para tanto, já que se pretende um enfoque epistemológico, inicialmente, será objetivo específico deste artigo tratar do conceito de epistemologia, com base nas obras clássicas de Châtelet (1973, I) e Abbagnano (2007). A seguir, também será objetivo específico desenvolver sobre as bases filosóficas da perspectiva pragmática, para tanto, serão abordados autores basilares de tal escola, William James e Charles Sanders Peirce, os quais discutem sobre a transcendência da dicotomia entre teoria e prática, que mais adiante será a essência para o conceito de experiência deweyano.      Neste sentido, por fim, também será objetivo específico do primeiro capítulo asseverar sobre o pensamento de Dewey no que tange sua influência para o movimento escolanovista, maxime nas obras Experiência e educação e Educação e democracia, onde o autor discorre sobre o fundamental papel do educador e sua importância no desenvolvimento saudável do educando. Destarte, a pergunta que propulsiona e melhor sintetizaria este capítulo pode ser assim formulada: levando-se em conta o conceito deweyano de experiência, como é possível pensar na filosofia pragmatista?

            A Epistemologia pode ser entendida como um campo filosófico interessado em se chegar ao conhecimento mais verdadeiro possível, sendo, pois, também é fundamental para a construção da Ciência. O ato de se debruçar diante de determinado objeto cognoscível, seja um fenômeno, um fato ou uma criação teórica – que, em uma visão pragmática poderia ser generalizado na própria experiência, visto que teoria e prática por ela não se diferenciam, como será mais bem discutido alhures –, demonstra não apenas o interesse por compreender as questões mais estruturais, mas aponta para um método propriamente filosófico de isolamento e esquadrinhamento do conhecimento, na tentativa de se chegar a seu estado mais rudimentar (ABBAGNANO, 2007).

            A epistemologia, em princípio, pode ser compreendida como o estudo das coisas puras, por único meio do exercício da reflexão, de modo que seria impossível dissociá-la da filosofia. Inclusive, poderia se dizer que por este método, na busca pelo estado primordial e genuíno, a filosofia, enquanto caminho das incertezas e dos questionamentos infindáveis, encontra, talvez, sua vereda mais pragmática, uma vez que o filósofo sai do discurso unicamente teórico e se volta para a prática e os dilemas e problemas da experiência. É neste sentido que Châtelet (1973, I) relembra o sentido etimológico, a asseverar que a expressão deriva da composição entre ἐπιστήμη, onde se lê episteme, relativo à ideia de ciência, conhecimento; e λόγος, onde se lê logos, a significar estudo. O que, reiteradamente, reforma a ideia de que a epistemologia está ligada à ideia de um estudo ou método filosófico do conhecimento – ressaltando, mais uma vez, que não se trata de um conhecimento, mas de o conhecimento. A questão que se coloca, obviamente retomando à antiguidade é se, de fato, seria possível ao homem, por meio de sua razão, cognição, sentido e percepção, lapidar determinado conhecimento e tal grau de pureza?

            Neste diapasão, Abbagnano (2007), ao relacionar Epistemologia com a Teoria do Conhecimento, de acordo com o autor, o termo Gnoseologia é mais utilizado. Em italiano, o termo mais usado é gnoseología. Em alemão, o termo Gnoséologie, cunhado pelo wolffiano Baumgarten, teve pouco sucesso, ao passo que o termo Erkenntnistheorie, empregado pelo kantiano Reinhold, Versuch einer neuen Theorie des menschlichen Vorstellungsvermôgens, 1789, foi comumente aceito. Em inglês, o termo Epistemology foi introduzido por J. F. Ferrier, Institutes of Metaphysics, 1854, e é o único empregado comumente, sendo Gnoseology bem raro. Todos esses nomes têm o mesmo significado: não indicam, como muitas vezes se crê ingenuamente, uma disciplina filosófica geral, como a lógica, a ética ou a estética, mas um modo de tratar um problema nascido de um pressuposto filosófico específico, no âmbito de determinada corrente filosófica, que é o idealismo. O problema cujo tratamento é tema específico da Teoria do Conhecimento é a realidade das coisas ou, em geral, do mundo externo. E completa o autor:

A Teoria do Conhecimento começou a perder o primado e também o significado quando se começou a duvidar da validade de um de seus pressupostos, isto é, que o dado primitivo do conhecimento e “interior” à consciência ou ao sujeito e que, portanto, a consciência ou o sujeito devem ir para fora de si mesmos – o que, em princípio, é impossível – para apreender o objeto. Kant, em Refutação do Idealismo, acrescentada à 2a edição de Crítica da Razão Pura (1787), demonstrara a sua falta de fundamento. Os analistas contemporâneos também rejeitam o primeiro pressuposto da Teoria do Conhecimento, isto é, que o conhecimento é uma forma ou categoria universal que pode ser indagada como tal: assumem como objeto de indagação os procedimentos efetivos ou a linguagem científica, e conhecimento em geral. Portanto, a Teoria do Conhecimento perdeu seu significado na filosofia contemporânea e foi substituída por outra disciplina, a metodologia, que é a análise das condições e dos limites de validade dos procedimentos de investigação e dos instrumentos lingüísticos do saber científico (ABBAGNANO, 2007, p. 183).

            Por meio da análise da Crítica da Razão Pura, Kant (1971) diferencia o conhecimento empírico, ou seja, aquele adquirido pela experiência, por meio da prática e observação, e aquela categoria pura, da qual não se necessita ter qualquer experiência que ser concebido, pois são intuitivos. No clássico exemplo da gravidade, diz o autor, “se alguém escava os alicerces de uma casa, a priori poderá esperar que ela desabe sem precisar observar a experiência da sua queda, pois, praticamente, já sabe que todo corpo abandonado no ar sem sustentação cai ao impulso da gravidade” (p. 24). Contudo, diante desse exemplo poderia se dizer que mesmo a noção da gravidade, que se demonstra tão evidente, não está desvinculada da prática, embora seja óbvio ao adulto que qualquer objeto pesado tende a ser atraído para o solo, este conhecimento algum dia foi aprendido ou observado, não sendo improvável supor que desde a mais tenra idade os bebês já podiam contemplar os objetos largados caíram ao chão.

            O que se entende, então, por meio dos autores pós-kantianos, em alusão à própria afirmação de Abbagnano, é que a ideia de um conhecimento puro, totalmente desvinculado da prática e da experiência, a qual se torna objetivo de investigação e obsessão do epistemólogo se aproxima à comprovação de um fato histórico com base em um mito ou a busca arqueológica baseada em falácias lendárias. Uma vez que a epistemologia, tradicionalmente é entendida como a busca por um conhecimento puro e, a priori, inacessível ao homem, qual seria o sentido de continuar buscando algo que já se sabe ser impossível ser atingido?

