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As cotas raciais no serviço público federal e a teoria da justiça de John Rawls

10/11/2016 às 14:00
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Demonstram-se a legitimidade, a validade e a razão de ser da Lei que estabelece cotas raciais no serviço público federal por meio dos pensamento e ensinamentos de John Rawls.

Para John Rawls, a apresentação do conceito de justiça está intimamente ligada à compreensão do conceito de sociedade. Em Uma Teoria da Justiça, o autor define a sociedade “(...) como uma associação humana mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas” (RAWLS, 2000, p.4). Ademais, de acordo com Rawls, essas regras refletem um sistema de cooperação entre as pessoas, caracterizando a sociedade como “(...) um empreendedorismo cooperativo que visa vantagens múltiplas” (RAWLS, 2000, p.4). Portanto, para Rawls, a sociedade é naturalmente cooperativa. As pessoas compreendem que a cooperação social lhes possibilita alcançar uma qualidade de vida que não atingiriam individualmente.

Todavia, a sociedade, enquanto esse empreendimento cooperativo, não está a salvo de conflitos. As pessoas concordam que é melhor para elas individualmente fazerem parte de um meio cooperativo, mas não necessariamente concordam quanto à distribuição de benefícios produzidos pela cooperação social. Rawls acredita que cada um preferirá obter para si uma parcela maior a uma menor dos bens produzidos pela cooperação social.

Diante desse cenário, eis que surgem os princípios de justiça que, de acordo com Rawls, “(...) fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social” (RAWLS, 2000, p. 5). Portanto, a discussão sobre a justiça em John Rawls exsurge da necessidade de se estipular um parâmetro distributivo dos benefícios adquiridos através da cooperação social com o qual as pessoas concordem.

Dessa forma, os princípios de justiça, cujo papel é o de não permitir que ocorram arbitrariedades na distribuição de benefícios produzidos pela cooperação social, se aplicam sobre as desigualdades decorrentes de circunstâncias sociais e econômicas e têm por desiderato promover uma distribuição justa e equânime de cargos, posições sociais, renda e riqueza.

Contudo, de que maneira são obtidos tais princípios?

Rawls inicia sua construção teórica em um estágio anterior ao contrato social, que denomina de posição original, na qual os homens necessitam elaborar um ordenamento com regras justas e imparciais. Nesse estágio pré-contrato social, um grupo de indivíduos prestes a formar uma sociedade, necessitam eleger os princípios informativos e norteadores de sua base jurídico político. E para que essa escolha não tenha como fundamento os interesses individuais de cada um, Rawls idealiza o que conceitua como véu da ignorância, ou seja, esses indivíduos não sabem a que classe social pertencem, se são nobres ou plebeus, ricos ou pobres, se são civilizados ou não, tampouco sabem a qual religião cada um profetiza, ou qual etnia pertencem. Devem decidir norteados apenas senso de justiça inerente a cada um. Como afirma Rawls, o cenário da posição original consiste na própria justiça como equidade:

Uma vez que todos estão numa situação semelhante e ninguém pode designar princípios para favorecer sua condição particular, os princípios da justiça são o resultado de um consenso ou ajuste eqüitativo. [...] A essa maneira de considerar os princípios da justiça eu chamarei de justiça como eqüidade (RAWLS, 2000, p. 13).

Assim, a escolha dos princípios de justiça:

 (...) é feita de modo que as pessoas não são capazes de propor supostos princípios de justiça que favoreçam mais a umas que a outras. Segundo Rawls, seriam então escolhidos dois princípios de justiça. O primeiro - princípio da igualdade - garante um igual sistema de liberdades e direitos o mais amplo possível para as pessoas ligado a cargos e posições sociais. O segundo - princípio da diferença - assegura que as eventuais desigualdades econômicas na distribuição de renda e riqueza somente são aceitas caso beneficiem especialmente os menos favorecidos (BRAGA, 2003, p. 17).

