INTRODUÇÃO
Ocorrido em 1999, o Seminário do Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH) lançou as bases do que seriam, para o novo século, os sentidos e diretrizes de uma Educação em Direitos Humanos. Atribuiu-se, no encontro, três dimensões que constituem o horizonte de sentido da Educação em Direitos Humanos, quais sejam: a formação de sujeitos de direitos, o empoderamento e a memória. O presente trabalho se propõe a analisar essas três dimensões, suas influências recíprocas, destacando o papel da memória como elemento fundamental na busca da construção de uma Educação emancipatória em Direitos Humanos.
DESENVOLVIMENTO
No Brasil, suscitado por grupos de professores e militantes, os primeiros debates em Educação em Direitos Humanos floresceram na década de oitenta, entre o final da ditadura militar e começo da chamada “redemocratização” do país, surgindo como forma de negação ao sistema educacional imposto, buscando uma nova maneira de educar para além do medo e do autoritarismo.
Nesse contexto, os pressupostos da Educação em Direitos Humanos desenvolveram-se como parte de um processo de fortalecimento dos regimes democráticos. Assim, a Educação em Direitos Humanos foi pensada sob uma perspectiva de construir a liberdade e a igualdade, isto é, os direitos civis e políticos, próprios da liberdade, e os direitos sociais e econômicos, próprios da aspiração da igualdade.
Com a década de 90, porém, mudanças ocorreram nos pressupostos da Educação em Direitos Humanos, ocasionadas tanto pelas transformações do cenário político-econômico de toda a América Latina, quanto por mudanças no próprio terreno pedagógico da educação. O Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH) da Costa Rica, no final de década, objetivando realizar um balanço da Educação em Direitos Humanos em todo o continente, propôs um estudo de caso que foi realizado em diferentes países no seu respectivo contexto, sendo realizado ao final, o Seminário do Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH).
Das discussões ocorridas durante o Seminário do Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), realizado em Lima, Peru, chegou-se ao consenso de que hoje era importante reforçar três dimensões da educação dos Direitos Humanos (CANDAU, 2007). O primeiro deles é a formação de sujeitos de direitos. A herança paternalista e autoritária introduziu no ideário popular a falácia de que direitos são dádivas, regalos, presentes e essa violenta negação do indivíduo como sujeito de direitos o torna vítima. Vítima é, portanto, um ser de dignidade e direitos cuja realização é negada (no todo ou em parte) (CARBONARO, 2007). A negação de sua dignidade é a negação de seu ser ético, de sua expressão como ser político, sua identidade cultural, de sua própria expressão como pessoa, pois fim.
“[...] boa parte da humanidade é ‘vítima’ de profunda dominação ou exclusão, encontrando-se submersa na ‘dor’, ‘infelicidade’, ‘pobreza’, ‘fome’, ‘analfabetismo’, ‘dominação’”. A vítima expressa, acima de tudo, a contradição do sistema: “[...] a maioria de seus possíveis participantes afetados se encontram privados de cumprir com as necessidades que o próprio sistema proclamou como direitos” (DUSSEL, 2000, p. 315).
A subjetividade, entendida como sinônimo de individualidade, gera um sistema garantidor das prerrogativas de sujeitos de direitos para uns e para outros, a negação dessa qualidade. É preciso fomentar, a partir da Educação em Direitos Humanos, o reconhecimento do sujeito como ser de identidade, de subjetividade, dele como o sujeito da práxis de libertação é o autor dos processos de afirmação dos direitos, dos processos de construção de relações libertas.