            É nesta trincheira que se diz que o sentido clássico de epistemologia se tornou obsoleto com o legado dos filósofos modernos e descendentes de Kant, visto que hodiernamente não se consolida mais a ideia de uma verdade pura e inacessível à razão humana, a qual deveria se tentar atingir, sendo que este meio – e não o fim, já que seria impossível – se tornaria um campo filosófico autônomo. Em lugar desta busca utópica por um estado de conhecimento que jamais poderia ser atingido, ou quiçá apenas ser tocado no caso de uma mente absolutamente brilhante, se tornou comum à busca por um método que pudesse dar validade ou credibilidade quase que científica ao conhecimento. A concepção contemporânea de epistemologia toma como ponto de partida a análise do conhecimento enquanto tal, ou seja, verificar, por meio dos pressupostos filosóficos, se se está diante de um conhecimento. A experiência, pois, se torna meio para tal investigação, o que poderia supor que a epistemologia está muito próxima de uma matriz teórica pragmática.

1. A Epistemologia pragmatista: as bases de Charles Sanders Peirce e William James

            O Pragmatismo é quase tão antigo quanto à própria Filosofia, muito embora a escola seja majoritariamente atribuída aos estadunidenses no século XIX, suas raízes retomam os sofistas da Grécia Antiga. Uma vez que os mais arcaicos e primitivos vestígios do pensamento filosófico se iniciaram com as incompreensões cotidianas da vida, seja qual for a perspectiva histórica que se adote, pode-se dizer que a ideia de Pragmatismo sempre esteve ligada à Filosofia. Na medida em que os dilemas observados e vivenciados pela prática deram origem às primeiras inquietações humanas, não há como negar que antes mesmo que o homem se elucubrasse sobre as questões mais subjetivas de si, ele se voltou para os objetos a sua volta e para as infinitas questões que envolviam sua relação com a natureza e o meio social em que vivia. Sendo assim, a prática, em seu sentido mais pragmático, e a Filosofia sempre caminharam juntas.

            Conforme aponta Graciano (2012), foi entre os sofistas, mormente com advento do pensamento de Protágoras[1] que se observam as primeiras construções pragmáticas na história da filosofia. Em um tempo em que havia pouca ou quase nenhuma educação sistemática na Grécia, os sofistas se prestaram a cumprir essa tarefa. Eles eram mestres itinerantes. Embora os sofistas tenham desempenhado um papel valioso na educação literária, eles tratavam de vários temas, e alguns deles ensinavam assuntos de uso prático mais imediato. É entre os sofistas que se encontra Protágoras, o qual, embora abandone a busca da verdade, parece admitir que uma opinião seja melhor do que outra no sentido pragmático.

            Como bem demonstra Châtelet (1973, I), é em Protágoras que se encontra o grande retrato do relativismo sofista, o primeiro em data e o mais prestigoso dos sofistas, é talvez a doutrina de um homem sem doutrina, que sabe o que valem o pró e o contra teóricos, dentre as citações mais famosas atribuídas ao ator encontra-se “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são enquanto são, das coisas que não são enquanto não são” (p. 62), a qual, deveras ambígua e misteriosa, segundo interpretação platônica, indica que o homem, em sentido plural, atribui sua significação as coisas, sendo, então, que cada um dará sua própria interpretação, tornando relativo o entendimento de cada objeto. Tal afirmação acaba por esbarrar na concepção pragmatista moderna, na medida em que a existência das coisas – “são” – estão relacionadas à construção da realidade que cada homem constrói por meio de sua experiência, sendo cada uma delas singular. Além dos sofistas, outros pensadores também se utilizaram do pragmatismo, não apenas na Antiguidade como também durante o período Moderno, neste sentido sintetiza William James:

           

Não há nada de novo absolutamente no método pragmático. Sócrates foi adepto dele. Aristóteles  empregou-o metodicamente. Locke, Berkeley e Hume fizeram contribuições momentâneas à verdade por seu intermédio. Shadworth Hodgson insiste em que as realidades são somente o que sabem delas. Esses precursores do pragmatismo, porém, usaram-no de madeira fragmentária: apenas o preludiaram. Não foi senão em nossa época que seu generalizou, tornou-se consciente de uma missão universal, aspirou a um destino conquistador. Acredito nesse destino, e espero poder terminar transmitindo-lhe toda a minha fé (JAMES, 1967, p. 46).

            Destarte, segundo o próprio autor, embora o referencial teórico pragmático tenha sido desenvolvido apenas em período coevo, precisamente no final do século XIX com as contribuições de Charles Sanders Peirce e William James, o método do Pragmatismo já estava a ser usado há muito tempo no campo filosófico. Sendo assim, até então não havia nenhum resultado particular, mas somente uma atitude de orientação, que é o que o método pragmático significa. A atitude de olhar além das primeiras coisas, dos princípios, das categorias, das supostas necessidades; e de procurar pelas últimas coisas, frutos, consequências e fatos. O processo, já observado por Schiller e Dewey, pelo qual qualquer indivíduo estabelece novas opiniões é sempre o mesmo, qual seja, há um estoque de novas experiências que as põe em processo de triagem. Alguém as contradiz; ou então, em algum momento de reflexão, descobre que elas se contradizem umas com as outras; ou toma conhecimento de fatos como as quais são incompatíveis; ou surgem desejos que elas deixam de satisfazer.

             Em um dos esboços mais embrionários a respeito do pragmatismo, Peirce, a criticar o pensamento tradicional sedimentando até então, da qual ao homem é capaz construir ideias originais por meio de sua capacidade cognitiva, assevera que “o mecanismo da mente só pode transformar conhecimento, mas nunca originá-lo, a menos que alimentado com fatos da observação” (PEIRCE, 1975, p. 27)[2]. Neste entendimento, enquanto o pensamento tradicional baseado no racionalismo pregava que a verdade só poderia ser alcançada pela razão, ou seja, pela construção simbólica, visto que o conhecimento advindo da prática e percebido pelos sentidos se apresentada demasiadamente duvidoso, esta nova concepção filosófica inova ao afirmar que é impossível chegar à verdade senão por meio da prática. Então, é possível entender com base na afirmação de Peirce, que a cognição humana não produz novos conhecimentos, sua capacidade está em analisar os já apreendidos, que por sua vez o são por meio da experiência.