Os princípios de justiça, segundo Rawls, “(...) são aqueles que determinam como são distribuídos entre as pessoas os benefícios resultantes da cooperação social” (BRAGA, 2003, p. 40). Entre os dois princípios elaborados é o segundo, o princípio da diferença, que cuida mais especificamente da distribuição desses benefícios.

De acordo com as lições de Ana Paula de Barcelos, o princípio da diferença:

(...) diz respeito à distribuição dos bens na sociedade e é composto por três elementos. Preliminarmente, é preciso esclarecer que Rawls entende perfeitamente possível a desigualdade econômico-social entre indivíduos. Nada obstante, em primeiro lugar, a distribuição da desigualdade no âmbito da sociedade deverá maximizar o bem-estar dos menos favorecidos. Vale dizer: aumento da desigualdade só se justifica se redundar em uma maior expectativa de benefício para o sujeito representativo mais pobre. (…) Pelo segundo elemento se exige que as posições e funções na sociedade cuja ocupação por uns e não por outros gera a desigualdade, tem de estar abertas a todos indistintamente (BARCELLOS, 2011, p. 148).

Para Jonh Rawls, o sistema natural de liberdades, no qual “(...) a sociedade é considerada como um mercado competitivo em que as posições estão abertas àquelas pessoas capazes e dispostas a lutar por elas” (BRAGA, 2003,        p. 41), não deve ser legitimado enquanto suporte ao princípio da diferença, eis que “(...) a acumulação e distribuição de riquezas seriam arbitrárias e injustas pois somente levariam em conta tais contingências naturais e sociais” (BRAGA, 2003, p. 41/42). Segundo Rawls:

A distribuição existente de renda e riqueza, por exemplo, é o efeito cumulativo de distribuições anteriores de ativos naturais - ou seja, talentos e habilidades naturais - conforme eles foram desenvolvidos ou não e a sua utilização foi favorecida ou desfavorecida ao longo do tempo por circunstâncias sociais e eventualidades fortuitas como pela eventualidade de acidentes ou da boa sorte. Intuitivamente, a mais óbvia injustiça do sistema de liberdade natural é que ele permite que a distribuição das porções seja influenciada por esses fatores tão arbitrários do ponto de vista ético (RAWLS, 2000, p. 76-77)

Segundo o autor, a concepção de igualdade liberal, que busca garantir acesso às posições sociais semelhantes àquelas pessoas que dispõem de dotes e habilidades semelhantes, também não constitui a mais adequada interpretação para o princípio da diferença, vez que, por meio dele, são satisfeitas as maiores expectativas daquelas pessoas que estão em melhor situação, ou seja, ele privilegia aqueles que possuem dotes e habilidades naturais desejados pelo mercado em detrimento dos menos favorecidos.

Portanto, o autor encontra na concepção de igualdade democrática a interpretação mais acertada para a compreensão e justificação do princípio da diferença. A ideia de igualdade democrática propõe que as desigualdades econômicas e sociais da estrutura básica sejam revistas. Rawls afirma que “(...) a ordem social não deve estabelecer e assegurar as perspectivas mais atraentes dos que estão em melhores condições a não ser que, fazendo isso, traga também vantagens para os menos afortunados” (RAWLS, 2000, p. 80), ou seja, a igualdade democrática deve permitir que, num quadro de desigualdades, o benefício dos mais favorecidos somente ocorra se resultar em benefício dos menos favorecidos.

As liberdades básicas estão garantidas a todos, de acordo com o primeiro princípio de justiça rawlsiano, o princípio de igualdade. Assim, todas as pessoas podem delas desfrutar, mas “(...) as desigualdades geradas pelo melhor uso que cada pessoa pode fazer de suas liberdades de acordo com a sua sorte natural e social são compensadas pelo segundo princípio - princípio da diferença” (BRAGA, 2003, p. 46). Dessa forma, “(...) a elaboração do princípio de diferença cuida para que as desigualdades sociais ocorram se e somente se melhorarem as expectativas dos menos favorecidos” (BRAGA, 2003, p. 46). Com isso, no entanto, Rawls não quer dizer que a sua teoria de justiça privilegia absolutamente os menos favorecidos em prejuízo dos mais favorecidos. Segundo Rawls:

