Alienação de bens públicos imóveis municipais sem licitação

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4 – Da Alienação de Bens Públicos Imóveis Municipais sem Licitação

Resta cristalino, depois de todo o estudo, que há possibilidade de todas as esferas de governo, sejam elas, União, Estados, Municípios ou Distrito Federal, legislarem sobre a alienação de seus bens. Da mesma forma, restou evidenciado que o disposto no artigo 17 da Lei de Licitação e Contratos Administrativos, relativamente à alienação de bens públicos, se aplica restritivamente à União Federal, eis que decorre de competência restritiva de cada Ente Federado. Sendo assim, reafirma-se que no tocante a alienação de bens públicos, cada Ente Federal poderá regulamentar a matéria atendendo às peculiaridades regionais e locais devendo, no entanto, adotar a Lei nº 8.666/93 como norma geral.

Pôde-se aprender ainda, que a partir do momento em que a Administração Pública se depara com situações exemplificadas em Lei, esta, detém a escolha de proceder com a licitação ou, em outros casos, realizar somente a contratação direta; esses são os casos de dispensa e inexigibilidade de licitação, todos delineados pela Lei nº 8.666/1993.

Diante deste contexto, afirma-se a importância do Poder Público Municipal em elaborar mecanismos que conduzam à regulamentação desses imóveis públicos ocupados por terceiros, com o intuito de promover a regularização urbano-municipal e, dessa forma, trazendo não só aos moradores ocupantes desses imóveis maior segurança, mas também, conferindo ao Ente Municipal a preservação de seus interesses.

É que, como já abordado anteriormente, a falta de regularização fundiária causa sérios prejuízos às cidades, tanto para o ente público como para os particulares que vivenciam esse problema. Muitas famílias vivem em situação irregular por décadas, algumas delas de baixa renda e outras tantas possuem situação econômico-financeira estável, mas se encontram na mesma condição de não proprietários.  

Isto posto, o presente capítulo integra a parte final do trabalho, buscando analisar a possibilidade de inexigir a licitação para a alienação direita de imóveis públicos municipais aos ocupantes particulares.

4.1 – Do Direito Social à Moradia

A consagração do direito à moradia como direito social ocorreu por meio da Emenda Constitucional nº 26 do ano 2000, que alterou o artigo 6º da Constituição Federal de 1988. Elucida o referido texto Constitucional:

Art. 1o - O art. 6o da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Destarte, assegurado no artigo 6º da Lei Maior, o direito à moradia passou a compor direto básico e fundamental do cidadão, e vai além, sendo requisito de efetivação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Residir irregularmente constitui situação de insegurança permanente; por esse motivo, além de um direito social, certifica-se que a moradia regular é condição para a efetivação de outros direitos essenciais; como o trabalho, o lazer, a educação e a saúde.

Diante da problemática exposta, surge com o objetivo de assegurar a moradia, o processo de regularização fundiária, que visa permitir às pessoas habitantes de assentamentos irregulares o registro de suas devidas áreas.

4.2 – Da Regularização Fundiária

O conceito de regularização fundiária está previsto na Lei 11.977/09, em seu artigo 46, que estabelece:

Art. 46 - A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Ainda nesse sentindo, Balbim sedimenta a regularização fundiária como:

O processo que visa garantir a segurança jurídica do uso do solo a quem de fato o ocupa, adequando-o urbanisticamente. O reconhecimento do uso como princípio gerador do processo de regularização em meio urbano está, na maior dos casos, associado à moradia.

Além da Constituição Federal e da Lei 11.997/09, deve-se destacar a Lei 10.257/01 denominada como Estatuto das Cidades, que traz em seu artigo 2º a regularização fundiária como uma das diretrizes gerais de política urbana.

Diz o artigo em comento:

Art. 2º - A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais.

Necessário se faz compreender que cabe a todos os entes federados atuar nos programas de regularização fundiária, tal cooperação é indispensável, tendo em vista a quantidade de moradias irregulares no Brasil, o que dificulta o desenvolvimento das cidades e do próprio País. Segundo a Constituição Federal, em seu artigo 23 inciso IX, é competência comum executar a política de desenvolvimento e de expansão urbana, e dessa forma minimizar os efeitos das ocupações irregulares.

Reza o artigo:

Art. 23 - É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

 IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.        

Os motivos que sustentam a juridicidade desse texto normativo ligam-se ao interesse social, fundamento básico do interesse público; pois ao Poder Público cabe fomentar o acesso ao direito à moradia pelos cidadãos, utilizando-se para isso de políticas públicas que proporcionem a regularização fundiária dos imóveis irregularmente ocupados.

Sob outro prisma, a própria Constituição Federal foi clara em afirmar o papel relevante do município na proteção e no desenvolvimento urbano, pois ao reservar capítulo próprio para a política urbana destacou o papel determinante do Poder Público Municipal.

Assim consagra o artigo 182 do texto constitucional, ora mencionado:

Art. 182 - A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.  