O termo deriva da mesma palavra grega prágma, que significa ação, do qual vêm as nossas palavras prática e prático. Foi introduzida pela primeira vez em filosofia por Charles Peirce, em 1878, em um artigo intitulado Como tornar claras nossas ideias, em Popular Science Monthly de janeiro daquele ano. Peirce, após salientar que nossas crenças são, realmente, regras de ação, dizia que, para desenvolver o significado de um pensamento, necessitamos apenas determinar que conduta está apta a produzir: aquilo é para nós o seu único significado, e o fato tangível na raiz de todas as nossas distinções de pensamentos, embora sutil, é que não há nenhuma que seja tão fina ao ponto de não resultar em alguma coisa que não seja senão uma diferença possível de prática. Para atingir uma clareza perfeita em nossos pensamentos em relação a um objeto, pois, precisamos apenas considerar quais os efeitos concebíveis de natureza prática que o objeto pode envolver – que sensações devemos esperar daí, e que reações devemos preparar. Nossa concepção desses efeitos, seja imediata, seja remota, é então para nós, o todo de nossa concepção do objeto, na medida em que essa concepção tenha afinal uma significação positiva (JAMES, 1967, p. 40)[3].

            O método pragmático, ainda segundo o autor, é primeiramente um método de assentar disputas metafísicas que, de outro modo, se estenderiam interminavelmente. É o mundo um ou muito? – predestinado ou livre? – material ou espiritual? – eis aqui noções, quaisquer das quais podem ou não valer verdadeiras para o mundo; e as disputas em relação a tais noções são intermináveis. O método pragmático nesse caso é tentar interpretar cada noção traçando as suas consequências práticas respectivas. Na prática, que diferença haveria para alguém se essa noção, de preferência àquela outra, fosse verdadeira? Se não pode ser traçada nenhuma diferença prática qualquer, então as alternativas significam praticamente a mesma coisa, e toda disputa é vã. Sempre que uma disputa é séria, devemos estar em condições de mostrar alguma diferença prática que decorra necessariamente de um lado, ou o outro está correto (JAMES, 1967).

            O método pragmático, de acordo com esta afirmação, pode ser entendido como o próprio processo de aprendizagem e, em última análise, como a educação[4]. Independente do tipo de conhecimento que se está a analisar, ao assumir a concepção pragmatista, o indivíduo ao entrar em contato com o mundo a seu redor, por meio de suas capacidades cognitivas de sensação e percepção, apreende o objeto que deseja conhecer. Contudo, antes que o faça, ele identifica e o compara com outros conhecimentos que já possui e que fazem parte de seu repertório. O estoque, já citado por James, se refere aos conhecimentos já apreendidos pelo indivíduo que, por meio de novas experiências estão constantemente se renovando. O processo educativo, que em última instância se refere à adaptação cultural sofrida pelos entes sociais, em detrimento da experiência, pode ser entendido como a construção de algo que já era conhecimento, de modo a ser melhor dizer que educação significa reconstrução. Não obstante sua apreensão e reflexão, o conhecimento não se constitui como verdade pelo simples fato de ser absorvido.

O caso mais simples de verdade nova é naturalmente, a mera adição numérica de novas espécies de fatos, ou de fatos novos isolados de velhas espécies, à nossa experiência – uma adição que envolve nenhuma alteração em nossas velhas crenças. Dia após dia, e os seus conteúdos são simplesmente acrescentados. Os novos conteúdos em si não são verdadeiros, simplesmente aparecem e são. A verdade é que dizem a respeito deles, e quando dizemos que aparecem, a verdade é satisfeita pela simples fórmula aditiva (JAMES, 1967, p. 52).

            A verdade, pois, nada mais é que outra construção não estando relacionada com a experiência. O conhecimento, para a concepção pragmática, é obtido por meio da experiência, ou seja, por meio da prática e da vivência. A verdade, contudo, opera no campo simbólico, e não necessariamente se relaciona com algo experienciado. Talvez não seja apropriado dizer que a experiência se desvincula totalmente da verdade ou que se ligue à não-verdade, mesmo porque, segundo a concepção pragmatista, independente de ser algo simbólico, a verdade continuaria a se referir ao mundo da experiência, visto que ao homem seria impossível conceber ideias absolutamente desprovidas das experiências. De modo que a questão proposta pelo pensamento pragmático se refere ao conhecimento ligado à prática e não a uma construção abstrata e simbólica. Em suma, diferenciar verdade de experiência perde seu sentido ao passo que teoria e prática se confundem, ao ponto de tudo – como será mais bem examinado a seguir – John Dewey afirmar que tudo é experiência[5]. É neste ponto que se diferencia Empirismo de Pragmatismo, uma vez, enquanto o Empirismo representa a construção do conhecimento baseado na comprovação por meio da experiência, o Pragmatismo se refere a uma construção de ordem filosófica por meio da prática, onde não se observa a cientificidade metódica[6].

            Completa James (1967) que se as ideias teológicas provam ter valor para a vida concreta, ou seja, são verdadeiras, pois o pragmatismo as aceita, no sentido de serem boas para tanto. O quanto serão verdadeiras, entretanto, dependerá inteiramente de sua relação com as demais verdades, que têm, também, de ser reconhecidas. Supondo-se que uma ideia ou crença seja verdadeira, diz, que diferença concreta, em sendo verdadeira fará na vida real de alguém? Como será compreendida a verdade? Quais experiências serão diferentes que prevaleceriam se crença fosse falsa? Qual, em suma, é o valor em caixa da verdade, em termos experimentais? No momento em que o pragmatismo faz essa pergunta, infere-se a resposta: as ideias verdadeiras são aquelas que podem ser assimiladas, validadas, corroboradas e verificadas; as ideias falsas são aquelas com as quais não se pode fazê-lo. Essa é a diferença prática que se faz ter ideias verdadeiras, portanto, esse é o significado da verdade, pois é tudo como pode ser conhecida a verdade.

            Importa ressaltar que embora os pragmatismos, escusados pelo legado de James, defendam que a verdade é uma construção abstrata e relativa a um indivíduo, sendo, pois, subjetiva, haveria então diversas verdades que, apesar de contraditórias, não deixariam de fazer sentido no contexto em que foram concebidas. Todavia, tal pluralidade de abstrações, conceitos, ideias e teorias não podem ser confundidas com o pensamento perspectivista nietzschiano, o qual defende que não existem verdades absolutas, nem conceito derradeiro, imortalizado pelo aforismo 483: “Convicções são inimigas da verdade mais perigosas que as mentiras” (NIETZCHE, 2005, p. 239)[7]. O pragmatismo, ao contrário do pensamento perspectivista, não se detém à desconstrução dos discursos dogmáticos, sua crítica está na própria defesa da importância da experiência e da negação da dicotomia entre teoria e prática.

