RESUMO
Pretende-se com o presente fazer breve abordagem a respeito dos direitos reais de garantia definindo suas principais características e especificidades. Ainda que se trate de assunto bem estabelecido, esmiuçar o que prelecionam doutrinadores contemporâneos a respeito do tema permite compreensão mais ampla sobre o instituto. Neste sentido uma revisão de obras recentes, devidamente correlacionada com jurisprudência atual, pode ser considerada interessante fonte de dados para acadêmicos, civilistas ou simples estudiosos do direito contemporâneo.
Palavras-chave: Direito civil; direitos reais de garantia; doutrina.
ABSTRACT
It is intended with the present to make a brief approach regarding the real rights of guarantee defining its main characteristics and specificities. Even if it is a well-established subject, to scrutinize what contemporary doctrinaires teach about the subject allows for a broader understanding of the institute. In this sense, a review of recent works, properly correlated with current jurisprudence, can be considered an interesting source of data for academics, civilians or simple scholars of contemporary law.
Keywords: Civil law; real guarantee rights; doctrine.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Pesquisas bibliográficas no campo jurídico costumam ser tratadas com certa desconfiança por parte dos estudiosos. Não raro questiona-se a cientificidade de focar esforços em obras doutrinárias e na análise de normas postas pelo diploma legal objeto de estudo. Controverte-se, sobretudo, quando há notória ausência no sentido de relacionar o tema escolhido com questões de ordem prática, focando mais na teoria do que na realidade imposta pelo caso concreto.
Longe da pretensão de aprofundar-se em tal escaramuça (mas, certamente sem perdê-la de vista), discorre-se neste ensaio acadêmico sobre os direitos reais de garantia, matéria sabidamente imprescindível para a necessária formação do civilista.
Assim, inicia-se com análise sumária do instituto em tela. Para fazê-lo válido invocar o que preceitua o eminente jurista Sílvio de Salvo Venosa. Aduz o autor (2013, p.531) que “a compreensão histórica dos direitos reais de garantia passou por longa evolução”. Neste sentido assevera:
A princípio, a garantia não se desvinculava da própria pessoa do devedor, até que depois passasse seu patrimônio a responder pelas dívidas. Longa construção prática e doutrinária foi necessária para que a garantia se ligasse a um bem, com eficácia de direito real, erga omnes, não vinculando estrita e unicamente o devedor, mas a coisa (VENOSA, 2013, p.531).
Destarte, do que se depreende do fragmento é possível afirmar que se tem nos direitos reais de garantia direito que se exerce sobre a coisa, o quê, resta claro, trata-se de algo mais do que simples contrato.
O próprio Venosa (2013, p.24) ensina que nos direitos reais de garantia, “o respectivo titular extrai modalidade de segurança para o cumprimento de obrigação. A garantia está relacionada com uma obrigação, que fica colocada como direito principal”. Esta (garantia) é, por conseguinte, acessória, existindo tão somente se houver dívida, com a finalidade de garantir o credor.
Com fulcro no que preleciona Sobral Pinto (2014, p.905) é possível adentrar um pouco mais em semelhante linha de raciocínio. Para o autor “os direitos reais de garantia são direitos subjetivos constituídos pelo devedor ou por um terceiro em favor do credor, mediante a afetação de um bem, cujo valor representativo, no momento da execução, garantirá o cumprimento da obrigação”.
Sobre tal perspectiva também se manifestam Farias e Rosenvald. Ambos instruem serem quatro os direitos reais previstos pelo diploma vigente. Nesse sentido asseveram:
Quatro são os direitos reais de garantia elencados no Código Civil: hipoteca, penhor, anticrese e propriedade fiduciária. Excluindo-se a propriedade fiduciária - regida com especificidade pelos arts. 1.361 a 1.368 do Código Civil aos outros três direitos reais aplicam-se os preceitos comuns inseridos na teoria geral dos direitos de garantia (arts. 1.419 a 1.430 do CC) (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 859)
Importa, no entanto, fazer breve advertência ao fato de que os direitos reais de garantia se distinguem das garantias pessoais ou fidejussórias, como apropriadamente adverte Tartuce. Alude o nobre civilista mineiro:
Não se pode esquecer que os direitos reais de garantia não se confundem com as garantias pessoais ou fidejussórias, eis que no primeiro caso um bem garante a dívida por vínculo real (art. 1.419 do CC); enquanto que no último a dívida é garantida por uma pessoa (exemplo: fiança). Como garantias que são, os institutos têm nítida natureza acessória, aplicando-se o princípio da gravitação jurídica (o acessório segue o principal). (TARTUCE, 2015, p. 864)
Na precisa lição de Tartuce (2015, p. 864) “são direitos reais de garantia sobre coisa alheia o penhor, a hipoteca e a anticrese, que têm regras gerais entre os arts. 1.419 e 1.430 do CC”.
