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Poderes investigatórios do Ministério Público: solução ou problema?

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01/01/2017 às 08:00
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3. O Constitucionalismo no Processo Penal

De acordo com essa “nova”[55] visão do direito constitucional, podemos estabelecer um reflexo direto nos outros ramos do direito. Hoje, falamos em Direito Civil Constitucional, algo inimaginável há pouco, quando o Código Civil ditava as regras privadas, como se fosse uma verdadeira Carta Magna.[56] Os Direitos Processuais foram reformulados a partir de uma óptica constitucional. Essa abordagem constitucional no processo penal foi fundamental para dar efetividade às garantias constitucionais.

Encontra-se na Constituição uma diversidade de normas que, direta ou indiretamente, interessam ao processo penal. O fato de o país ser um Estado Democrático do Direito assentado no valor da dignidade humana, extrai-se algumas regras básicas de como o processo penal deve ser construído e atuado.[57] Em seu art.5º, a constituição dispõe sobre vários dispositivos que se referem ao aspecto criminal. Alguns deles podem ser aplicados desde a noticia criminal, que levará à investigação e apuração do fato, seja através do inquérito policial, seja através de outra forma, como simples procedimento informativo e investigatório.[58]

A idéia de garantismo brota da Constituição, da noção de garantia substancial que dela emerge. É importante destacar que o garantismo não tem nenhuma relação com o mero legalismo, formalismo ou mero processualismo. E, muito menos, com defesa da impunidade, como querem fazer crer alguns manipuladores.[59] Consiste na tutela dos direitos fundamentais, os quais representam os valores, os bens e os interesses da sociedade. O direito existe para tutelar os direitos fundamentais. O juiz assume uma nova posição no Estado Democrático de Direito, e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição contrária à opinião da maioria.[60] Deve tutelar o indivíduo e reparar as injustiças cometidas e absolver quando não existirem provas plenas, porque isso é uma garantia constitucional do mesmo.

Uma grande contribuição da visão constitucional no processo penal brasileiro foi em torno da justa causa. De acordo com o Juiz de Direito, Luis Gustavo Grandinetti[61], a legislação pouco tratou sobre o tema, não dando a devida importância. Segundo o referido autor, apenas três dispositivos processuais-penais brasileiros cogitam da justa causa[62], nenhum deles, contudo, permitem inferir qual o conceito, o sentido e o alcance imaginados pelos respectivos legisladores.

E, aí que a doutrina e a jurisprudência ganham relevo. Diante deste contexto, nada mais razoável que a discussão travada em torno da justa causa ganhe contornos constitucionais. A visão constitucional estabeleceu um alcance do instituto bem maior do que ocorria tradicionalmente.[63] Caminhamos da falta de um conceito legal, para erigi-la a uma garantia constitucional.

3.1) Função Garantista da Investigação Criminal: Justa Causa.

Segundo Maria Theresa Rocha Assis, o emprego da expressão “justa causa”, no Direito brasileiro está intimamente ligado ao habeas corpus, que foi introduzido em nosso país pelo Código Criminal do Império, em 1830.[64] Segundo consta em seu livro, o Código do Processo Criminal de Primeira Instância, de 1832, tratou da ordem do habeas corpus no Título VI, nos arts. 340 a 355, e dispôs no art.353, I, ser ilegal a prisão “quando não houver uma justa causa para ela”. Assim, a ausência de justa causa para a prisão possibilitava, dentre outras hipóteses, a concessão da ordem.

O Código de Processo Criminal, no art. 340, só se referiu à “prisão ou constrangimento ilegal”, razão pela qual a compreensão que se deu ao habeas corpus, na época do império, foi bastante restrita. [65] A visão que se tinha, era que o habeas corpus se referia apenas à prisão corporal, a física, logo, o habeas corpus era apenas liberatório. Já Pimenta Bueno[66], dizia que a garantia do habeas corpus era conferida não apenas contra prisão arbitrária, mas contra todo constrangimento ilegal, proviesse ele de detenção injusta, ou de ser ela verificada em lugar ilegítimo, em cárcere privado, ou resultasse de uma exigência forçada ou opressão que comprimisse individualmente a liberdade do cidadão.

