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Poderes investigatórios do Ministério Público: solução ou problema?

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01/01/2017 às 08:00
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Este estudo tem por escopo a demonstração da ilegitimidade da função investigatória criminal pelo Ministério Público, a partir do perfil constitucional que lhe foi delineado pela Constituição Federa de 1988. Questão polêmica, decidida pelo Tribunal atual.

RESUMO:Este estudo tem por escopo a demonstração da ilegitimidade da função investigatória criminal pelo Ministério Público, a partir do perfil constitucional que lhe foi delineado pela Constituição Federa de 1988. A questão é polêmica, e está assentada em várias hipóteses, dentre elas: a possibilidade de violação das garantias constitucionais, a inexistência de previsão constitucional e legal para o exercício de tal atividade, possibilidade de o Ministério público estar ferindo o sistema acusatório, a inexistência de uma instituição que fiscaliza o mesmo, com a supressão ou não das funções da Polícia Judiciária, e outras que serão debatidas mais adiante.

Palavra-chave: Investigação Criminal. Ministério Público. Garantias Constitucionais. Polícia Judiciária.

ABSTRACT:This study purposes to demonstrate the ilegitimacy of the criminal investigative function by the Public Prosecution Service, based on the constitutional profile outlined in the Federal Constitution of 1988. The question is controversial, and it is based on various hypotheses, such as: the possibility of violation of constitutional guarantees, the lack of constitutional and legal provision for the exercise of this activity, the possibility of the Public Prosecutor's Office injures the accusatory system,the  lack of an institution that supervises the Public Prosecutor´s Office, the suppression or not of the Judicial Police funcions, and others which will be discussed later.

Keyword: criminal investigation. Public prosecutor's office. Constitutional guarantees. Judiciary Police.

SUMÁRIO:1 INTRODUÇÃO..2 EVOLUÇÃO PARA UM REAL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO..2.1 Fundamento do Estado Democrático de Direito: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.3 O CONSTITUCIONALISMO NO PROCESSO PENAL.3.1 Função Garantista da Investigação Criminal: Justa Causa.4 SISTEMAS DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL .4.1 Sistema de Investigação Coordenada pelo Magistrado.4.2 Sistema de Investigação Coordenada pelo Ministério Público.4.3 Sistema de Investigação Coordenada pela Polícia Judiciária.4.4 Crise no Sistema Investigatório Brasileiro.5 PODERES INVESTIGATÓRIOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO.5.1 Argumentos favoráveis à investigação ministerial.5.2 Argumentos contrários à investigação ministerial..5.3 Atual posicionamento jurisprudencial.5.3.1 Superior Tribunal de Justiça.5.3.2 Superior Tribunal Federal ..6 CONCLUSÃO.


INTRODUÇÃO

Verifica-se no Brasil um crescente aumento da taxa de criminalidade. Sabemos que a nossa polícia judiciária não é dotada de treinamento, verba e principalmente equipamento adequado para conter o vertiginoso crescimento dos índices de marginalidade, o que vem alarmando não apenas as autoridades públicas, mas também a sociedade. Com a ineficiência da polícia brasileira, gerada pelo descaso com a qual é tratada a segurança pública, surge uma discussão acerca da introdução de um novo sistema de investigação criminal, que seria impulsionado também pelo Ministério Público.

Porém, sob a égide do aumento da criminalidade e defensor do ordenamento jurídico e da sociedade brasileira, o Ministério Público vem participando diretamente das investigações sem que se tivesse uma real regulação para a mesma. Temos inclusive promotorias de investigação e o GAECO. O Ministério Público atua como se a Constituição lhe tivesse concedido tal poder. Os Tribunais superiores já decidiram ser legítimos tais poderes. Mas, e a sociedade? Será que esta foi ouvida? Será que seus anseios vão ser alcançados? Será que o Ministério Público vai atender às camadas mais necessitadas da segurança pública?

O atual ordenamento jurídico encontra-se submerso à Constituição. Todos os ramos do direito, atualmente encontram-se irrigados pelas garantias constitucionais e pela interpretação conforme. O sistema penal está sendo alterado pela via da Teoria dos Poderes Implícitos, tendo inclusive, recebido o aval do plenário do STF.

Na atual seara, introduzir uma instituição no pólo investigativo não nos parece solucionar os problemas da sociedade. E sim por em risco a democracia e todas as garantias advindas da mesma.