Feitas, portanto, tais considerações em sede de comentários inaugurais, passaremos a enfrentar as citadas figuras jurídicas.
REQUISITOS LEGAIS
Emana do art. 1.420, do vigente Código Civil, regra basilar para o perfeito entendimento das hipóteses em que se aplicam os direitos reais de garantia. Preceitua o citado dispositivo que:
Art. 1.420. Só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca.
§ 1º A propriedade superveniente torna eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono.
§ 2º A coisa comum a dois ou mais proprietários não pode ser dada em garantia real, na sua totalidade, sem o consentimento de todos; mas cada um pode individualmente dar em garantia real a parte que tiver.
Pode-se afirmar, consequentemente, que o artigo citado estabelece dois requisitos distintos e relevantes para que haja, de fato, direito real de garantia. Objetivamente, por exemplo, tem-se claro do texto que o bem penhorado, hipotecado ou oferecido em anticrese será, necessariamente, alienável (por alienável entenda-se o bem que se pode transferir para outrem o domínio ou a propriedade deste).
Já o segundo requisito (este de ordem subjetiva) refere-se ao fato de que “somente quem é proprietário poderá oferecer o bem em garantia real” (TARTUCE, 2015, p. 866). Nesse sentido adverte o jurista:
Não se pode esquecer que se o proprietário for casado, haverá necessidade de outorga conjugal (uxória ou marital) – em regra e salvo no regime da separação absoluta de bens –, para que o seu imóvel seja hipotecado ou oferecido em anticrese (art. 1.647, I, do CC). Isso, sob pena de anulabilidade do ato de constrição (art. 1.649). Além disso, exige-se a capacidade genérica para os atos de alienação. (TARTUCE, 2015, p. 866)
É, admita-se, acepção didática “de per si”. Ajuda, obviamente, a estabelecer noção fundamental sobre o assunto.
DA CONCEITUAÇÃO
Não se pode negar que o legislador, ao formalizar a previsão normativa dos direitos reais de garantia, cuidou para simplificá-la. Pautando-se no que preceitua a melhor doutrina é possível conceituar os institutos do penhor, hipoteca e anticrese de forma bastante sucinta.
Tome-se, por exemplo, definição de Nader. Apesar de eventuais distinções e conceitos próprios do autor, de modo geral, tem-se em sua obra pontos que merecem maior destaque pela acepção precisa à presente temática. Concernente aduz:
A hipoteca é gravame incidente sobre imóvel, que passa a garantir o crédito, permanecendo na posse do devedor. Igual função exerce o penhor, que recai sobre a coisa móvel e fica em poder do credor. A anticrese é instituto em desuso, que consiste na percepção, pelo credor, de frutos e rendimentos de imóvel que lhe é entregue pelo devedor para explorar e a fim de satisfazer diretamente o seu crédito. (NADER, 2016, p. 375)
Consoante ao afirmado cabe breve delimitação sobre cada um dos institutos citados.