Segundo Maria Thereza Rocha de Assis Moura, àquele tempo poucos foram os autores que analisaram de forma mais detida a questão da justa causa. Para Pimenta de Bueno, o código incluiu “não só a criminalidade do fato, como a falta de prova, não-identidade de pessoa e detenção indevida em uma prisão”.[67] E ainda, Joaquim de Oliveira Machado, foi o precursor do entendimento segundo o qual a justa causa não pode ser definida.[68] Manifestou-se no seguinte sentido: “Justa Causa não pode ser definida em absoluto. Depende de inteligente e escrupulosa apreciação do juiz que, aquilatando os motivos ocasionais determinantes da prisão, qualificará a justiça ou injustiça da causa para declarar legal ou não o constrangimento corporal ou ameaça. É impossível capitular antecipadamente a causa justa, assim como onde está a legítima defesa, ou onde principia o excesso. Tudo depende das circunstancias ocorrentes, e do estudo que sobre elas se faz o juiz”.

Para o autor, a justa causa não poderia ser definida, mas apenas casuisticamente. Segundo a sua brilhante posição, “somente a acurada análise dos fatos sob todos os pontos de vista pode ministrar ao juiz a convicção da justiça ou injustiça da prisão, a fim de ser pronunciada sua legalidade ou ilegalidade”.[69] De acordo com a lição de Maria Thereza, a estreita relação que se estabeleceu, a partir do Código de Processo Criminal de Primeira Instância, entre justa causa e legalidade da prisão, foi sendo, ainda na época do império, pouco a pouco alargada, tendo a jurisprudência exercido papel marcante para as modificações legislativas introduzidas.[70]

Assim como abordamos no capítulo a respeito do princípio da dignidade da pessoa humana, para uma real e efetiva proteção do Estado, é preciso que se defina o que seja justa causa. De acordo com a doutrina majoritária, justa causa, abrange em regra, um conteúdo similar, consistente no mínimo de provas necessárias para a propositura da ação penal.[71] Para melhor desenvolvimento, seguem algumas definições.

José Barcelos de Souza sustenta que:

 Em seu sentido estrito, como o próprio nome indica, a justa causa diz respeito à causa de prisão ou à causa de pedir, isto é, motivação do fato para o pedido de aplicação da lei penal, justa no caso concreto. (...) Em seu sentido amplo, a expressão ‘falta de justa causa’ tem servido, pois, de nome-ônibus para indicar ilegalidade na instauração do processo.[72]

Nas palavras de José Frederico Marques, autor do ante projeto do Código Penal que previa de modo expresso a ausência de justa causa como fundamento da denúncia, “o interesse de agir é a relação entre a situação antijurídica denunciada e a tutela jurisdicional requerida. Disto resulta que somente há interesse quando se pede uma providência jurisdicional adequada à situação concreta a ser decidida”.[73]Para Frederico Marques, ausente o interesse de agir, falta justa causa para a propositura da ação penal. Devia então, o juiz rejeitar a denúncia, baseando-se no antigo art. 43, III, do CPP.

Seguindo a posição de Frederico Marques, hoje, temos Tourinho Filho. O brilhante doutrinador ao ensinar em sua obra, diz que o interesse de agir, como condição para o regular exercício da ação penal, deve ser entendido como legítimo interesse. Para Tourinho filho, somente haverá legítimo interesse quando houver fumus boni iuris a sustentar a acusação formulada, quando houver “fundamento razoável” para o exercício do direito de ação penal. Segundo suas lições, para a propositura da ação penal, “não basta simples ‘denúncia’, ou simples ‘queixa’, narrando o fato criminoso e dizendo quem foi o autor. É preciso que haja elementos de convicção, suporte probatório mínimo à acusação, a fim de o pedido cristalizado na peça acusatória possa ser digno de apreciação”.[74] O autor não faz uso da expressão justa causa, mas a sua explanação coaduna-se com o que é denominado pela maioria dos demais autores, justa causa.

Similar lição é trazida por Paula Bajer Fernandes, que sustenta ser “justa causa o fundamento fático e jurídico, demonstrado na peca acusatória e verificável no inquérito policial ou em pecas de informação. A justa causa é o justo motivo para a instauração da ação penal, o que não significa, em absoluto, qualquer antecipação da condenação”.[75]

Encerrando a conceituação da expressão, nos utilizaremos da lição do promotor  Afrânio Silva Jardim, onde para ele justa causa é “o suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação”, ou seja, um início de prova acerca da autoria e da materialidade do delito a permitir a propositura de ação penal, sem que esteja presente o constrangimento ilegal ao denunciado.[76]

