No desiderato de situar exatamente “o lugar da fala” e “o que é falado”, é de bom alvitre, nesta oportunidade, abrir um parêntese para esclarecer os significados que entendemos corretos e atribuímos a certas expressões técnico-processuais adrede ou doravante utilizadas nos textos, fixando os necessários consensos terminológicos em benefício da melhor transmissão das ideias.
Concordando com visão bastante sedimentada na doutrina brasileira, temos que ação e direito de ação são sinônimos, quer-se dizer, referem-se ao mesmo fenômeno: o direito público subjetivo de acesso ao Poder Judiciário, desdobrado na ampla gama de poderes e faculdades desfrutados pelo autor ao longo e até ao cabo (ou mesmo depois) do processo. Portanto, exercer a ação ou exercer o direito de ação são fórmulas linguísticas equivalentes. Não se desconhece, todavia, que há quem diferencie um direito de demandar, à jurisdição ou à administração da justiça, de cunho constitucional, da ação propriamente dita ou em sentido processual, que seria o exercício daquele. Neste caso, toma-se o vocábulo ação em sua literalidade, ou seja, como um agir concreto, uma atividade.
Outrossim, concebida a ação como direito subjetivo público, autônomo, abstrato e instrumental, voltado contra o Estado e não contra o réu, parece-nos ser tecnicamente equivocada a expressão elementos da ação para designar o conjunto formado por partes, causa de pedir e pedido. Abstratamente considerada, a ação tem por elementos subjetivos (sujeitos) não as partes, mas o autor, de um lado, e o Estado, de outro, e por elemento objetivo (objeto) o provimento jurisdicional, e não um bem da vida (NEVES, 1997, p. 117). Partes, causa de pedir e pedido não dizem respeito diretamente ao direito de ação, mas à demanda, que é o ato jurídico introdutório do seu exercício (BUENO, 2010, p. 410, 439; COMOGLIO; FERRI; TARUFFO, 2011, p. 276; DINAMARCO, 2002b, p. 168-171). A título comparativo, as diferenças entre direito de ação (ou apenas ação) e demanda são paralelas às diferenças entre direito de sufrágio (ou apenas sufrágio) e voto: os primeiros termos concernem a direitos, ao passo que os últimos se referem aos instrumentos mediante os quais aqueles são concretamente exercidos.
Sob o prisma da Teoria Geral do Direito, tem a demanda a natureza jurídica específica de declaração unilateral de vontade receptícia, porquanto consiste em uma exigência do demandante dirigida ao Estado-juiz e ao demandado que, ao chegar ao conhecimento do primeiro, obriga-o a um pronunciamento, ao menos quanto à admissibilidade da ação, e, ao chegar ao conhecimento do último, por meio da citação ou de outro expediente reconhecido como idôneo pela lei processual, chama-o coativamente a integrar o processo e o convida a se defender. É a demanda que, por ser concreta, pode se ver individualizada e identificada, e não a ação, a qual, insistimos, é direito abstrato e conferido a todos (uti civis), sejam entes personalizados ou não. O próprio Chiovenda (1998, p. 427), ao tratar da chamada identificação das ações, admite que o problema “encara as ações em seu exercício; e, pois que a ação se exerce com a demanda, identificação das ações significa identificação das demandas.”
A expressão elementos da ação, por conseguinte, merece ser evitada, seja por trazer ranço concretista incompatível com a encampação da teoria da ação como direito abstrato, seja porque somente se refere ao fenômeno que pretende explicar por metonímia. Preferimos substitui-la por requisitos estruturais da demanda, uma vez que, a teor do ensinamento de Celso Antonio Bandeira de Mello (2001, p. 349), elementos de um ato são as suas realidades intrínsecas, isto é, seus componentes, a saber: a forma e o conteúdo.
A demanda, via de regra, deve adotar a forma escrita, podendo em algumas hipóteses, especificadas na legislação (por exemplo, no art. 840 da Consolidação das Leis do Trabalho e nos artigos 14 e 77 da Lei n. 9.099/1995), ser formulada oralmente e reduzida a termo. É no conteúdo da demanda, por sua vez, que se articulam narrativamente as partes, a causa de pedir e o pedido. Estes três dados se somam e se relacionam interna e necessariamente, formando uma estrutura, que faz a demanda emergir como tal, ou seja, ganhar seu sentido processual exclusivo. A falta de um deles a torna defeituosa, inepta, desprovida de capacidade para gerar seus efeitos ordinários, mas não afeta o direito de ação.