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            Neste sentido, poderia cometer a ousadia de afirmar que os pensadores pragmáticos transcenderam os perspectivista, visto que enquanto estes ainda estão apegados a tal decrépita dicotomia, os pragmáticos já iniciam seu discurso partindo de sua negação. Em suma, a verdade, ou seja, aquele conhecimento derivado da experiência e vivenciado pelo indivíduo, só existe enquanto tal naquele momento em que foi estabelecido, visto que ela é um reflexo histórico, heterogêneo e complexo. Então, fora daquele contexto o fato deixaria de ser verdade. O pragmatismo encerra a tradicional dicotomia platônica entre fato e ideia, pois para esta concepção os fatos são necessariamente pretéritos às ideias, que por sua vez só podem ser transformadas, jamais criadas. Qualquer que seja o conhecimento a ser analisado este adveio da prática. Igualmente, o pensamento pragmático também encerra o debate entre física e metafísica, teologia e ciência, porque em última análise todo conhecimento é derivado da prática e, portanto, verdadeiro.

2. A Epistemologia pragmatista de Dewey: o conceito de experiência

            O Pragmatismo tem, então, como objetivo principal transcender ao tradicional celeuma entre teoria e prática. Sua inovação, do ponto de vista epistemológico, opera em um contexto de ruptura com o paradigma tradicional até então vigente. Segundo esta concepção, o conhecimento se juga à experiência, na medida em que ao indivíduo é impossível conceber ideias absolutamente novas. Ademais à vinculação prática, o conhecimento também se torna verdadeiro, já que depende da análise de seu contexto. Além do pioneirismo teórico desenvolvido por Charles Sanders Peirce e William James, John Dewey também se posiciona como outro grande expoente do Pragmatismo. Em virtude de sua vasta experiência no campo da Psicologia e da Filosofia, Dewey conseguiu trazer também à baila pedagógica as contribuições deste pensamento para o campo acadêmico.

            Neste sentido, uma vez que a epistemologia, conforme pondera Souza (2012), se ocupa com a produção do conhecimento e com os processos do conhecer, não se podem ignorar as raízes sociais da produção do saber científico, porém a epistemologia procura analisar criticamente as teorias científicas. O pragmatismo se preocupa com a produção do conhecimento. Esta questão está muito presente no pensamento de Dewey onde os objetos estão inter-relacionados, a partir da lógica, no processo de construção do conhecimento. Permitindo, por isso, a conexão de uns com os outros, levando à aplicabilidade pragmática, uma vez que conhecer se trata de perceber essas conexões que ligam os objetos com um fim útil. Assim, continua o autor, a filosofia não deve apenas evitar as dualidades: razão e experiência; ideal e real; teoria e prática; indivíduo e sociedade, mas combatê-los, já que o conhecimento se dá na continuidade da experiência e não apenas em sua fragmentação. A inteligência investigativa ou pensamento reflexivo é que deve estabelecer essas relações que ligam e religam os objetos naturais.

            Voltando-se à essência do pensamento pragmático, em sua obra Como Pensamos, Dewey analisa o processo psíquico que envolve o ato de pensar e, consequentemente a função reflexiva e educativa. Por meio de seu conhecimento psicológico, o pensador estadunidense discorre sobre o mecanismo cognitivo, na tentativa de entender como se desenvolve o fenômeno da aprendizagem e como seria possível educar, de modo a treinar sua capacidade reflexiva, sem tornar o educando um receptáculo de conhecimentos. Nesta trincheira, ao retomar o aspecto pragmático como propulsor da origem dos pensamentos, menciona Dewey:

Dizer-se de um modo geral a uma criança – ou a um adulto – que pense, abstraindo da existência, em sua própria experiência, de alguma dificuldade que os embarace ou perturbe seu equilíbrio, é tão ocioso como exigir que se ergam no ar a si mesmos, puxando os cordões de seus sapatos (DEWEY, 1959, p. 24).

            Por meio desta citação é possível entender que de acordo com sua concepção, baseada no empirismo de Hume[8] e, sobremodo, no pragmatismo de Pierce (1975), ao definir que, ao contrário da crença tradicional, a mente não originaria ideias absolutamente genuínas, ao contrário, apenas as transformaria, sua origem, pois, estaria relacionada com a vivência, a prática, a observação, ou seja, a experiência. Desse modo, não há como dissociar ideia de experiência, ou seja, toda construção simbólica desenvolvida pelo indivíduo é reflexo de alguma experiência por ele praticada. Para que haja a aprendizagem de determinado conhecimento, é necessário que anteriormente tenha havido uma experiência na qual o indivíduo tenha apreendeu e introjetou determinado saber. Por meio desta abstração, o indivíduo poderá refletir sobre ela e elaborar conexões mais complexas com outras abstrações – também advindas de experiências – resultando em construções mais elaboradas.

            Do ponto de vista pedagógico, no contexto da relação entre educador e educando, o pensamento deweyano aponta que a experiência se refere aos conhecimentos já obtidos ao longo da trajetória de vida de cada um. O processo educativo de Dewey propõe uma educação construída a partir destes conhecimentos, de modo que o educando possa relacionar o conhecimento escolar com questões já vivenciadas por ele. De outro modo, quando o educador não deixa clara a relação entre o ministrado em aula e a prática cotidiana, o processo de aprendizagem se torna falho, pois se torna impossível que o educando estabeleça uma relação entre o conhecimento novo e seu repertório, impossibilitando uma construção crítica. Assim, afirma o autor que mesmo quando uma criança – ou adulto – se acha embaraçada com algum problema, é inteiramente inútil exortá-la a pensar a respeito, quando ainda não possui experiência própria em condições aproximadas às presentes (DEWEY, 1959)[9].

            Outrossim, ainda em relação ao exercício de pensamento e reflexão humano, Dewey discorre sobre importância da dúvida e do questionamento enquanto ferramenta precisa de desenvolvimento cognitivo e interpretação da experiência, de modo a compreender melhor os estímulos a sua volta e as dinâmicas que ocorrem em sociedade. Para pensar verdadeiramente bem, diz o autor, cumpre estar disposto a manter e prolongar esse estado de dúvida, que é o estímulo para uma investigação perfeita, na qual nenhuma ideia se aceite, nenhuma crença se afirme positivamente, sem que lhes tenham descoberto as razões justificativas (DEWEY, 1959).

            A prática se coloca, pois, como elemento mais importante no processo de construção humana, porque é por meio da experiência que o indivíduo entrará em contato com o universo, refletindo sobre ele e, na medida de suas possibilidades, modificando-o. Contudo, de acordo com a proposição de Dewey, o que pode ser entendido por experiência? Talvez pareça óbvio, em princípio, o conceito de experiência, uma vez que se trata de um termo bastante recorrente no senso comum, mas será que seu significado comum, relacionado com a prática e a observação, está adequado com a filosofia deweyana? Na tradução da obra de Vida e Educação, na introdução intitulada Educação como reconstrução da experiência, Anísio Teixeira se dedica a esquadrinhar o conceito de educação de forma bastante lúcida. De acordo com o autor, seu conceito está relacionado com toda ação ocorrida no universo, com ou sem a interferência humana. Os corpos, no sentido natural, agem uns sobre os outros, de forma física, química, biológica e psíquica, é por meio destes fenômenos que ocorrem as experiências.