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(...) o princípio (da diferença) não requer o crescimento económico contínuo ao longo de gerações para maximizar indefinidamente de forma ascendente as expectativas dos menos favorecidos [...] O que o princípio requer é que, seja qual for a grandeza das desigualdades e qualquer que seja a vontade das pessoas em trabalhar para obter o maior retributo, as desigualdades existentes devem ser ajustadas de tal forma que contribuam da maneira mais eficiente para o benefício dos menos favorecidos (RAWLS, 2001, p. 36, nota de rodapé).

Pois bem, agora que já analisamos pormenorizadamente a teoria de justiça de John Rawls, passaremos a aplicá-la à problemática da legitimidade da lei federal que estipula cotas no serviço público federal.

A realidade brasileira, como todos bem sabem, é marcada por uma profunda desigualdade social e econômica. Diversas pesquisas já comprovaram que uma pequena parcela da população é dona de maior parte da riqueza nacional, ao passo que o grosso da população detém apenas um pequeno quinhão dessa riqueza. É importante ressaltar também que essa camada da sociedade marginalizada da distribuição dos bens e riquezas é majoritariamente formada por negros, uma vez que historicamente lhes foram vedados qualquer forma crescimento econômico e social, sendo-lhes negado por um certo período de tempo, inclusive, sua própria humanidade, sendo tratados como se bens fossem.

Essa sociedade seria considerada justa de acordo com os parâmetros aventados por John Rawls? Obviamente que não. Nessa sociedade, alguns poucos indivíduos se valem de contingências sociais (distribuição existente de riquezas) e naturais (talentos e habilidades) para obterem arbitrariamente para si uma parcela maior dos benefícios produzidos em cooperação social. Portanto, estamos diante de um agrupamento social submetido ao sistema natural de liberdades, no qual a sociedade é considerada como um mercado competitivo em que as posições estão abertas àquelas pessoas capazes e dispostas a lutar por elas, ou seja, as posições não estão abertas aos menos capazes, aos menos favorecidos, que, na realidade brasileira, inclui a população negra.

Não atingimos sequer o estágio da igualdade liberal, vez que contingências sociais ainda contribuem em muito para o sucesso de um indivíduo em nossa sociedade. Portanto, por mais que um indivíduo seja dotado de habilidades naturais bem quistas pelo mercado, caso ele não reúna também fatores sociais como renda ou riqueza, não obterá um maior quinhão na distribuição dos benefícios produzidos pelo empreendimento cooperativo social.

Resta evidente que tal situação de completa injustiça não pode mais perdurar, sendo imperioso a aplicação dos princípios de justiça sobre as desigualdades de nossa sociedade, sobretudo o princípio da diferença, uma vez que tais princípios se prestam a evitar uma distribuição arbitrária dos benefícios produzidos em cooperação social.

Logo, a reserva de cargos no serviço público federal para negros se apresenta como uma medida justa e legítima, vez que, em razão dela, os mais favorecidos se verão obrigados a aceitar a diminuição de sua participação material (de bens, salários, etc) em favor dos menos favorecidos, ocorrendo, dessa forma, uma distribuição mais justa e equânime dos benefícios produzidos em cooperação social e resultando, assim, numa sociedade mais justa.         


Bibliografia

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. (trad. Almiro Pisetta, Lenita Esteves). São Paulo: Martins Fontes, 2000.

RAWLS, John. O Liberalismo Político. (trad. João Sedas Nunes) Lisboa: Editorial Presença, 2001.

BARCELOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

BRAGA, Leonardo Carvalho. A Justiça Internacional e o Dever de Assistência no "Direito dos Povos" de John Rawls. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais, 2003.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, Luiz Fernando Pereira. As cotas raciais no serviço público federal e a teoria da justiça de John Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4880, 10 nov. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53643. Acesso em: 19 mar. 2024.

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