Penhor
Trata-se do primeiro direito real de garantia sobre coisa alheia. Em regra estabelece-se na prática que serão dados como garantias bens móveis. Como presumível, não quitada a dívida, objeto do negócio jurídico, ocorre à transferência efetiva do bem do credor. Sobre o tema prelecionam Donizetti e Quintella:
O penhor consiste em modalidade de garantia real que recai sobre bem móvel, o qual é entregue pelo devedor ao credor, chamado de pignoratício. Apesar de o direito real ser constituído pela tradição (art. 1.431), a lei exige, ademais, que o instrumento do penhor seja levado a registro, por qualquer dos contratantes, devendo o penhor comum ser registrado no cartório de Títulos e Documentos (art. 1.432). Nos casos dos penhores especiais – penhor rural, industrial, mercantil e de veículos –, as coisas objeto da garantia continuam na posse do devedor, o qual deve guardá-las e conservá-las, como depositário (art. 1.431, parágrafo único). Deve-se tomar muito cuidado com a terminologia, para jamais confundir o penhor, direito real de garantia, com a penhora, instituto do processo civil, nem o verbo correspondente ao penhor, empenhar, com o relativo à penhora, penhorar. (DONIZETTI; QUINTELLA, 2016, p. 917).
Por fim, necessário destacar alguns pontos importantes. Primeiro, para todos os efeitos, até que a obrigação garantida pelo penhor seja integralmente cumprida, tem o credor o direito de reter a coisa empenhada ou parte dela. Segundo, o penhor se extingue por qualquer das causas elencadas no rol taxativo do art. 1.436, do código civil vigente. Por último, mas não menos importante, como emanado do texto supracitado pode haver penhor rural, penhor industrial e mercantil, penhor de veículos e, até mesmo, penhor de direitos e títulos de crédito.
Jurisprudência temática: contrato de penhor
A título de ilustração sobre possível aplicação concreta do instituto em tela, observe abaixo como se manifestou a quarta turma do Superior Tribunal de Justiça a respeito do contrato de penhor no julgamento de recurso especial datado de outubro de 2013.
CIVIL E CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE PENHOR. JOIAS. FURTO. FORTUITO INTERNO. RECONHECIMENTO DE ABUSO DE CLÁUSULA CONTRATUAL QUE LIMITA O VALOR DA INDENIZAÇÃO EM FACE DE EXTRAVIO DOS BENS EMPENHADOS. VIOLAÇÃO AO ART. 51, I, DO CDC. OCORRÊNCIA DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. No contrato de penhor é notória a hipossuficiência do consumidor, pois este, necessitando de empréstimo, apenas adere a um contrato cujas cláusulas são inegociáveis, submetendo-se à avaliação unilateral realizada pela instituição financeira. Nesse contexto, deve-se reconhecer a violação ao art. 51, I, do CDC, pois mostra-se abusiva a cláusula contratual que limita, em uma vez e meia o valor da avaliação, a indenização devida no caso de extravio, furto ou roubo das joias que deveriam estar sob a segura guarda da recorrida. 2. O consumidor que opta pelo penhor assim o faz pretendendo receber o bem de volta, e, para tanto, confia que o mutuante o guardará pelo prazo ajustado. Se a joia empenhada fosse para o proprietário um bem qualquer, sem valor sentimental, provavelmente o consumidor optaria pela venda da joia, pois, certamente, obteria um valor maior. 3. Anulada a cláusula que limita o valor da indenização, o quantum a título de danos materiais e morais deve ser estabelecido conforme as peculiaridades do caso, sempre com observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 4. Recurso especial provido.
(STJ - REsp: 1155395 PR 2009/0170609-0, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 01/10/2013, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/10/2013)
Hipoteca
Não sem motivo a hipoteca é considera “o direito real de garantia sobre coisa alheia com maior repercussão prática” (TARTUCE, 2015, p. 873). Trata-se de modalidade de garantia real que recai, por regra, sobre bens imóveis, mas que também pode incidir sobre bens móveis. Neste caso consideram-se hipotecáveis aqueles enumerados pela vigente legislação.
Tartuce (2015, p. 873) lembra que, “por razões óbvias, a hipoteca deve ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis”. O autor adverte, citando Lacerda de Almeida, que hipoteca não registrada é hipoteca inexistente.
Sobre tal instituto cumpre observar ainda com atenção o que ensinam Donizetti e Quintella.