1 A Evolução para um real Estado Democrático de Direito

Na ante véspera da convocação da Constituinte de 1988, era possível identificar um dos fatores crônicos do fracasso na realização do Estado de Direito no país: a falta de seriedade em relação à lei fundamental, a indiferença para com a distância entre o texto e a realidade, entre o ser e o dever ser[1]. Dois exemplos emblemáticos: a Carta de 1824 estabelecia que “a lei será igual para todos”, dispositivo que conviveu, sem que se assinalasse perplexidade ou constrangimento, com os privilégios da nobreza, o voto censitário e o regime escravocrata. Outro: a Carta de 1969, outorgada pelo Ministro da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, assegurava um amplo elenco de liberdades públicas inexistentes e prometia aos trabalhadores um pitoresco elenco de direitos sociais não desfrutáveis, que incluíam “colônia de férias e clinicas de repouso”[2].                                                                                                   

A instalação da Assembleia Nacional Constituinte ocorreu em 1 de fevereiro de 1987, sob a presidência do Ministro José Carlos Barbosa Moreira Alves, então presidente do Supremo Tribunal Federal. Logo no dia seguinte, o Deputado Ulysses Guimarães foi eleito presidente da Constituinte, elaborou o seu regimento interno, aprovado no dia 24 de março. Foram formadas vinte e quarto subcomissões incumbidas de elaborar a nova Constituição, em trabalho findo em 25 de maio, aperfeiçoado por oito comissões temáticas, que encaminharam o anteprojeto à Comissão de Sistematização[3]. Depois de mais de vinte mil emendas, no dia 5 de outubro de 1988, tivemos a consagrada Constituição de 1988, a qual em seu preâmbulo instituiu o Estado Democrático e os valores que passaram a reger a sociedade como a igualdade, dignidade da pessoa humana, solidariedade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

A consagração da noção de Estado de direito por um texto constitucional tem, originalmente, dupla finalidade: a imposição de limites ao exercício do poder estatal e a criação de uma autêntica garantia constitucional aos cidadãos.[4]

No que tange à democracia, mesmo sendo difícil conquistar a unanimidade na determinação precisa de seus contornos elementares, Norberto Bobbio alude à existência de uma definição mínima. O autor assinala a possibilidade de caracterizá-la como “um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos”.[5] A democracia estaria, assim essencialmente relacionada à formação e atuação do governo.

José Joaquim de Gomes Canotilho aduz que a consagração constitucional da noção de democracia (Estado Democrático de Direito) tem a finalidade de erigi-la a um autêntico princípio informador do Estado e da Sociedade, e assevera que o sentido constitucional desse princípio é a democratização da democracia, ou seja, a condução e a propagação do ideal democrático para além das fronteiras do território político.[6]

A Constituição de 1988 exterioriza valores fundamentais como a democracia, a igualdade e a dignidade da pessoa humana. Mas não bastam estarem escritos na carta. Como dito anteriormente, Constituições anteriores já consagravam valores, os quais nunca foram efetivados. Tais valores precisam ser consagrados, caso contrário, serão letra morta, como infelizmente já o foram.

Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX foi a atribuição à norma constitucional do status de norma jurídica. Superou-se, assim, o modelo que vigorou na Europa até meados do século passado, no qual a Constituição era vista como um documento essencialmente político, um convite à atuação dos Poderes Públicos. A concretização de suas propostas ficava invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à discricionariedade do administrador. Ao Judiciário não se reconhecia qualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição. A doutrina da efetividade consolidou-se no Brasil como um mecanismo eficiente de enfrentamento da insinceridade normativa e de superação da supremacia política exercida fora e acima da Constituição.[7]

Tal doutrina da efetividade emergiu no Brasil após a promulgação da Constituição de 1988. O compromisso destes não era propriamente de ordem teórica, sendo mais política. As mensagens do discurso constitucional eram as seguintes: “a Constituição vincula”, “a Constituição vale”, “a Constituição incide”. Tratava-se de apostar nas virtualidades dirigentes do novo texto e de irrigar a ordem jurídica com os valores plasmados no documento constitucional. Para isso, importava reler todo o Direito à luz da principiologia da Constituição, através do processo conhecido como filtragem constitucional. Tratava-se, portanto, de uma doutrina amiga da Constituição, enfim, de uma doutrina constitucional amorosa, vinculada até a medula à ideia de normatividade integral da lei fundamental. Propunha a releitura das velhas categorias, do propósito do Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião constitucional no contexto da nova Constituição, e o estudo das ações constitucionais como meios de efetivação das suas promessas.[8]

O Brasil vinha de um processo de redemocratização, onde o Direito Constitucional ficou imerso frente às barbáries da época ditatorial. O Supremo Tribunal Federal calou-se. Era preciso mudar de paradigma para transformar a sociedade brasileira. A Constituição havia de deixar de ser um simples amontoado de letras para tornar-se direitos fundamentais.