Finalmente, cabe salientar que, ainda em decorrência de seu caráter abstrato, ação é palavra em princípio avessa a classes ou adjetivações, variações ou gêneros (BUENO, 2010, p. 386-387; CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2010, p. 287; LEONEL, 2002, p. 119-121). A ação é hoje tida por cobertura integral do mundo jurídico-substancial e serve a todas as situações, independentemente da qualificação que naquela ordem receba o direito afirmado ou negado, mantendo-se sempre idêntica a si mesma, qualquer que seja a natureza do fundamento jurídico-material com que é exercida, alterando-se apenas o tipo de provimento pedido ao órgão judicial (DINAMARCO, 2002b, p. 340-341; LIEBMAN, 1980, p. 132). Assim, parece que as tradicionais classificações das ações usualmente elencadas pelos doutrinadores são dogmática e metodologicamente admissíveis desde que tomadas a partir do nexo de instrumentalidade da ação (DINAMARCO, 2002a, p. 389-390). Por exemplo, classificações que distinguem entre ações civil, penal e trabalhista ou ações reais e pessoais enfatizam a natureza da pretensão veiculada na demanda e do direito material invocado em seu suporte, ao passo que classificações que diferenciam entre ações de conhecimento (e suas espécies), executivas e cautelares adotam como discrímen a modalidade de tutela jurisdicional pleiteada. Em todas elas, ademais, operam-se reduções conceituais com o intento de facilitar a referência ao objeto tratado e otimizar o fluxo comunicativo.
Encerrado o parêntese e retomando a linha expositiva, é corrente apontar a sede constitucional do direito de ação no art. 5º., inciso XXXV, da Carta Magna, o qual preconiza que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se, pois, de direito dotado de fundamentalidade formal e material (ALEXY, 2008, p. 520-523; SARLET, 2009, p. 74-78) e que ostenta, além de um significado jurídico, um importantíssimo significado político.
Sob o ponto de vista jurídico, a ação é consectário da proibição da autotutela e da assunção da administração da justiça pelo Estado, bem como da opção jurídico-política deste pela inércia da função jurisdicional (ne procedat judex ex officio), mostrando-se o meio técnico apto a provocar e conduzir o seu exercício (DINAMARCO, 2002a, p. 380; GRINOVER, 1973, p. 24; LIEBMAN, 1980, p. 135). Impedida a justiça de mão própria e excluída a atuação espontânea dos órgãos incumbidos de prestar a jurisdição, mas existente o dever destes de o fazer, o ente público há que oferecer aos jurisdicionados, em contrapartida, um mecanismo para ativá-la e para influir no seu resultado (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2010, p. 271; MARINONI, 2008, p. 206; MONIZ DE ARAGÃO, 1978, p. 70-71). Reconhece-se a eles, por conseguinte, o direito de ação, composto de poderes e faculdades de iniciativa e de participação processual.
Erigida ao patamar constitucional, e ganhando assim status de direito fundamental, a ação se insere na categoria dogmática dos direitos a prestações ou a ações estatais positivas, mais especificamente no grupo dos direitos a organização e procedimentos (ALEXY, 2008, p. 488-490; CAMBI, 2009, p. 218-219; SARLET, 2009, p. 180, 196), como direito a procedimento em sentido estrito, embora também possa ser visualizada no âmbito dos direitos a proteção (ALEXY, 2008, p. 490). No quadro empírico-positivo dos direitos fundamentais, a ação cobre a multifuncionalidade deles, isto é, pode ser utilizada conforme as suas necessidades funcionais. Coloca-se sobre todas essas funções e, na verdade, sobre todos os direitos fundamentais materiais, pois eles dependem, em termos de efetividade, do direito de ação. É a ação um direito fundamental processual, e não material, porém pode ser dita o mais fundamental dos direitos, porquanto imprescindível à efetiva concreção de todos eles (MARINONI, 2008, p. 205).