Segundo o art. 1.473 do Código, pode a hipoteca recair sobre: bens imóveis, e acessórios dos imóveis, em conjunto com eles; o domínio direto; o domínio útil; as estradas de ferro; os recursos naturais a que se refere o art. 1.230; os navios; as aeronaves; o direito de uso especial para fins de moradia; o direito real de uso; a propriedade superficiária. O § 1º do dispositivo salienta que a hipoteca de navios e de aeronaves se regula por lei especial. No caso de hipoteca do direito real de uso ou da propriedade superficiária, o direito de garantia se limita à duração da concessão do uso ou do direito de superfície, se estes houverem sido transferidos por tempo determinado (art. 1.473, § 2º). O direito real de hipoteca abrange todas as acessões, melhoramentos ou construções do imóvel, e não interfere nos demais ônus reais sobre o mesmo imóvel, constituídos e registrados antes dela própria (art. 1.474). No contrato em que se ajusta a hipoteca, não se admite cláusula que proíba ao proprietário alienar o imóvel hipotecado, mas pode-se estabelecer o vencimento antecipado da dívida, nessa hipótese (art. 1.475, caput e parágrafo único). (DONIZETTI; QUINTELLA, 2016, p. 923-924)
Há que se ter em mente ainda que a legislação admite, com base no art.1.476, CC, a possibilidade de mais de uma hipoteca sobre o mesmo imóvel, não importando se em favor do mesmo credor ou de terceiro.
Anticrese
Parte considerável da doutrina contemporânea entende tratar-se a anticrese de direito real de garantia em notório desuso, mantida no código vigente por eventual preciosismo do codificador, de modo semelhante ao que o foram outros institutos, como o uso e a habitação.
Divergências à parte; consiste a anticrese em modalidade de garantia que recai sobre a posse do imóvel. Esta é transmitida ao credor para que perceba os frutos e eventuais rendimentos da coisa como compensação da dívida. Neste sentido determina o caput do art. 1.506, do Código Civil, que “pode o devedor ou outrem por ele, com a entrega do imóvel ao credor, ceder-lhe o direito de perceber, em compensação da dívida, os frutos e rendimentos”.
Tartuce tece apropriada crítica ao explicar o instituto em pauta.
De fato, o instituto continua não tendo concreção na vigência da atual codificação, relevando-se uma categoria inútil e sem qualquer incidência prática. [...] Como se percebe, a anticrese está no meio do caminho entre o penhor e hipoteca, tendo características de ambos. Com a hipoteca tem em comum o fato de recair sobre imóveis, como é corriqueiro. Do penhor, há a similaridade em relação à transmissão da posse. De diferente, a retirada dos frutos do bem. (TARTUCE, 2015, p. 883).
Feitas tais explanações resta posto que, o que diferencia o penhor e a hipoteca da anticrese, é que, no caso dos dois primeiros, a garantia do credor emana da própria coisa alienável judicialmente caso o devedor não honre a obrigação contraída. Na anticrese, por sua vez, a garantia estará representada tão somente pela produtividade da coisa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em sede de comentários finais pode-se afirmar que, não obstante existam eventuais divergências doutrinárias a respeito de um ou outro ponto sobre os institutos estudados, tratam-se em boa parte de temas já pacificados e bem estabelecidos, de sorte que aquele que pretende aprofundar-se não encontrará maior dificuldade.
Sob a luz de tal perspectiva pode-se afirmar que o objetivo do presente artigo foi convidar o leitor à reflexão sobre os direitos reais de garantia. A partir destes fragmentos acredita-se que será possível ao interessado delimitar melhor o tema de estudo.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em 08 nov. 2016.
__________. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.155.395-PR (2009/0170609-0), Relator: Ministro Raul Araújo, Data de Julgamento: 01/10/2013, T4 - Quarta Turma. Data de Publicação: DJe 29/10/2013.
DONIZETTI, Elpídio; QUINTELLA, Felipe. Curso didático de direito civil. 5 ed. rev., e atual. São Paulo: Atlas, 2016.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Direitos Reais. V. 5. 8 ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2012.
NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: volume 4. 7 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
PINTO, Cristiano Vieira Sobral. Direito Civil Sistematizado. 5 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2014.
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 5 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2015.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2013.