A Carta Magna absorve determinados valores, apresentados na forma de princípios, de modo a garantir os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana. Não é mais um simples corpo orgânico destinado a estruturar o Estado, os seus órgãos e a desenhar os limites do exercício do poder. Mais do que isso, é, na verdade, a mina, a reserva, a fonte da materialidade do Direito, dos valores que singularizam esta ou aquela ordem jurídica, dos compromissos intergeracionais condensados normativamente. Por isso, ela é conquista, é condensação compromissória, é expressão de luta e, ao mesmo tempo, consenso, resultado de acordo sobre o que é essencial e determinante de sua história, através de seus canais de mediação, em especial as instituições, haverá de desempenhar na comunidade de destino. Em síntese, a Constituição deixa de ser documento do Estado e para o Estado para afirma-se como documento também da sociedade e, por isso mesmo, do ser humano dotado de dignidade. O Estado é instrumento a serviço do homem, e não o contrário.[9]

Esse é o papel pretendido pela Constituição de 1988. Esse é o corpo normativo que se pretende atribuir plena efetividade. A este tema, no final da década de 1960, José Afonso da Silva publicou a primeira edição de seu clássico A aplicabilidade das Normas Constitucionais, e ainda o Luis Roberto Barroso em sua tese de livre-docência, escrita em 1987, intitulada A Força Normativa da Constituição. Elementos para a Efetividade das Normas Constitucionais. Enfim, a doutrina fez o seu papel, procurou introduzir juridicidade para o Direito Constitucional brasileiro e substituir a linguagem retórica por um discurso substantivo, objetivo, comprometido com a realização doa valores e dos direitos contemplados na Constituição.[10]

Salientemos a íntima e indissociável vinculação entre os direitos fundamentais, as noções de Constituição e de Estado Democrático de Direito. Para tanto, afigura-se oportuna a transcrição da seguinte lição de Klaus Stern, para quem “as ideias de Constituição e direitos fundamentais são, no âmbito da segunda metade do século XVIII, manifestações paralelas e unidirecionadas da mesma atmosfera espiritual. Ambas se compreendem como limites normativos ao poder estatal. Somente a síntese de ambas outorgou à constituição a sua definitiva e autêntica dignidade fundamental”.[11] Tal pensamento afigura-se em sintonia com a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, no seu art 16 “toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada não possui Constituição”.

Os direitos fundamentais integram, portanto, ao lado da definição da forma de Estado, do sistema de governo e da organização do poder, a essência do estado Constitucional, constituindo, neste sentido não apenas parte da Constituição formal, mas também elemento nuclear da Constituição material. Para, além disso, estava definitivamente consagrada a íntima vinculação entre as ideias de Constituição, Estado de Direito e direitos fundamentais. Assim, acompanhando as palavras de K.Stern, podemos afirmar que o Estado constitucional determinado pelos direitos fundamentais assumiu feições de Estado ideal, cuja concretização passou a ser tarefa permanente.[12]

Tendo em vista que a proteção da liberdade por meio dos direitos fundamentais é, na verdade, proteção juridicamente mediada, isto é, por meio do direito, pode-se afirmar com segurança, que a Constituição (e neste sentido, o Estado constitucional), na medida em que pressupõe uma atuação juridicamente programada e controlada dos órgãos estatais, constitui condição de existência das liberdades fundamentais, de tal sorte que os direitos fundamentais somente poderão aspirar à eficácia no âmbito de um autêntico Estado constitucional. Os direitos fundamentais podem ser considerados, conditio sine qua non do Estado Constitucional democrático. Além disso, como já havia sido objeto de previsão expressa na declaração de direitos da ex-colônia inglesa da Virginia (1776), os direitos fundamentais passaram a ser simultaneamente a base e o fundamento (basis and foundation of governmet), afirmando, assim, a ideia de um Estado que, no exercício de seu poder, está condicionado aos limites fixados na sua Constituição.[13]

É neste contexto que assume a concepção, consensualmente reconhecida na doutrina, de que os direitos fundamentais constituem, para além de sua função limitativa do poder (que ademais não é comum a todos os direitos), critérios de legitimação do poder estatal e, em decorrência, da própria ordem constitucional, na medida em que “o poder se justifica por e pela realização dos direitos do homem e que a ideia de justiça é hoje indissociável de tais direitos”.[14]Podemos ainda nos ater às palavras de Pérez Luño, de acordo com o qual “existe um estreito nexo de interdependência genético e funcional entre o Estado de Direito e os direitos fundamentais, uma vez que o Estado de Direito exige e implica, para sê-lo, a garantia dos direitos fundamentais, ao passo que estes exigem e implicam, para sua realização, o reconhecimento e a garantia do Estado de Direito”.[15]

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Seguindo esta ideia, com importante relevo, a lição de Ferrajoli, no sentido de que todos os direitos fundamentais equivalem a vínculos substanciais que condicionam a validade substancial das normas produzidas no âmbito estatal, ao mesmo tempo em que expressam os fins últimos que norteiam o moderno Estado constitucional de Direito. No Estado de Direito, em que se assegura prioritariamente os valores substanciais e os direitos fundamentais da pessoa humana, o seu modelo penal garantista, tem perfeita adequação às finalidades estatais.[16]