Esse agir sobre o outro corpo e sofrer de outro corpo uma reação é, em seus próprios termos, o que chamamos de experiência. Nosso conceito de experiência, longe, pois, de ser atribuído puramente ao homem, alarga-se à atividade permanente de todos os corpos, uns com os outros (TEIXEIRA in DEWEY, 1964, p. 10).

            O conceito de experiência para Dewey se torna tão amplo que abrange qualquer acontecimento, observável ou não ao homem, sequer relacionado a ele. Sua definição, embora filosófica, transcende, então, a própria existência humana, já que ela opera independentemente na natureza. Mais uma vez esta concepção pragmática supera a tradicional dicotomia entre cultura e natureza, construção humana e ambiente. Todo o Universo existe e independe da existência ou da análise humana, a experiência deixa de fazer parte de uma operação cognitiva da racionalidade para se inserir como elemento da própria natureza[10]. No plano humano, de acordo com a compreensão de Dewey (1964), experiência não é, portanto, alguma coisa que se oponha à natureza, – pela qual se experimente, ou se prove a natureza. Experiência é uma fase da natureza, é uma forma de interação, pela qual os dois elementos que nela entram – situação e agente – são modificados.

            No entendimento de Anísio Teixeira (In Dewey, 1964), o agente, no contexto da educação, remete ao próprio homem que se insere em determinada experiência, não se resume aos adultos, mas aos jovens e às crianças, que também estão inseridas no processo educativo. Em suma, o agente é o sujeito ativo no processo, aquele que sente a experiência. Não obsta asseverar, contudo, que dada a grande abrangência do conceito de experiência, relativo a qualquer relação física ou química do Universo, agente também pode ser qualquer corpo que, ao ser tomado como eixo da perspectiva, se torna o elemento principal da relação. Assim, o choque entre dois asteroides na órbita terrestres, será agente aquele que for eleito como tal, segundo a perspectiva com que analisa, sendo o outro corpo mero elemento da situação.

            A situação, por sua vez, ainda no entendimento do autor, se relaciona com o contexto e a dinâmica de interação entre os corpos. No contexto educacional, enquanto o agente se relaciona ao educando, aquele que apreende, a situação se refere ao meio em que se dá o processo de aprendizagem, ou seja, onde e como ocorreu o fato transformador do conhecimento. Fora do exemplo educacional, a situação é também entendida como o contexto em que ocorre a interação dos corpos, originando uma modificação. Neste sentido, conforme esquema apresentado por Teixeira (In Dewey, 1964), a experiência representa uma interação entre um agente e uma situação, de modo a criar um novo agente e uma nova situação. Pelo exemplo dando, tanto os asteroides que se chocam quanto o educando na sala de aula, ambos os agentes – o asteroide e o aluno – ao término da situação, tornar-se-ão novos agentes, o asteroide em foco terá perdido ou ganhado massa graças ao impacto, enquanto o aluno terá ganhado agregado ou transformado determinado conhecimento.

Há atividade mútua e mútua capacidade de reação. Não sendo primariamente cognitiva, essa mútua readaptação pode ser puramente orgânica, não envolvendo percepção das modificações que se processaram entre o agente e a situação, e o novo agente e a nova situação posterior à experiência (TEIXEIRA in DEWEY, 1964, p. 115).

            Por este entendimento, pode-se dizer que, quer sem a presença do homem quer com, a experiência sempre implicará na relação de dois corpos que, por meio da relação ocorrida entre eles, ambos se transformam em novos corpos. Fora do ambiente cultural, por exemplo, a física, a química e a biologia apresentam infinitos exemplos de reações e fenômenos em que a interação de dois corpos físicos resulta em outros diferentes. Já no ambiente cultural, onde há presença humana, a relação entre os corpos ocorre por meio da interação entre um agente e uma situação que, consequentemente, resulta em um novo agente e uma nova situação. Esta relação entre experiência, situação e agente é a base do processo da educação. Ao admitir que cada nova experiência gera uma situação que transforma o agente em outro, a cada novo conhecimento aprendido, o indivíduo se transforma, adquirindo uma nova consciência. 

            De acordo com Dewey (1964), a experiência educativa é essa experiência inteligente em que participa o pensamento, através do qual é possível a perceber relações e continuidades antes não percebidas. Todas as vezes que a experiência for assim reflexiva, isto é, que se atentar no antes e o depois do seu processo, a aquisição de novos conhecimentos, conhecimentos mais extensos do que antes, será um dos seus resultados naturais. A experiência alarga, deste modo, os conhecimentos, enriquece o espírito humano e dá, dia a dia, significação mais profunda à vida. Por este entendimento, do ponto de vista educativo, a experiência não apenas é essencial para os processos humanos, seu fenômeno é inerente à sua própria existência. Não há, então, como compreender a educação sem vinculá-la com a experiência.

            Anísio Teixeira conceitua educação como “o processo e reorganização da experiência, pelo qual lhe percebemos mais agudamente o sentido, e com isso nos habilitamos a melhor dirigir o curso de nossas experiências futuras” (In DEWEY, 1964, p. 14). Por meio desta afirmação, a educação, assim como a experiência, se apresenta como entidades necessárias e essenciais à existência humana. A cada comportamento, a cada pensamento, o indivíduo está influenciado por uma experiência, numa cadeia de acontecimentos tão complexa que impossibilita a própria percepção. Todavia, este acontecimento é fundamental para que haja a transformação do conhecimento.

            A educação, neste sentido, aponta para um processo contínuo, universal e autônomo de construção do indivíduo e não se confunde, em absoluto, com a educação formal – denominada também por Teixeira (In DEWEY, 1964) de educação direta. É contínuo, pois, assim como as experiências, ocorre num fenômeno de encadeamento progressivo. Também é universal, pois não está relacionado a aspectos culturais específicos, seja qual for o contexto em que esteja inserido, o indivíduo manterá sua relação de experiência com o meio ao seu redor. Por fim, é autônomo porque não depende da vontade individual ou manifestação de consentimento para que ocorra, o processo de educação se manterá. Por este motivo, na tentativa de diferenciá-la da formal, este sentido recebe o nome de educação indireta.

            A educação informal ou direta, de certa forma, se equivale à educação indireta, embora decorra de um método pedagógico, utiliza-se do mesmo processo do ponto de vista psíquico, na medida em que o fenômeno de introjeção do conhecimento e transformação deste decorre da experiência. Contudo, baseado na filosofia deweyana, Teixeira (In DEWEY, 1964) faz uma ressalva ao perigo da supervalorização da educação formal, porque, segundo o autor, ela tem função substitutiva, não devendo se transformar numa obrigação de doutrina insípida e contraproducente. É por este motivo que um dos grandes méritos de Dewey foi o de restaurar o equilíbrio entre a educação tácita e a não formal recebida diretamente da vida, e a educação direta e expressa das escolas, integrando a aprendizagem obtida através de um exercício específico a isto destinado, com a aprendizagem diretamente absorvida nas experiências sociais.