As políticas públicas de regularização fundiária, no âmbito municipal, estão voltadas principalmente às normas urbanísticas e de parcelamento de uso do solo. São de extrema importância tais normas, pelo fato de serem pressupostos para o registro imobiliário, constituindo a propriedade do imóvel. Nesse sentido, estabelece o artigo 30 da Carta Magna:

Art. 30 - Compete aos Municípios:

VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.             

À vista do exposto acima, o Município, então, situa-se como o principal responsável pela questão da regularização fundiária urbana, justamente pelo fato de ser o ente mais próximo dos problemas urbanos, assim sendo, deve agir visando o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade.

Nesse diapasão Alfonsin (2007, p. 78) preleciona que:

Regularização fundiária é um processo conduzido em parceria pelo Poder público e população beneficiária, envolvendo as dimensões jurídica, urbanística e social de uma intervenção que, prioritariamente, objetiva legalizar a permanência de moradores de áreas urbanas ocupadas irregularmente para fins de moradia e, acessoriamente, promove melhorias no ambiente urbano e na qualidade de vida do assentamento, bem como incentiva o pleno exercício da cidadania pela comunidade sujeito do projeto.

Destarte, esclarece-se que cabe ao Município identificar áreas nas quais, por razões sociais, haja interesse público em ordenar, e por fim, conclui-se que não se trata de uma faculdade do Ente Municipal, mas sim, de uma obrigação, já que a ele cabe legislar e agir especificamente para regularizar a situação urbanística em seu território.

4.3 – Da Possibilidade de Inexigir Licitação na Alienação de Imóveis Públicos Municipais com o fim de Regularização Fundiária.

Atualmente grande parte dos municípios brasileiros sofrem com o problema de ocupação irregular de imóveis públicos municipais por particulares. A licitação para atribuir a cada família o respectivo lote seria conflitante com o interesse público, consistente na ocupação desses invasores. Com efeito, a licitação poderia levar a outro interessado o imóvel, fracassando assim, o projeto de regularização fundiária, pois quem deveria ser assentado não o foi na medida em que o outro acabou como vencedor do certame.

É a partir dessas percepções, que o presente trabalho buscou forma jurídica que possibilita tal regularização, permitindo assim, que os bens ocupados sejam registrados diretamente aos ocupantes particulares.

Como já exposto alhures, a Lei 8.666/93 conduz normas gerais sobre licitação, portanto a União não dispõe de competência privativa, ficando a cargo dos demais Entes Federativos disporem sobre normas específicas para disciplinarem suas licitações.

Corroborando com tal percepção, Marçal (2005, p. 13) afirmar que:

É inquestionável que a Constituição reservou competência legislativa especifica para cada esfera política disciplinar licitação e contratação administrativa. A competência legislativa sobre o tema não é privativa da União.

Existem hipóteses em que a licitação formal seria impossível ou impediria a realização adequada das funções estatais; é daí que surge a possibilidade da contratação direta. No caso específico do presente trabalho, seria incoerente destinar um imóvel público municipal, ocupado por particulares há vários anos, à qualquer interessado. De certo modo, a Administração não obteria o resultado satisfatório ao seu mister constitucional de consecução do bem-estar social, ao contrário, poderia provocar graves injustiças, a medida em que os imóveis, objeto do procedimento de regularização, poderiam ser destinados à pessoas que já possuem propriedades.

A própria Lei de Licitações e Contratos Administrativos, reserva em seu artigo 17, regramento legal para alienação de bens públicos, chegando inclusive autorizar a dispensa de licitação quando se tratar de regularização fundiária de interesse social, ou seja, destinada especialmente ao assentamento de famílias de baixa renda.

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Dispõe o artigo:

Art. 17 - A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência de interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação e obedecerá às seguintes normas:

I - quando imóveis, dependerá de autorização legislativa para órgãos da administração direta e entidades autárquicas e fundacionais, e, para todos, inclusive as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e de licitação na modalidade de concorrência, dispensada esta nos seguintes casos:

f) - alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciais construídos, destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública.           

Ocorre que, conforme se depreende da norma acima citada, a dispensa de licitação se restringe à regularização fundiária de interesse social (famílias com menor poder econômico-financeiro – em vulnerabilidade social), não alcançando assim, ocupantes de áreas públicas que possuem boa condição financeira.

Levando em consideração referido fato normativo, torna-se inviável a concretização de determinada regularização em muitos municípios, isto porque, muito embora grande parte dos particulares ocupantes desses lotes sejam de baixa renda, na mesma situação encontram-se também famílias que possuem poder aquisitivo, mas que sob o aspecto concernente à irregular ocupação se encontram na mesma condição de insegurança, por não serem proprietários das áreas ocupadas.

A partir da referida constatação, a dispensa de licitação seria impossível, uma vez que, a relação proposta no artigo 17 da Lei nº 8.666/1993 é taxativa, não podendo adaptar novas hipóteses, ou seja, não haveria argumentos jurídicos que justificasse tal escolha.