Segundo Ferrajoli, o garantismo pode ser encarado sob três ângulos distintos, embora dependentes. Ensina o jurista italiano que, numa acepção própria do Direto Penal, já mencionada, o garantismo designa um modelo normativo de estrita legalidade, caracterizando-se como um sistema de poder mínimo cuja técnica de tutela é capaz de minimizar a violência e de maximizar a liberdade, através da imposição de vínculos limitativos ao poder punitivo do Estado em garantia dos direitos fundamentais do indivíduo. Numa segunda acepção, o garantismo designa uma teoria jurídica que diferencia a vigência, a validade e a efetividade das normas. Numa terceira e última acepção, o garantismo designa uma filosofia política que impõe ao Direito e ao Estado uma carga de justificação externa dos bens e interesses protegidos, distinguindo direito e moral, validez e justiça, ponto de vista interno e externo, em suma, ser e dever ser, ao mesmo tempo em que prestigia o aspecto externo para fins de legitimação ou deslegitimação ético-política do Direito e do Estado.[17]

Para a teoria garantista a legitimação deve obedecer um parâmetro externo e interno. Muitas vezes podemos observar um descompasso entre o Estado Democrático e o direito positivado. Em qualquer caso, incumbirá ao operador do direito afastar a aplicação das normas contrarias aos bens, interesses e valores éticos, políticos e jurídicos inerentes às pessoas humanas, as quais foram asseguradas na carta constitucional. Para Ferrajoli, a expressão Estado de Direito pode ser empregada como sinônimo de garantismo, como veremos no trecho transcrito de sua belíssima obra:

El término ‘estado de derecho’se usa aqui la segunda de acepciones; y em este sentido es sinônimo de “garantismo”. Por eso designa no simplesmente um “estado legal” o “regulado por la ley”, sino um modelo de estado naciso com lãs modernas Constituciones y caracterizado: a) em el plano formal, por el principio de legalidad, em virtud Del cual todo poder público – legislativo, judicial y administrativo – está subordinado a leyes generales y abstractas, que disciplinan sus formas de ejercicio y cuya observancia se halla sometida a control de legitimidad por parte de jueces separados Del mismo e independiemtes (el Tribunal Constitucional para lãs leyes, jueces ordinários para lãs sentencias, los tribunales administrativos para lãs decisiones de esse carácter); b) em el plano sustancial, por la funcionalización de todos los poderes Del estado al servicio de la garantia de los derechos fundamentales de los ciudadanos, mediante la incorporación limitativa em su Constituición de los deberes públicos correspondientes, es decir, de lãs prohibiciones de lesionar los derechos de libertad y de lãs obligaciones de dar satisfacción a los derechos sociales, asi como de los correlativos poderes de los cidadanos de activar la tutela judicial.[18]

Com efeito, a teoria do garantismo penal preconiza um sistema político-jurídico destinado a assegurar a máxima correspondência entre a normatividade e a efetividade na proteção aos direitos fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade substancial, mediante a utilização de mecanismos institucionais de garantias. Em consequência, há uma minimização do poder de proibir, de julgar e de punir em prol de uma maximização da investigação judicial, fundando-se a epistemologia garantista, respectivamente, em duas premissas básicas: a definição legislativa e a comprovação judicial.[19]

Apesar da ausência de norma expressa no direito constitucional pátrio qualificando a nossa República como um Estado Social e Democrático de Direito (o art. 1º, caput, refere apenas aos termos democrático e Direito), não restam dúvidas – e nisto parece existir um amplo consenso na doutrina – de que nem por isso o princípio fundamental do Estado social deixou de encontrar guarida em nossa Constituição.[20] Além de outros princípios expressamente positivados no Título I de nossa Carta (como, por exemplo, os da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, etc), tal circunstância se manifesta particularmente pela previsão de uma grande quantidade de direitos fundamentais sociais, que, além do rol dos direitos dos trabalhadores, inclui diversos direitos de prestações sociais por parte do Estado.

No âmbito de um Estado Social de Direito – e o consagrado pela nossa evolução constitucional não foge à regra – os direitos fundamentais sociais constituem exigência inarredável do exercício efetivo das liberdades e garantia de igualdade de chances (oportunidades), inerentes à noção de uma democracia e um Estado de Direito de conteúdo não meramente formal, mas, sim, guiado pelo valor da justiça material.[21]Cumpre frisar, ainda, que a ideia do reconhecimento de determinadas posições jurídicas sociais fundamentais, como exigência do princípio da dignidade da pessoa humana, decorre, consoante leciona Klaus Stern, da concepção de que “homogeneidade social e uma certa medida de segurança não servem apenas ao indivíduo isolado, mas também à capacidade funcional da democracia considerada na sua integralidade”.[22]

Com base nestas ideias há como sustentar que além da íntima vinculação entre noções de Estado de Direito, Constituição e direitos fundamentais, estes, sob o aspecto de concretizações do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos valores da igualdade, liberdade e justiça, constituem condição de existência e medida da legitimidade de um autêntico Estado Democrático e Social de Direito, tal qual como consagração também em nosso direito constitucional positivo vigente.[23]