            A crítica de Anísio Teixeira à supervalorização da educação formal aponta, primeiramente, ao contexto histórico em que tanto ele quanto Dewey viveram, qual seja, o início no século XX. Neste momento histórico o modelo pedagógico dominante ainda era o tradicional[11], aluno era visto como um receptáculo de informação, enquanto o professor era o único detentor do conhecimento. Não havia preocupação em como este conhecimento deveria ou estaria chegando ao aluno, de modo que lhe restava memorizar, ao passo que ao professor restava profetizar. Dewey rompe com o modelo tradicional ao focar a educação no educando, e não no educador, além disso, para que o conhecimento ministrado em aula não seja simplesmente decorado de forma acrítica, faz-se necessário que haja uma relação com a realidade do educando, de modo a possibilitar que próprio educando consiga elaborar e construir o conhecimento, a favorecer uma formação muito mais crítica, baseada na análise e reflexão.

            Por outro lado, a crítica trazida por Anísio Teixeira também demonstra que, por mais que as sociedades complexas tenham dado grande estima pela educação formal, é por meio de educação informal que o indivíduo forma a maior parte de seus conhecimentos. Já que, como mencionada anteriormente, a relação entre introjeção de conhecimento e experiência operam continuamente, a todo instante o indivíduo está tendo contado com o universo a seu redor e captando informações. Este fluxo ocorre de forma tão rápida e encadeada que muitas vezes é absorvida de forma inconsciente. O processo de educação, então, representa instrumento vital para o indivíduo e a única ponte entre ele e o restante. Sendo assim, embora as práticas formais da educação sejam importantes para que se tenha uma formação mínima e necessária, de nada adiantaria o contato com este conhecimento se o indivíduo já não tivesse uma bagagem de sabedoria – a qual, ressalta-se novamente, advinda unicamente da experiência. Contudo, ressalta Dewey que:

A crença de que toda educação verdadeira é fruto da experiência não significa que todas as experiências são verdadeiramente ou igualmente educativas. Experiência e educação não são diretamente equivalentes umas a outra. Algumas experiências são deseducativas. Qualquer experiência que tenha o efeito de impedir ou distorcer o amadurecimento para futuras experiências é deseducativo (DEWEY, 2011, p. 26-27).

            Sobre a vinculação entre educação e experiência, grosso modo, se discorreu que todas as experiências são educativas na medida em que propiciam ao indivíduo o contato com determinado objeto. Sendo assim, qualquer que seja o estímulo se gera também uma experiência, que mesmo imperceptível, corresponde a uma aprendizagem e, consequentemente, a uma educação. Não obstante esta concepção genérica de experiência e educação, segundo Dewey (2011), algumas experiências acabam por se tornar deseducativas quando impedem que o indivíduo possa vir a ter novas experiências ou retarde este processo. Neste caso, o autor está se referindo a uma educação num sentido mais específico e próprio de sua teoria, uma educação crítica e oposta ao modelo tradicional. É claro que toda experiência, seja boa ou ruim, gera a absorção de um conhecimento, mesmo que seja de forma traumática, o que por sua vez está relacionado com a educação. Todavia, para o autor, experiências negativas que tornam o indivíduo receoso, prejudicam o processo educativo, pois impossibilita que ele possa entrar em contato com novas experiências.

            Ao pensar na educação no sentido de informação, o cotidiano guarda diversos exemplos de como uma experiência negativa pode inibir o surgimento de outras. A criança, com sua curiosidade própria, se fascina com o fenômeno da combustão, contudo, talvez ignore seu perigo. Ao atear fogo em um amontoado de gravetos a criança está entrando em contato com conhecimentos da química e da física por meio da experiência. Ela poderá observar que os materiais se transformam ao serem carbonizados, que há produção de fumaça e que este processo gera uma elevação da temperatura. Imagina-se, porém, que ao ignorar a temperatura da brasa, a criança toque no graveto em chamas. Evidentemente, ela se queimará e, é possível, que esta experiência lhe traumatize e acabe com sua curiosidade. Então, embora tenha havido introjeção de conhecimento por meio da experiência, pela perspectiva deweyana, ela se tornou deseducativa, na medida em que, doravante, a criança temerá se queimar novamente e apagará em si a curiosidade por novas experiências que envolvam a combustão.

            No ambiente escolar, a educação formal aponta talvez um aspecto mais nefasto das experiências deseducativas, pois, em tese, este deveria ser um ambiente educacional por excelência e não um ambiente repressor. Seria um exemplo de experiência deseducativa a criança que é repreendida pelo professor ao fazer uma pergunta ou ao errar determinada pergunta feita por ele. As crianças são seres em desenvolvimento e, talvez mais que os adultos, são mais curiosas por estarem sendo introduzidas no sistema escolar, onde tudo ainda parece novo. O contato traumático no ambiente escolar, pela figura do professor, por exemplo, poderia ser violento ao ponto de tornar a criança tímida para realizar novas perguntas, o que prejudicaria muitíssimo seu progresso. A repressão do professor, a humilhação dos demais colegas, não deixam de ser experiências – inclusive até mesmo metodológicas, em uma visão tradicional –, todavia, para Dewey, não podem ser consideradas educativas, visto que inibem o educando para novas experiências.

É sua tarefa [do educador] estar alerta para ver quais atitudes e tendências de hábito estão sendo criadas. Nesse sentido, ele deve, como educador, ser capaz de avaliar quais atitudes realmente conduzem ao crescimento contínuo e quais lhe são prejudiciais. Além disso, ele deve possuir aquela compreensão e simpatia pelos indivíduos enquanto indivíduos que o possibilitem ter uma ideia do que está realmente se passando pela mente dos que estão aprendendo (DEWEY, 2011, p. 39).

            O educador é o mediador no processo educacional, é ele quem deve construir uma ponte entre o educando e a experiência. Por este motivo, ele deve estar atento para quais métodos despertariam uma relação com a experiência da forma mais saudável possível e menos traumática, ou seja, no ambiente escolar suas práticas pedagógicas devem sempre despertar no aluno a curiosidade pelo saber – por novas experiências. É sua função também possibilitar a reflexão, por meio de atividades que se afastem do dogmatismo. A experiência educacional deve ser construída pelo educando e orientada pelo educador, desta forma, a educação de Dewey deve se distanciar das formulações derradeiras. Por este motivo, as experiências escolares devem fazer referência ao contexto do educando.