Por outro ângulo, é direito cívico (COUTURE, 2008, p. 35; LIEBMAN, 1980, p. 132; MARINONI, 1996, p. 109; NERY JR., 2002, p. 103), de primeira geração ou dimensão, cujo liame com o conteúdo essencial do Estado de Direito é evidente (DINAMARCO, 2002b, p. 331-332; MONIZ DE ARAGÃO, 1978, p. 69). Não obstante, viu-se enriquecido com novas tonalidades face ao advento do Estado Democrático de Direito. Sobressai, a partir de tais observações, o seu significado político.
Com a Revolução Francesa de 1789, uma radical mudança nos contextos social, político e econômico veio a lume. Os ideais burgueses de igualdade, liberdade e fraternidade transformaram a visão de mundo então arraigada, o que refletiu no campo jurídico mormente pela consagração do princípio da tripartição das funções estatais, fortalecendo ainda mais a garantia do due process of law. Foi com a divisão do exercício do poder entre órgãos distintos que o Estado passou a ser obrigado a obedecer as leis por ele mesmo ditadas. Instituído o sistema de freios e contrapesos, nasce um Estado em que ninguém mais detém, na organização política, poder incontrastável. Tal realidade é o Estado de Direito, cuja principal conquista se consubstancia no reconhecimento de direitos do particular em relação ao próprio Estado (direitos públicos subjetivos). O súdito se torna cidadão e o processo deixa de ser mero instrumento de controle social para se converter, também, em garantia do indivíduo frente ao Estado, em direito público subjetivo à proteção estatal do direito subjetivo material (GIDI, 1990, p. 199-200). O direito de ação, assim, identifica-se com a ideia do processo como garantia ativa, pois, diante de alguma ilicitude, mesmo oriunda dos Poderes Públicos, pode o prejudicado dele se utilizar para buscar preveni-la ou remediá-la (GRECO FILHO, 1998, p. 46). Portanto, em primeiro lugar, o jus actionis, politicamente, é visto como instrumento de controle do poder.
Ademais, é por intermédio da ação e da constante extensão de sua admissibilidade que se obtêm os bons resultados da abertura do acesso ao processo e à ordem jurídica justa, indispensáveis a um regime que aspire ser substancialmente democrático (DINAMARCO, 2002b, p. 332). Todo o movimento legislativo destinado a propiciar a intervenção em questões de grande espectro reflete a insuficiência dos meios tradicionais de exercício democrático e a necessidade de participação através do processo (LEONEL, 2002, p. 32). Com efeito, a ampliação do conceito de cidadania para além de singela titularidade de direitos políticos stricto sensu enseja uma nova e imediata relação entre a legitimidade para agir e a democracia participativa. O alargamento da legitimação pode ser compreendido como corolário do Estado Democrático de Direito, que deve abrir “caminhos” para a participação popular na gestão do bem comum (MARINONI, 1996, p. 110). O regime de democracia participativa permite (e até incentiva) que a própria comunidade controle o Estado, seja pelos indivíduos mesmos, seja por segmentos organizados, agindo neste último caso em legitimação concorrente-disjuntiva com órgãos e entidades do setor público (MANCUSO, 2011, p. 88). Nessa perspectiva, as ações coletivas compõem instrumental capaz de trazer poderosa influência modernizadora ao sistema processual, uma vez que, superando a concepção da ação processual como expressão de um conflito individual, inauguram campo extraordinariamente prolífico para o exercício político da solidariedade, autorizando uma visão comunitária do Direito (SILVA, 2006, p. 319). Como bem destaca Ada Pellegrini Grinover (2000, p. 10), o reconhecimento e a necessidade de tutela jurisdicional dos interesses supraindividuais “puseram de relevo sua configuração política. Deles emergiram novas formas de gestão da coisa pública, em que se afirmaram os grupos intermediários. Uma gestão participativa, como instrumento de racionalização do poder, que inaugura um novo tipo de descentralização, não mais limitada ao plano estatal (como descentralização político-administrativa), mas estendida ao plano social, com tarefas atribuídas aos corpos intermediários e às formações sociais, dotados de autonomia e de funções específicas. Trata-se de uma nova forma de limitação ao poder do Estado, em que o conceito unitário de soberania, entendida como soberania absoluta do povo, delegada ao Estado, é limitado pela soberania social atribuída aos grupos naturais e históricos que compõem a nação.”
Destarte, o direito de ação também se firma politicamente como instrumento de participação direta no exercício do poder.
REFERÊNCIAS
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