Como se vê, a doutrina basicamente se inclina para o fato de ser justa causa, o fumus boni iuris necessário à propositura da denúncia ou da queixa, ou seja, suporte probatório que evidencie a presença de indícios de autoria e materialidade do delito. Apurou-se com isso, que inexiste na doutrina mediata vinculação entre a justa causa e os princípios constitucionais encartados na Carta Brasileira.[77]

A jurisprudência se divide. Temos duas posições antagônicas. O STJ adota uma posição mais formalista, no sentido de ser impossível, para a verificação da justa causa, o exame da prova. Baseia-se tal posição no entendimento de que, para investigar-se a presença da justa causa, deveria ser necessariamente realizado um exame aprofundado das provas, o que viria a ferir, inclusive, o princípio da ampla defesa, eis que, dependendo da fase processual, impediria a realização regular do contraditório.[78] Defende-se aqui que o exame da prova não pode ser aprofundado.

Já seguindo o posicionamento do STF, temos que para a apuração da existência da justa causa, deve o juiz, necessariamente, analisar os documentos que instruem a ação penal, pois esses seriam indispensáveis para o oferecimento da denúncia, e a ausência deles teria o condão de tornar sem sustentação a materialidade e autoria descritas na inicial. Segundo este posicionamento, o procedimento de verificação da justa causa somente pode ser realizado através de um processo lógico de exame das provas que instruem a inicial.[79] Aqui deve ser empregada na verificação da presença da justa causa a profundidade demandada pela complexidade do caso, o exame da prova seria amplo quanto ao aspecto da legalidade.

Percebe-se com isso, que se reluta em dar à justa causa a abrangência que parte da doutrina lhe atribui, a de efetivo filtro a ser utilizado para impedir a propositura de ações penais que não estejam fundadas em elementos de prova que permitam afirmar, de fato, ser legal o constrangimento trazido ao indivíduo pela propositura de ação penal em seu desfavor. Verificamos a falta, inclusive na jurisprudência, da incorporação dos princípios constitucionais no tema da justa causa.[80]

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Para que se faça uma integração com os princípios constitucionais, é preciso que se adote, de acordo com esta nova concepção constitucional, uma real interpretação dos institutos à luz da Constituição.

Os nossos juristas, em sua grande maioria, encontram-se fundamentados no chamado sentido comum teórico, consistente, em síntese, na existência de pré-juízos e idéias pré-concebidas que estagnam as possibilidades interpretativas e de crítica ao direito. Uma bela frase do doutrinador, Luis Gustavo Grandinetti em muito elucida o assunto: “O conformismo dos operadores do direito limitam suas formas de interpretação”. Tal imobilismo exegético encontra-se em sua maioria, por conveniência acadêmica ou por comodidade intelectual, permanecendo inertes, ignorando o papel doa agentes transformadores da ordem social.[81]

Segundo Luis Lênio Streck:

 O sentido comum teórico sufoca as possibilidades interpretativas. Quando submetido à pressão do novo, (re)age institucionalizando a crítica. Para Tanto, abre possibilidade de dissidências apenas possíveis (delimitadas previamente). Ou seja, no interior do sentido comum teórico, permite-se, difusamente, (tão somente) o debate periférico mediante a elaboração de respostas que não ultrapassam o teto hermenêutico fixado (horizonte do sentido).[82]

Logo, cabe aos juristas, no exercício do dogmatismo[83], uma tomada de posição crítica quanto ao real conteúdo das normas, jamais se desvencilhando do princípio democrático, não para buscar a qualquer custo a idéia individualista de segurança e estabilidade jurídica, senão para adequar a realidade social aos princípios de ordem constitucional de modo a efetivá-la em sua plenitude, despojando-se, outrossim, de idéias e noções preconcebidas e preconceituosas, que amesquinham o real alcance das normas.[84]

Temos, portanto que parte da doutrina, comprometida com a crítica do direito, redimensionou-se para, em sintonia com a realidade social, buscar seus fundamentos não mais nos códigos de concepção liberal-individualista e sim nos princípios constitucionais. O modelo democrático de Estado exige que a dogmática jurídica se paute na realidade social, tendo-a como a primeira referência para a interpretação das normas. Esse é o primeiro passo para adequarmos nossas normas infraconstitucionais à nova constituição. É abandonar a visão patrimonial-individualista, e partir para uma interpretação conforme a constituição.