Como vimos, constituições anteriores, como a de 1891, 1934, 1946, já previam alguns direitos fundamentais. Mas, como dito, sempre lhes faltaram normatividade, seriedade. A Constituição jurídica de um Estado é condicionada historicamente pela realidade de seu tempo. Esta é uma evidência que não se pode ignorar. Mas ela não se reduz à mera expressão das circunstâncias concretas de cada época. A Constituição tem uma existência própria, autônoma, embora relativa, que advém de sua forca normativa, pela qual ordena e conforma o contexto social e político. Existe, assim, entre a norma e a realidade uma tensão permanente, de onde derivam as possibilidades e os limites do Direito Constitucional, como forma de atuação social.[24]

É comum afirmar em sistemática repetição, que uma Constituição deve refletir as condições históricas, políticas e sociais de um povo. Porém, se uma sociedade por circunstâncias diversas da sua formação, é marcadamente autoritária e tem um código opressivo de relações sociais, devem o constituinte e o legislador curvar-se a esta conjuntura e cristalizá-lo nos textos normativos? Parece intuitivo que não. Logo, a ordem jurídica não é mero retrato instantâneo de uma dada situação de fato, nem o Direito uma ciência subalterna de passiva descrição da realidade.[25]

Konrad Hesse, ex-Juiz do Tribunal Constitucional Alemão, assentou com propriedade:

Si las normas de la Constituición no son sino la expresión de realiciones de hecho em continuo cambio, la ciência de la constiución jurídica tiene que volverse uma disciplina jurídica sin Derecho a la que no le queda em ultimo termino outra tarea que la de constatar y comentar initerrupidamente los hechos produzidos por la realidad politica. La ciência del Derecho político no es, entonces, servicio a um orden estatal justo que debe encontrar cumplimento sino que recibe la penosa unción, indigna de uma ciência, de justificar las relaciones de poder existentes.[26]

É de se reconhecer que o Direito tem limites que lhe são próprios e que por isso não deve ter a pretensão de normatizar o inalcançável. Este “otimismo juridicizante”[27] se alimenta da crença desenganada de que é possível salvar o mundo com papel e tinta. Diante de excessos irrealizáveis, a tendência do intérprete é a de negar o caráter vinculativo da norma, distorcendo, por esse raciocínio, a forca normativa da Constituição. As ordens constitucionais devem ser cumpridas em toda a sua extensão possível. Ocorrendo a impossibilidade fática ou jurídica, deve o intérprete declarar tal situação, deixando de aplicar a norma por este fundamento e não por falta de normatividade.[28]

Intuitivamente compreende-se princípio como aquilo que dá origem ao todo, constituindo sua base ou essência. Sendo isto correto, pode-se afirmar que os princípios guardam uma dose de generalidade e abstração que tendem a torná-los aparentemente inacessíveis na prática.[29] Bonavides, em seu curso, observa:

A passagem dos princípios da especulação metafísica abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos códigos) para a órbita juspublicistica (seu ingresso nas constituições); a suspensão da distinção clássica entre os princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da ciência jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas pragmáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios.[30]                                                

Bonavides se refere à importância atual que possuem os princípios. Brilhantemente, não podemos esquecer de Robert Alexy, um grande tradicionalista no assunto: “Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado em uma medida tão ampla quanto possível relativamente a possibilidades fáticas ou jurídicas. Princípios são, portanto, mandamentos de otimização”.[31]

Mais adiante, o autor complementa seu raciocínio esclarecendo que as regras são normas que só podem ser cumpridas ou não cumpridas, sem possibilidade de qualquer ponderação. A forma de aplicação das regras seria pelo processo de subsunção e, não, de ponderação. Mas “ao lado e atrás das regras estão os princípios”.[32]

Para finalizar essa tentativa de concretizar o que seriam os princípios, podemos nos ater mais uma vez à obra de Canotilho:

São normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de tudo ou nada. Enquanto as regras são normas que, verificados determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer exceção.[33]

Atribui-se ao Cristianismo as primeiras preocupações com a dignidade humana. Se o homem foi criado à margem e semelhança de Deus, haveria de ser reconhecido como um valor fundamental em si mesmo. Contudo, foi com o Iluminismo que a noção de dignidade da pessoa humana ganhou uma dimensão mais racional e passou a irradiar efeitos jurídicos, sobretudo por influência do pensamento de Immanuel Kant. O homem, então passa a ser compreendido por sua natureza racional e com capacidade de autodeterminação. De tudo resulta a noção de que o homem é um fim em si mesmo e fim do próprio Estado, que existe para assegurar a dignidade das pessoas e, não, o contrário.[34]

Se de fato há como acolher a lição de Antônio Junqueira de Azevedo[35], no sentido de que o acordo a respeito das palavras “dignidade da pessoa humana” infelizmente não afasta a grande controvérsia em torno do seu conteúdo, e se é igualmente correto partir do pressuposto de que a dignidade, acima de tudo, diz com a condição humana do ser humano, e, portanto, guarda íntima relação com as complexas, e, de modo geral, imprevisíveis e praticamente incalculáveis manifestações da personalidade humana, já se percebe o quão difícil se torna a busca de uma definição do conteúdo desta dignidade da pessoa e, portanto, de uma correspondente compreensão (ou definição) jurídica. Assim, por mais que não seja esta a posição a ser adotada, verifica-se que não é inteiramente destituída de qualquer fundamento racional e razoável a posição dos que refutam a possibilidade de uma definição, ou, pelo menos de uma definição jurídica de dignidade.