Educação em direitos humanos é essencialmente interação – sem com isso querer identificar-lhe uma essência metafísica. É intervalo pleno (não vazio) entre os sujeitos. Isto significa que os processos educativos se dão na relação, na presença, de alteridades distintas que não somente se encontram casualmente por motivos protocolares, mas que se abrem (ou se fecham) para a construção pessoal de uns e de outros dos implicados e envolvidos no processo. No intervalo pleno do processo educativo comparecem sujeitos diversos: o/a educador/a, o/a educando/a, sujeitos imediatos da relação, e outros sujeitos – os humanos em geral, as vítimas de violação, os promotores e defensores da promoção dos direitos – presentes pela mediação do processo. Ou seja, a educação em direitos humanos não é a construção de um discurso externo ou a apreensão de mais um conteúdo estanque no repertório dos muitos que estão disponíveis ou são disponibilizados. A educação em direitos humanos, ou toma os sujeitos implicados no processo desde dentro e os põe dentro das dinâmicas que abre, ou resta inviabilizada por não atingir sua finalidade básica, que é exatamente a de abrir-se para os sujeitos pluridimensionais que estão em interação. (CARBONARI,2007 pag. 183)
Um outro elemento constitutivo do sentido da Educação em Direitos humanos, elencados por Candau, é o do empoderamento ou “empowerment”. Em um primeiro momento, o empoderamento se manifesta na possibilidade de controle, pelo indivíduo, da sua própria vida, das suas ações e decisões. É, portanto, o poder, a potência que cada pessoa tem para que ela possa ser sujeito de sua vida e ator social (CANDAU, 2007).
Essa dimensão do empoderamento, como se pode vislumbrar, é preeminentemente psicológica, de fortalecimento da autoestima do indivíduo experimentada através dele para com ele mesmo e dele para com seu grupo determinado. Não há, nesse sentido, menção a participação em ações políticas coletivas como parte desse processo de libertação e autonomia.
Entendendo que o comportamento humano não pode ser desvinculado do contexto sociopolítico a que está submetido, e mais, que as políticas e práticas macrossociais possuem papel fundamental na própria determinação do ser como sujeito, o sentimento de empoderamento derivado apenas da relação do indivíduo para com ele mesmo, em sua dimensão psicológica, gera um sentimento ilusório de poder, de controle por parte do indivíduo, subsistindo a dominação pelas práticas macrossociais e criando um "senso de empowerment" que favorece unicamente a manutenção do status quo.
Nessa perspectiva,
A experiência do indivíduo em relação ao poder, ou à falta deste, pode não ter relação com a capacidade real de influência, e um aumento do sentido de empowerment nem sempre reflete um aumento do poder real. (...) Isto não significa que o indivíduo não possa ter nenhuma influência ou que suas percepções individuais não sejam importantes, mas, antes, significa que reduzir o poder à psicologia individual é ignorar o contexto político e histórico em que as pessoas atuam. Confundir a habilidade real de alguém em controlar as coisas com um sentido de empowerment despolitiza este último (Riger S. in Carvalhohttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2004000400024)
Na construção de um novo sentido de “empowerment”, através de sua ressignificação e repolitização, floresce o “empowerment” comunitário, fundamentado na premissa de que a sociedade é formada por um conjunto de distintos grupos de interesse que possuem discrepantes níveis de poder e controle sobre os recursos, fazendo com que processos de empoderamento impliquem, muitas vezes, a redistribuição de poder e a resistência daqueles que o perdem (CARVALHO, 2004).
O empoderamento comunitário entende que o poder coexiste nas diversas esferas da vida social. Entende, portanto, a coexistência dos microfatores, na esfera individual, como a autoestima e a autoconfiança; as estruturas de mediação, no plano da mesosfera social, onde os membros de um determinado grupo compartilham vivências e ampliam sua consciência crítica e, no âmbito da macroesfera, as estruturas de poder do Estado e da macroeconomia.
O último elemento elencado por Candau como sentido de Educação em Direitos humanos são os processos de transformação, de mudanças que constituem a sociedade. Nesse sentido, o resgate da memória histórica é fundamental para romper a cultura do silêncio e possibilitar um “educar para nunca mais”, essenciais para a construção de uma identidade social.
Memória, em sua generalidade, é entendida como as recordações do passado que emergem no pensamento, no momento presente. É também conceituada como a capacidade de armazenar dados, informações e momentos relativos ao passado. Nas duas concepções, a compreensão sobre a memória é associada eminentemente ao plano individual, isto é, a existência da memória depende de um acontecimento e de um ator, sendo o resultado da impressão de eventos reais na mente humana.