Ninguém questionaria o fato de que uma criança que mora na favela tem uma experiência diferente de uma criança que mora em um lar de uma família de classe média culta; que a criança da zona rural tem um tipo de experiência diferente em relação ao tipo de experiência da criança da zona urbana, ou que um menino do litoral tem experiências diferentes das de um menino do sertão (DEWEY, 2011, p. 40).

            Como já mencionado, o propósito da educação de Dewey aponta para o educando como partícipe de seu processo educativo e não como mero receptáculo de conhecimento. É por meio do exercício ativo na construção do conhecimento que ele poderá refletir o que está aprendendo. Porém, se a experiência é uma atividade individual, como seria possível ao professor favorecer a construção baseada na reflexão? Em realidade, só seria possível refletir sobre um conhecimento se este já tiver sido, de alguma forma, absorvido, caso contrário, haveria apenas memorização que em pouco tempo seria esquecida. Em outras palavras, para que o educando possa construir determinado conhecimento de forma crítica, é necessário que ele já tenha tido alguma experiência sobre aquilo. Por isto, é importante que o educador faça um vínculo entre a matéria que será lecionada e algum aspecto do contexto em que o educando vive. Conhecer o aluno, sua história e sua realidade são imprescindíveis para que haja uma correspondência entre experiência educacional – ou seja, as atividades realizadas em sala e que deverão ser apreendidas – e as experiências pretéritas individuais[12].

            Entretanto, não é apenas o passado que deve ser considerado na educação, o educador também deve estar atento ao futuro, ele deve ser perguntar: experiências serão necessárias aos educandos? O que eles devem apreender hoje para que seja proveitoso no futuro? É com base nisso que Dewey (2011) desenvolve o princípio da continuidade, pois a experiência educacional deve ser vista como um processo contínuo. Segundo o autor, este princípio, quando aplicado à educação, significa que o futuro deve ser considerado em cara estágio do processo educativo. Essa ideia é facilmente mal compreendida e terrivelmente distorcida na educação tradicional. A perspectiva tradicional acredita que adquirindo certas habilidades e aprendendo certas matérias que seriam mais tarde necessárias os alunos estarão sendo naturalmente preparados para as necessidades e circunstâncias futuras. Em suma, a educação é contínua, pois deve estar baseada no passado, para que seja possível que o educando vincule a experiência nova com sua bagagem de experiências, a possibilitar uma construção crítica do conhecimento. Ademais, as experiências educacionais devem estar preocupadas também com o futuro, pois é importante que aquilo vivenciado em sala faça eco com as experiências que estarão por vir, ou o conhecimento ensinado em sala estaria fadado à inutilidade.

            Outrossim, a relação entre educador e educando também constitui objeto fundamental da análise de Dewey. Ao avesso do modelo tradicional, em que o professor se colocava como centro do conhecimento e portador – quase que onisciente – do conhecimento, de acordo com o pensamento deweyano, o novo educador não deve se colocar como tal, a se manter apenas como orientador no processo educativo, ou então, como coautor na construção do conhecimento. Sendo assim, ambos se colocam como agentes ativos e passivos, visto que ao mesmo tempo em que constroem e transmitem conhecimento, por meio da experiência, também absorvem. Por mais novos e – em princípio – inexperientes, os educandos devem ter a mesma legitimidade intelectual que seus educadores, na medida em que todos são indivíduos pensantes e testemunhas de experiências ignoradas pelos outros.

            O plano educacional, de acordo com Dewey (2011), deve ser resultado de um esforço de cooperação, e não uma imposição. A sugestão do educador não é um molde para um resultado forjado, mas um ponto de partida para ser desenvolvido em um plano através de contribuições a partir da experiência de todos os envolvidos no processo de aprendizagem. O desenvolvimento ocorre através de trocas recíprocas em que o educador recebe, mas também não tem medo de dar. O ponto essencial é que o propósito cresce e toma forma através do processo de comunicação e inteligência.

            Dewey em Experiência e Educação se utiliza continuamente das expressões progressiva e nova acompanhando a palavra educação, muitas vezes a fazer um contraste com o que ele chama de educação tradicional ou antiga. Contudo, ao concluir seu texto faz a ressalva de que, em sua opinião a questão fundamental da educação e que se baseia sua filosofia não se refere à nova versus a velha educação, nem a educação progressiva versus a tradicional. A questão do que se resume sua crítica filosófica consiste na questão: qual educação se quer?

A questão básica consiste na natureza da educação sem nenhum adjetivo prefixo. O que queremos e do que precisamos é educação pura e simples e obteremos progresso mais seguro e rápido quando nos dedicarmos a descobrir apenas o que é educação e quais condições devem ser atendidas para que a educação possa ser uma realidade e não um nome ou um rótulo. É por esta razão que enfatizei a necessidade de uma sólida e segura filosofia da experiência (DEWEY, 2011, p. 94).

            No capítulo intitulado Filosofia da Educação, correspondente ao vigésimo quarto do original Democracia e Educação, Dewey (2007) discorre sobre o cunho filosófico que permeia seu pensamento e baliza o próprio pragmatismo. A filosofia da educação aparece como uma forma de abarcar, ou seja, reunir os variados detalhes do mundo e da vida em um todo inclusivo e único, que pode consistir em uma unidade ou, então, reduzir os muitos detalhes a um pequeno número de princípios finais. Ademais, prossegue ele, toda vez que a filosofia foi levada a sério, assumiu-se que ela significava alcançar uma sabedoria capaz de influenciar a condução da vida. De sorte que é por meio da filosofia que se torna possível abrir o debate do que ocorre na experiência e viabilizar uma análise do ponto de vista global.

Cabe à ciência dizer quais generalizações sobre o mundo são sustentáveis e o que, precisamente, elas são. Contudo, quando perguntamos, sobre o tipo de disposição permanente para agir diante do mundo, as descobertas científica exigem que levantemos uma questão filosófica (DEWEY, 2007, p. 77).

           

            A citação de Dewey reflete a posta dicotomia entre conhecimento científico e filosófico, que, de forma simplista, aponta que, enquanto a ciência se envereda pelo empirismo, pautado em uma metodologia ainda bastante cartesiana, a filosofia se distancia do objetivo analisado e propõe um debate menos detalhado e mais universalista, o que, invariavelmente, acaba por distanciá-la da praticidade e viabilidade. Assim, embora o pragmatismo verse em combater a dualidade entre teoria e prática, na medida em que propõe como base do conhecimento a experiência, não há como negar que a reflexão filosófica aponte se distancie da prática ao passo que nomeia como fundamento a reflexão. Todavia, tal argumento não deve ser encarado como desprestígio ao conhecimento filosófico, pelo contrário, em consonância com a própria afirmação de Dewey, ambos gozam de mesma importância. Ao passo que a ciência se atem à investigação específica e à comprovação prática, a filosofia se incumbe de criticá-la. Igualmente, e de forma cíclica, as reflexões filosóficas se ancoram na ciência, visto que novamente precisam ser comprovadas.