Há de convir, que para o estudo do direito é fundamental que se adote, ou ao menos se tente adotar uma definição. O Direito não é como a Filosofia, lá, podemos nos posicionar de modo esquivado, mas no Direito, a dignidade será objeto de tutela do Estado, logo a sua definição acaba por definir a proteção do Estado. Tal já se justifica, entre outros fatores, pelo fato de que o reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa pelo Direito resultam justamente de toda uma evolução do pensamento humano a respeito do que significa este ser humano e de que é a compreensão do que é ser pessoa e de quais os valores que lhe são inerentes que acaba por influenciar ou mesmo determinar o modo pelo qual o Direito reconhece e protege esta dignidade.[36]

Tal dificuldade se cuida de um conceito de contornos vagos e imprecisos caracterizado por sua “ambiguidade e porosidade”[37] assim como por sua natureza necessariamente polissêmica. Muito embora tais atributos são possam ser exclusivamente atribuídos à noção de dignidade da pessoa. Uma das principais dificuldades, todavia, reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas sim, de uma qualidade tida para muitos, para a esmagadora maioria, como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade, pelo menos na sua condição jurídico-normativa.[38]

Ainda assim, não restam dúvidas de que a dignidade é algo real, algo vivenciado concretamente por cada ser humano, já que não se verifica qualquer dificuldade em identificar claramente uma situação em que a mesma é agredida, ainda que não seja possível estabelecer uma pauta exaustiva de violações da dignidade. A dignidade está presente em todos os seres humanos. Independente da sua classe social, da sua religião ou do país em que se resida. Como já dizia Edelman: “Se a liberdade é a essência dos direitos do homem, a dignidade é a essência da humanidade”.[39]

Em noticiário de televisão, um repórter entrevistava um cidadão paulistano, morador de bairro da periferia, com aparência bastante humilde e expressão verbal indicativa de grau de instrução, no máximo, semialfabetizado. Aqueles que escrevem o nome, mas não o leem. O homem tentava salvar os miseráveis pertences de sua casa, inundada pelas chuvas torrenciais que acabavam de cair sobre a cidade. O entrevistado residia em imóvel de construção clandestina, em condições precárias, com família numerosa – seis filhos pequenos - todos residentes em um cômodo e cozinha. Diante de um microfone de poderosa emissora, o cidadão sentiu-se fortalecido para clamar às autoridades públicas que dessem aos moradores daquela região melhores condições de vida, que os tratassem com mais dignidade e igualdade com o tratamento garantido aos moradores e bairros ricos, como nos Jardins e no Morumbi.[40]

Saberia, este humilde cidadão, o que significa dignidade? Por seu perfil, ora descrito pode-se afirmar que ele desconhece que o artigo 1º, III, da Constituição Federal da República de 1988. Inaugura a Lei Magna afirmando que o Estado Brasileiro tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. No entanto, a sua indignação dita no noticiário, revelava, indubitalmente, que o conhecia pelo sentir, e não pela razão, o conceito de dignidade a que se referia, fazendo mesmo uma apropriada ilação com igualdade, assim como os filósofos e juristas têm levantado teorias a respeito.

Assim é a dignidade. Presente na vida de todos, por mais que não se saiba de onde surgiu a ideia, de como se difundiu, de como se escreve, enfim. Assim iniciaremos o estudo da dignidade da pessoa humana, compreendendo a sua generalidade e amplitude.

Retomando a ideia nuclear, a qual se fazia presente até mesmo no pensamento clássico, de que a dignidade como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Está, portanto compreendida como qualidade integrante e, em princípio, irrenunciável da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada), já que existe – ou é reconhecida como tal – em cada ser humano como algo que lhe é inerente. Ainda nesta linha de entendimento, houve até mesmo quem afirmasse que a dignidade representa “valor absoluto de cada ser humano, que, não sendo indispensável, é insubstituível”, o que por si só não afasta a eventual relativização da dignidade, notadamente na sua condição jurídico-normativa.[41]

Evidentemente, a dignidade não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida que este a reconhece, já que podemos reconhecer que ela é preexistente e anterior a qualquer especulação.