 É sabido que concorrência é a modalidade de licitação destinada à compra e alienação de bens imóveis, entretanto, tem-se que no caso do presente trabalho seria impossível. Como já discutido anteriormente, a licitação no caso especifico poderia atrapalhar a intenção do Poder Público de promover a regularização urbano-municipal e consequentemente o registro imobiliário de cada área pública ocupada aos particulares.

 No entanto, no que diz respeito à inexigibilidade, a redação proposta pelo artigo 25 é meramente exemplificativa, podendo ser enquadrados novos casos, desde que comprovada a impossibilidade de competição frente à um processo licitatório, tal como o tema da presente monografia. Desta maneira, ressalta-se que, em qualquer situação que a Administração Pública se depare com a impossibilidade de competição, esta poderá deixar de realizar a licitação, por meio de inexigibilidade.

Nesse sentido, ensina Di Pietro (2015, p. 429) que “nos casos de inexigibilidade, não há possibilidade de competição, porque só existe um objeto ou uma pessoa que atenda às necessidades da Administração; a licitação é, portanto, inviável”.

Pois bem, o direito constitucional à moradia, o interesse coletivo, o interesse Municipal e, principalmente, o preponderante objetivo do Poder Público de promover a regularização fundiária, são elementos constituidores de inevitável impossibilidade de competitividade, configuradores de inexorável hipótese de inexigibilidade.  

Em outras palavras, a regularização fundiária municipal, como mecanismo concretizador do direito fundamental à moradia e do interesse social, torna a competitividade inviável, o que justifica a adoção do procedimento administrativo de inexigibilidade, seja em qual for o caso – assentamento de particulares de baixa renda ou não.

Neste sentido é o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal – STF, que em caso análogo proferiu a seguinte decisão:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 3º, §§, DA LEI N. 9.262, DE 12 DE JANEIRO DE 1.996, DO DISTRITO FEDERAL. VENDA DE ÁREAS PÚBLICAS PASSÍVEIS DE SE TORNAREM URBANAS. TERRENOS LOCALIZADOS NOS LIMITES DA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL - APA DA BACIA DO RIO SÃO BARTOLOMEU. PROCESSO DE PARCELAMENTO RECONHECIDO PELA AUTORIDADE PÚBLICA. VENDAS INDIVIDUAIS. AFASTAMENTO DOS PROCEDIMENTOS EXIGIDOS NA LEI N. 8.666, DE 21 DE JUNHO DE 1.993. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO. INEXIGIBILIDADE E DISPENSA DE LICITAÇÃO. INVIABILIDADE DE COMPETIÇÃO. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 37, INCISO XXI, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INOCORRÊNCIA.

1. A dispensa de licitação em geral é definida no artigo 24, da Lei n. 8.666/93; especificadamente --- nos casos de alienação, aforamento, concessão de direito real de uso, locação ou permissão de uso de bens imóveis construídos e destinados ou efetivamente utilizados no âmbito de programas habitacionais ou de regularização fundiária de interesse social, por órgãos ou entidades da administração pública --- no seu artigo 17, inciso I, alínea f. Há, no caso dos autos, inviabilidade de competição, do que decorre a inexigibilidade de licitação (art. 25 da lei). O loteamento há de ser regularizado mediante a venda do lote àquele que o estiver ocupando. Consubstancia hipótese de inexigibilidade, artigo 25[10].

Vale consignar que seja a regularização fundiária de interesse social ou de interesse específico, resta evidente a importância da intervenção jurídica para poder conceder o título de propriedade àqueles que ocupam os lotes públicos, todavia, estes necessitam vir combinados com outras políticas públicas que possam promover a segurança adequada, o meio ambiente ecologicamente equilibrado e por fim, a ordem urbanística das cidades.

Lado outro, e não menos importante, o fato de inexigir o procedimento licitatório não significa que haverá arbitrariedade, ou seja, a ausência de licitação não pressupõe contratação informal, pelo contrario; a Lei nº 8.666/93 em seu já citado artigo 26 estabelece um procedimento prévio, em que a observância de formalidades é imprescindível. Senão, vejamos as etapas a serem seguidas de forma mais didática:

  1. Desafetação do bem público;
  2. Lei autorizando a alienação do bem público;
  3. Lei autorizando e prevendo a possibilidade de inexigibilidade;
  4.  A demarcação da área e dos imóveis a serem objeto da regularização;
  5.  Avaliação prévia do imóvel;
  6. Justificativa do Poder Público ao inexigir a licitação.           

Por tudo que foi expendido, tem-se que os Municípios podem proceder pela inexigibilidade de licitação com o fim de adotar mecanismos de regularização fundiária, desde que sejam respeitadas as formalidades acima apontadas, pois neste caso o interesse público é a concretização do direito fundamental à moradia e seus consectários lógicos, da estabilidade familiar e social, do lazer, do trabalho e do bem-estar, configuradores inarredáveis do fundamento estatal da dignidade humana.

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Sobre os autores
André Luiz Peruhype Magalhães

Advogado. Mestre em Direito Público pela FUMEC. Professor Universitário.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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