            Outrossim, propõe Dewey (2007), que a filosofia, em que pese sua incidência da educação, tem dupla finalidade: em primeiro lugar, fazer a crítica dos objetivos existentes tendo em vista o atual estado da ciência, indicando os valores que se tornaram obsoletos ante o comando de novos recursos, mostrando até que ponto os valores são meramente sentimentais por não existirem os meios para sua realização; e, em segundo lugar, interpretar os resultados da ciência especializada em suas relações com iniciativas sociais futuras. Neste sentido, conforme esclarece Cunha (In DEWEY, 2007), a filosofia visa discutir os valores envolvidos nas ações e nas aspirações que cercam os produtos oferecidos pela ciência. Esses valores são eminentemente sociais, relativos à vida atual da sociedade, e se forma por meio da educação, pois esta deve atuar sobre a constituição moral do homem, levando-o a refletir sobre o que almeja no presente e no futuro.   

            Dewey (2007) também classifica a filosofia como um modo de pensar que é incerto no conteúdo da experiência, visando localizar a natureza da perplexidade e elaborar hipóteses para que sua explicação seja testada na ação. O pensamento filosófico se diferencia pelo fato de as incertezas com que ligam serem encontradas nos diversos objetivos e condições sociais, consistindo em um conflito de interesses organizados e reivindicações institucionais. Destarte, pode-se entender que, enquanto a ciência é o conhecimento da verdade, ou pelo menos que se espera ser, baseada em uma comprovação metódica, a filosofia se apresenta como o conhecimento da dúvida, pois não se pauta na busca por respostas, mas simplesmente na busca. É, então, nesta medida que a presente dissertação se coloca, engajada num viés pragmático e se utilizando do pensamento Dewey ano, pretende corroborar para uma crítica ao ensino jurídico, sem, contudo, ter como objetivo encontrar uma resposta derradeira, mas sim, reavivar o debate e promover a reflexão.

CONCLUSÃO

            O conceito de epistemologia pode ser entendimento como o estudo das coisas puras, ou seja, como único meio ao exercício reflexivo da crítica, sendo assim, é possível asseverar que o método epistemológico é indissociável da filosofia. Ademais, seria ainda possível afirmar que tal método, o o qual, em última instância, tem por objetivo a busca pelo estado primordial e genuíno do conhecimento, aponta para a própria essência da filosofia, na medida em que ela se coloca como caminho das incertezas e dos questionamentos infindáveis. É possível, inclusive, que a epistemologia encontre sua vertente mais pragmática, uma vez que para o filósofo sair do discurso teórico e se voltar para a prática, é necessário se colocar diante dos dilemas da experiência.

            Destarte, como se propôs, com base no pensamento de Dewey, em realidade, pouco se poderia asseverar sobre uma dicotomização entre teoria e prática, visto que para ele, ambos se resumem à experiência. Além desta dualidade, tão presente no discurso acadêmico, o pragmatismo ainda se estende contra outras tantas formas de dicotomias, tais como a separação entre material e imaterial, certo e errado, novo e velho, pois são apenas formas reducionistas de se analisar os objetos e construir uma crítica sobre eles. É neste sentido que o conceito de experiência em Dewey se coloca como base para o entendimento da filosofia pragmática, pois tudo limita a ela.

            Neste sentido que a filosofia epistemológica de John Dewey aponta para uma ressignificação do próprio conceito de educação. Na medida em que ela se afasta da decrépita dicotomia entre tradicional e nova, também transcende o próprio paradigma cronológico. A educação é apenas, sendo assim, para o pensamento pragmático e, mormente para Dewey, não existe uma educação certa ou errada. Na verdade, o que existe é uma relação entre o objeto e o  momento em que está sendo analisado, em outras palavras, a educação se torna reflexo de seu contexto e está intimamente relacionado a ele. Sendo apenas uma forma de experiência, não há como valorá-la como boa ou ruim, nova ou velha, relevante ou irrelevante, pois são todos um só objeto, que podem ser visto de diferentes formas e em diferentes contextos.

            Em epítome, é possível afirmar que cabe à epistemologia, e, consequentemente a filosofia, todavia, refletir sobre tais experiências e analisar sua realidade frente a determinado contexto e processo. Apenas por meio desta análise que seria possível cogitar a implementação de um ou de outro modelo educacional. Em outras palavras, a análise do contexto educacional se refere à importância de se voltar para os fundamentos filosóficos, e, já que se propõe uma abordagem pragmática, sem se olvidar da utilidade prática e de seu propósito com a realidade da experiência educacional. É nesta medida que o debate epistemológico pragmático se mostra não apenas necessário, mas fundamental, pois se torna imprescindíveis para a análise sua constituição enquanto experiência, e não mais sob a égide daquelas decrépitas perspectivas que ora observam a educação enquanto teoria, ora enquanto prática.

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Sobre o autor
Felipe Adaid

Advogado e consultor jurídico em Direito Penal e Direito Penal Empresarial no Said & Said Advogados Associados. Foi Diretor de Gerenciamento Habitacional da Secretaria de Desenvolvimento Social e Habitação e Primeiro Secretário do Conselho de Habitação do Município da Valinhos, SP. Mestre em Educação e Políticas Públicas pela PUC Campinas. Ingressou em primeiro lugar no mestrado e foi contemplado com a bolsa CAPES durante os dois anos de curso. Cursou disciplinas de pós-graduação na Unicamp. É especializando em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia, pela PUC Campinas. Na graduação, tem 5 semestres de créditos no cursos de Psicologia, também pela PUC Campinas. Durante a graduação de Direito também foi bolsista de iniciação científica, CNPq, e foi monitor em diversas disciplinas, tanto no curso de Direito como no curso de Psicologia. Foi membro do grupo de pesquisa Direito à Educação do Programa de Pós-Graduação da PUC Campinas. É corretor de revistas científicas pedagógicas e jurídicas. É autor de 11 livros, sendo 3 ainda em fase de pré-lançamento, e organizador de outros 10 livros, além da autoria de 44 capítulos de livros publicados no Brasil, no Chile e em Portugal. É autor de mais de 100 publicações científicas, entre artigos científicos, resenhas e anais, nacionais e internacionais. Ademais, também escreve periodicamente ensaios e artigos para jornais e blogs. No âmbito acadêmico, suas principais bases teóricas são: Foucault, Lacan, Freud, Dewey e Nietzsche. Por fim, tem interesse sobre os seguintes temas: Direito, Direito Penal, Criminologia, Psicologia, Psicologia Forense, Psicanálise, Sexualidade, Educação e Filosofia.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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