A dignidade independe das circunstâncias concretas, já que inerente a toda e qualquer pessoa humana, visto que, em princípio, todos, mesmo o maior dos criminosos, são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmos. Assim, mesmo que se possa compreender a dignidade da pessoa humana como forma de comportamento (admitindo-se atos dignos e indignos), ainda assim, exatamente por constituir atributo intrínseco da pessoa humana e expressar seu valor absoluto, é que a dignidade de todas as pessoas, não poderá ser objeto de desconsideração. Aliás, não é outro o entendimento que subjaz ao art. 1º da Declaração Universal da ONU (1948), segundo o qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”, preceito que, de certa forma, revitalizou e universalizou as premissas basilares da doutrina kantiana.[42]

Utilizando-se da doutrina alemã, Günter Dürig, para quem a dignidade da pessoa humana consiste no fato de que “cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacite para, com base em sua própria decisão, torna-se consciente de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que o circunda”.[43]

Assim, à luz do que dispõe a Declaração Universal da ONU, bem como considerando os entendimentos correlacionados em caráter exemplificativo, verifica-se que o elemento nuclear da noção de dignidade da pessoa humana parece continuar sendo reconduzido primordialmente à matriz kantiana, centrando-se, portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa. É a capacidade de cada ser humano de autodeterminar sua conduta, não dependendo da sua efetiva realização no caso da pessoa em concreto, de tal sorte que também o absolutamente incapaz (por exemplo, o portador de deficiência mental) possui exatamente a mesma dignidade que qualquer outro ser humano física e mentalmente capaz.

Mesmo considerando que a dignidade se encontra ligado à condição humana de cada indivíduo, não há como desconsiderar a necessária dimensão comunitária, uma dimensão intersubjetiva desta mesma dignidade de cada pessoa e de todas as pessoas, justamente por serem todos reconhecidos como iguais em dignidade e direitos humanos e sem dúvida, pelo fato de conviverem em sociedade.

Segundo Sarlet[44] além desta dimensão ontológica da dignidade humana (qualidade inerente do ser humano), para a sua melhor compreensão, é necessário sustentar uma dimensão intersubjetiva da dignidade. Partindo da situação básica do ser humano em sua relação com os demais, em vez de fazê-lo em função do homem singular, limitado a sua esfera individual. Importa considerar uma visão de caráter mais “instrumental”, traduzida pela noção de uma igual dignidade de todas as pessoas, não restrita, portanto, à ideia de autonomia individual, mas que parte do pressuposto da necessidade de promoção das condições, de uma contribuição ativa para o reconhecimento e proteção do conjunto de direitos e liberdade indispensáveis ao nosso tempo.

A dignidade implica uma obrigação geral de respeito pela pessoa, traduzida num feixe de deveres e direitos correlativos, de natureza não meramente instrumental, mas sim, relativos a um conjunto de bens indispensáveis ao “florescimento humano”.[45]. Em verdade, a dignidade da pessoa humana, sem prejuízo de sua dimensão ontológica, apenas faz sentido no âmbito da intersubjetividade e da pluralidade. Aliás, também por esta razão é que se impõe o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica. Que deve zelar para que todos recebam igual consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade.

Tais desenvolvimentos em torno da natureza relacional e comunicativa da dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em que acabaram contribuindo, consoante já referido, para a superação de uma concepção eminentemente especista (reducionista e vulnerável) da peculiar e especifica dignidade dos seres humanos, permitem vincular a igual dignidade de todas as pessoas humanas à qualidade comum, a qual permite a todo ser humano se comunicar com todos os demais seres humanos do planeta e estabelecer com eles uma relação moral.[46]

As constatações a respeito da dimensão ontológica e intersubjetiva da dignidade humana, por tratar-se de categoria axiológica aberta, não poderá ser conceituada de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que uma definição dessa natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas. [47] Razão pela qual nos deparamos com um conceito em permanente processo de construção e desenvolvimento. Há que reconhecer que também o conteúdo da noção de dignidade da pessoa humana, na sua condição de conceito jurídico-normativo, a exemplo de tantos outros conceitos de contornos vagos e abertos, reclama uma constante concretização e delimitação pela práxis constitucional.

O conceito é muito mais profundo do que aparenta ser. A dignidade possui um viés cultural, onde a mesma vem sendo fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo, razão pela qual as dimensões natural e cultural da dignidade da pessoa se complementam e interagem mutuamente. O conceito cresce a cada geração. Podemos observar que após a barbárie feita pelos nazistas, a dignidade da pessoa humana ganhou novos contornos. Precisou-se efetivá-la de alguma maneira, pois o Estado não poderia usar a lei para fundamentar seus mandos e desmandos.

Tal situação nos faz remeter a um outro aspecto da dignidade da pessoa humana. Na verdade a um duplo aspecto, a dignidade como limite e como tarefa: a dupla dimensão negativa e prestacional da dignidade.[48] Denota-se a simultaneamente a expressão da autonomia da pessoa humana, bem como da necessidade de sua proteção por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo quando ausente a sua capacidade de autodeterminação.