Halbwachs, sociólogo francês e discípulo de Durkheim, foi o precursor do entendimento da memória como campo das interações sociais. Através de seus estudos, ofereceu uma outra noção de memória, enraizada nas interações entre indivíduos em sociedade. Para Halbwachs, mesmo que aparentemente individual, a memória remete a um grupo ou, na verdade, a múltiplos grupos, uma vez que os homens tecem suas memórias a partir das diversas formas de interação que mantêm com outros indivíduos.
A memória individual reflete, portanto, a complexidade das interações sociais vivenciadas pelos indivíduos. Ainda que a memória sobre um fato seja estritamente pessoal, ela é coletiva, pois nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos (HALBWACHS, 2006).
A formação de uma memória coletiva, como memória comum, longe de configurar-se como uma imposição ou uma forma de dominação é, para Halbwachs, uma maneira de reforçar a coesão social, não no sentido de coerção, mas como adesão afetiva ao grupo, ao que o autor chama de “comunidade afetiva”. A construção de uma memória nacional é, portanto, a forma mais completa de expressão de uma memória coletiva uma vez que a nação é a forma mais acabada de um grupo (CAMPOS, A. P.; SIQUEIRA, K. S.; MOTTA, K. S. da; LAGO, R. D.,2013)
Em contraposição ao pensamento Halbwachs, Le Goff entendeu que o processo de construção das memórias coletivas, formadas no seio das interações sociais, não esvai-se das relações de poder que permeiam a vida em coletividade, pelo contrário, são estabelecidas no bojo da luta de classes. Nesse sentido, há um domínio da memória coletiva por determinadas classes em detrimento das demais. Constitui-se, não obstante, a memória coletiva como instrumento e um objeto de poder (LE GOFF, 2012)
[...] a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 2012, p. 408).
Pollak, corroborando com Le Goff, em uma análise dos processos e atores que intervêm no trabalho de constituição e de formalização das memórias, destacou o caráter opressor, destruidor e uniformizador de uma memória dita nacional, que privilegia a classe dominante e obsoleta as classes emergentes. A memória é, portanto, a memória de um grupo, voltada para atingir interesses determinados, visando silenciar outras memórias coletivas.
É, em contraposição a essa memória nacional, que florescem as memórias subterrâneas. Estimulada principalmente pela história oral, as memórias subterrâneas visam dar voz a memória periférica e marginalizada, subvertendo ao silêncio e colocando em disputa a memória.
Essa memória "proibida" e portanto "clandestina" ocupa toda a cena cultural, o setor editorial, os meios de comunicação, o cinema e a pintura, comprovando, caso seja necessário, o fosso que separa de fato a sociedade civil e a ideologia oficial de um partido e de um Estado que pretende a dominação hegemônica. Uma vez rompido o tabu, uma vez que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações múltiplas e dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa da memória [...] (POLLAK, 1989, p. 5).
Colocar em disputa a memória é substancial, uma vez que ela é um fenômeno construído, individual e socialmente. E se ela é um fenômeno construído no bojo de relações interpessoais, ela é também uma forma de construção da identidade, isto porque, constitui-se como fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992).
Fomentar a produção de outras memórias é, sobretudo, estimular o redescobrimento de subjetividades.
“(...) subjetividade inter-subjetiva constitui-se a partir de uma certa comunidade de vida [...] desde uma certa memória coletiva de gestos de libertação, desde necessidades e modos de consumo semelhantes, desde uma cultura com alguma tradição, desde projetos históricos concretos aos quais se aspira em esperança solidária.” (DUSSEL,in CARBONARI,2007, pág.24) .
A memória ao mesmo tempo que é espaço de dominação, é o lugar de libertação. É através do reconhecimento do papel da memória na construção da identidade, da percepção de sua utilização como instrumento de poder e de silenciamentos, que será possível a busca por memórias subterrâneas que possibilitem o reconhecimento do indivíduo como sujeito, e, mais que isso, como sujeito de direitos.