Conclui-se que a interpretação do direito deve ser feita sempre de acordo com a cláusula implícita da vontade geral fundadora do Estado Democrático de Direito, cabendo, para isso, ao Judiciário, no resguardo da justiça democrática, a explicitação do contrato social na sua atividade interpretava.[85]Junto a essa idéia de Estado Democrático garantista, ganha relevo a importância da noção de “bem jurídico”.

 Inserida no Direito Penal como indicadora dos valores sociais a serem protegidos pelas normas penais incriminadoras, a idéia de “bens jurídicos” também se encontra vinculada à concepção democrática assumida pela Constituição Federal de 1988.[86] Vemos que esta constitucionalização dos bens penais, também impõe o reconhecimento do Direito Penal como ultima ratio, ou seja, a última medida para tutela de tais bens jurídicos, a última fronteira para o agir punitivo do Estado. O Direito Penal visa a tutelar os interesses mais importantes da sociedade.[87]

É justamente nesse contexto de constitucionalização dos bens jurídicos penais que se propõe encontrar mais uma referência para o conceito de justa causa: se a tipicidade penal não prescinde de uma análise de necessidade e proporcionalidade em relação à sanção penal, o direito de ação também não pode prescindir da mesma análise em relação não só à sanção penal, mas à própria justificativa de submeter-se alguém a um processo penal. Há, pois, de forma induvidosa, estreita vinculação entre o que se deve entender por justa causa e a preservação do status dignitatis do indiciado, do mesmo modo que deve haver vinculação entre os bens jurídicos penais e princípio da dignidade da pessoa humana.[88]

Essa é a vinculação que se deve fazer. Justa causa com os princípios constitucionais. Atualmente, é imprescindível que vinculemos diretamente dois princípios à justa causa: princípio da presunção de inocência e dignidade da pessoa humana.

Porém, essa tarefa de buscar uma acepção constitucional para a justa causa não é tão simples. Segundo Maria Thereza Rocha de Assis, devemos impor um alcance da justa causa como ocorrem nos demais ramos do direito. A justa causa vista como amparo, ou proteção contra o abuso do direito, está presente também e de modo significativo no processo penal.[89] Afirma-se ainda que até hoje não se precisou bem o conceito processual penal de ‘justa causa’. A ambigüidade acarreta discussões. Temos uma concepção para justa causa para a prisão, para a ação penal e para a condenação tão controvertida na doutrina como na jurisprudência.

Podemos separar as definições em duas: causa legal e causa razoável. Como visto em todos os conceitos aqui anteriormente citados. Causa legal, aquela que teria tipicidade, e razoável que guarda a mesma imprecisão residente no conceito do que é justo, até porque os conceitos encontram-se vinculados. Ocorre que essa nova valorativa das normas jurídicas, em consonância com o principio da dignidade da pessoa humana, indica uma concepção material dessa causa legal.[90]

Temos aí, uma instituição protegida pela constituição. E essa garantia não pode deixar de ser a protegida. O fato de ser uma garantia institucional quer dizer que se reconhece a sua fundamental importância para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional. Segundo Bonavides, por instituições teríamos a propriedade, família e outras instituições protegidas como realidades sociais objetivas.[91]

Com tal assertiva, podemos concluir que, apesar da existência das garantias institucionais, estas estão vinculadas aos direitos fundamentais, e, por uma questão de opção política devem se submeter à concepção democrática.[92] Conclui-se, portanto, que, nesses termos, a justa causa tem uma dupla dimensão, de direito fundamental e institucional, eis que os tipos penais protegem institutos jurídicos, devendo a ponderação das referidas dimensões ser analisada à luz do princípio democrático da dignidade da pessoa humana, caso tenhamos um eventual embate.

Com isso, pretende-se sugerir que a justa causa não se limite apenas a um suporte probatório mínimo, ou que se restrinja ao conceito de interesse de agir, ou ainda a presença de tipicidade. Ela é tudo isso e ainda mais. Segundo Grandinetti, a justa causa é uma cláusula de encerramento, que concretiza, no âmbito processual penal, os preceitos constitucionais da dignidade, da proporcionalidade, além de exercer as outras funções já aqui mencionadas. A justa causa concretiza a legitimidade de submeter alguém a um processo criminal sob todas as perspectivas exigidas pela ordem constitucional.[93]

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Sobre a autora
Juliana Viera Bernat de Souza

Advogada Pública na Agência Nacional de Saúde Suplementar, formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Juliana Viera Bernat. Poderes investigatórios do Ministério Público: solução ou problema?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4932, 1 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54730. Acesso em: 8 mai. 2024.

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