Dworkin partia do pressuposto de que a dignidade possui “tanto uma voz ativa quanto uma voz passiva e que ambas encontram-se conectadas”[49], de tal sorte que é no valor intrínseco de todo e qualquer ser humano, que encontramos a explicação para o fato de que mesmo aquele que já perdeu a consciência da própria dignidade merece tê-la considerada e respeitada.

É justamente nesse sentido que assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais, condição dúplice esta que também aponta para uma paralela e conexa dimensão defensiva e prestacional da dignidade. Como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida a mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de a dignidade gera direitos fundamentais contra atos que violem ou a exponham a graves ameaças[50]. Como tarefa da previsão constitucional da dignidade da pessoa humana, dela decorrem deveres concretos de tutela por parte dos órgãos estatais, no sentido de proteger a dignidade de todos, assegurando-lhe também por meio de medidas positivas (prestações) o devido respeito e promoção.

Com base no que até agora nos foi exposto, verifica-se que reduzir a uma fórmula abstrata de tudo aquilo que constitui o possível conteúdo da dignidade da pessoa humana não nos parece possível. Apesar disso, impõe-se à busca de uma definição em face da exigência de um certo grau de segurança e estabilidade jurídica, bem como para evitar que a dignidade continue a justificar o seu contrário.

De início, usaremos a fórmula utilizada por Günter Dürig, na Alemanha, para quem a dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingida sempre que a pessoa concreta fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada como uma coisa, sempre que a pessoa venha a ser descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direitos.[51] Podemos observar essa posição negativa em relação à conceituação de dignidade pelo nosso constituinte, no art 5º, inciso III, da Constituição de 1988, onde ele estabelece “ninguém será submetido à tortura, a tratamento desumano ou degradante”. Esta solução é adotada amplamente, mas não poderá oferecer uma solução global para o problema, já que não define previamente o que deve ser protegido, mas permite a verificação, à luz do caso concreto, a existência de uma efetiva violação, fornecendo ao menos o caminho a ser trilhado. A doutrina e a jurisprudência encarregaram-se de identificar uma série de posições que integram a noção de dignidade da pessoa humana, e que reclama a proteção pela ordem jurídica.

É neste contexto, na busca pela concretização que veio a lição de Maria Celina Bodin de Moraes, [52] para quem o substrato material da dignidade decorre de quatro princípios jurídicos fundamentais: o da igualdade (veda toda e qualquer discriminação arbitrária), da liberdade (que assegura a autonomia ética), da integridade física e moral (inclui a garantia de um conjunto de prestações), e da solidariedade (garantia e promoção da coexistência humana). Que tais princípios concretizadores de dignidade, por sua vez, encontram-se vinculados a todo um conjunto de direitos fundamentais.

Verifica-se que a concepção de homem-objeto constitui justamente a antítese da dignidade da pessoa humana. Não podemos abordar aqui apenas o viés negativo, já que assim estaríamos restringindo demasiadamente o âmbito de proteção da dignidade, razão pela qual imperiosa a sua concretização por meio de outros princípios e direitos fundamentais, de natureza negativa e positiva.

Dworkin[53] remete a Kant novamente, ao relembrar que o homem não poder ser tratado como objeto, significa que o mesmo não poderá ser mero instrumento para realização dos fins alheios, destacando que o postulado não diz que nunca se coloque alguém em situação de desvantagem em prol de outrem, mas sim que as pessoas não podem ser tratadas de tal forma que neguem a existência da própria vida. Kant refere expressamente que o Homem constitui um fim em si mesmo e não pode servir “simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”.

Ou seja, não podemos utilizar o ser humano de forma egoística, o disponibilizando, como meio de alcançar determinada finalidade. Não podemos instrumentalizar o outro, coisificá-lo. Podemos utilizar a conceituação de Sarlet[54] que além de vedar a coisificação, a degradação da pessoa por conta da sua fórmula objeto, e buscando reunir a sua perspectiva ontológica e instrumental, destacando a sua face intersubjetiva, junto com a dimensão dúplice de âmbito negativo e positivo. Sendo assim, tem-se por dignidade da pessoa humana:

A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Este é o conceito em que se baseia a nossa sociedade contemporânea. O Estado de Direito atual tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Este princípio serve de suporte doutrinário para a construção dos demais princípios. Todos os ramos do direito hoje se sustentam em tal princípio basilar. O fenômeno da Constitucionalização do Direito tornou-se inevitável frente à reconhecida importância deste princípio. Todos se voltam para a efetivação desta conquista.

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Sobre a autora
Juliana Viera Bernat de Souza

Advogada Pública na Agência Nacional de Saúde Suplementar, formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Juliana Viera Bernat. Poderes investigatórios do Ministério Público: solução ou problema?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4932, 1 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54730. Acesso em: 3 dez. 2024.

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