É a partir da interação entre diferentes sujeitos repletos de identidade e empoderamento, que funda-se a Educação em Direitos Humanos. Ela nasce do encontro de alteridades. Constrói-se na presença e no conflito, gerando possibilidades emancipatórias. É um processo de formação permanente gerada através da intersubjetividade, da pluralidade e de sujeitos que possuem como marca constitutiva a diversidade. Educar em direitos humanos é um processo vivo, permanente e obstinado de humanizar pessoas e relações, tomando cada ser humano desde dentro e por dentro, em relação com os outros (CARBONARI, 2007).
CONCLUSÃO
O presente trabalho teve o intuito de analisar os três elementos que constituem o horizonte de sentido da Educação em Direitos Humanos. Tentou-se demonstrar ao longo do texto que o reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos e do seu empoderamento quanto à vida social só é possível a partir de um reconhecimento de identidade enraizadas nas memórias subterrâneas marginalizadas e periféricas.
Uma Educação emancipatória em Direitos Humanos necessita, primeiramente, do reconhecimento de que a violação dos direitos humanos produz vítimas. E reconhecer a existência de vítimas é, antes de tudo, entender que há sujeitos com sua dignidade negada. E é só a partir do reconhecimento da dignidade do outro sujeito, vítima, como um ser vivente, um sujeito ético, um sujeito de direitos, que é possível caminhar em busca de processos educativos que acontecem na relação de presença entre sujeitos pluridimensionais, nas diferentes alteridades.
O reconhecimento do sujeito de direitos como tal é feito na busca pela própria identidade perpassa indubitavelmente pela relação de pertencimento entre sujeito e memória. É através do compartilhamento de memórias distintas que se supera a condição de vítima e se possibilita o diálogo entre alteridades.
É nesse sentido que a Educação em Direitos Humanos deve agir, no fomento de uma nova subjetividade, dialógica e participativa, pautada na alteridade e no reconhecimento das relações como condição de existência do outro, e do próprio eu. O sujeito de direitos não é uma abstração formal, é construído em processos diversos e complexos, em um emaranhado de relações subjetivas, pluridimensionais, vivenciadas a todo momento nas interações que constituem a própria vida.
Nesse sentido, a Educação em Direitos Humanos deve possibilitar o reconhecimento da relação mútua de condicionamentos e determinações dentro das diferentes esferas sociais, propondo uma prática que responda, simultaneamente à experiência subjetiva da "falta de poder" e que, ao mesmo tempo, contribua para a mudança das condições sócio-culturais (CARVALHO, 2004).
Os horizontes de sentido da Educação em Direitos Humanos, por fim, devem ser entendidos como pressupostos para o alcance de uma educação construída em um processo com os outros, desde os outros, para si e para os outros. É através da humanização dos indivíduos, do seu entendimento como sujeitos empoderados, detentores de memória e de direitos, que será possível a construção de processos educativos que vislumbrem a aprendizagem como exercício de reflexão e ações críticas. A educação como instrumento de libertação.
REFERÊNCIAS
CAMPOS, A. P.; SIQUEIRA, K. S.; MOTTA, K. S. da; LAGO, R. D. (Org.). Anais do Encontro Internacional de História Ufes/ Université Paris-Est: memórias, traumas e rupturas. Vitória: ???,2013.
CANDAU, Maria Vera. Educação em direitos humanos: desafios atuais.In:Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa:Editora Universitária, 2007.
CARBONARI, Paulo César. Educação em Direitos Humanos: Esboço de Reflexão Conceitual . In:Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos. João Pessoa:Editora Universitária, 2007.
CARVALHO, Sérgio Resende. Os múltiplos sentidos da categoria "empowerment" no projeto de Promoção à Saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 20, n. 4, p. 1088-1095, Aug. 2004 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2004000400024&lng=en&nrm=iso>. access on 15 July 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2004000400024.
POLLAK, Michael.“Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, nº 10, 1992
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão; 5ª edição; Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2003;
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva, tradução: Laís Teles Benoir, São Paulo: Centauro, 2004;
DUSSEL, E. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Trad. Jaime A. Clasen et al. Petrópoli.