Atualmente nosso ordenamento jurídico reconhece de forma pacífica o Estado como sujeito responsável pelos seus atos. Trata-se dos casos de responsabilidade objetiva, tendo como consequência desse reconhecimento o dever de ressarcir as vítimas dos danos causados em razão de sua atuação. Contudo, para que se chegasse a este status quo, houve uma extensa e lenta evolução, onde o Direito Francês, através da construção pretoriana do Conselho do Estado, foi o grande responsável por essa transformação.
Sabe-se que durante o Estado absolutista vigorava o princípio da irresponsabilidade, onde a responsabilização pecuniária Estatal era considerada um percalço arriscado à execução dos serviços. Nesta época, fomentava-se as expressões conhecidas até o dia de hoje como: “O que agrada o príncipe tem força de lei”, o “Estado sou eu”, etc.
Surge, portanto, devido a crescente presença que o Poder Público vem adquirindo ao longo dos anos nas relações em sociedade (individuais ou coletivas), interferindo cada vez mais, a consequência lógica do dever do Estado de responder por seus atos, consequência esta que atualmente o Brasil está vivendo.
O país passa por um momento delicado, vive-se um verdadeiro caos no sistema penitenciário que há tempos fugiu do controle do Estado. Há dentro dos presídios brasileiros a instalação do pânico e fomento do crime organizado, como bem se observou nas chacinas que ocorreram em Manaus e Boa Vista.
Nesse ínterim, após as chacinas ocorridas surgiu a necessidade e o dever do Estado de indenizar os familiares de presos que foram vítimas do sistema penitenciário e suas mazelas, entretanto tais indenizações provocaram a ira da sociedade e trouxeram à tona questionamentos e indignações sobre o dever do Estado de indenizar.
Para melhor compreensão, necessário se faz trazer à baila os ensinamentos de Sergio Cavalieri Filho, que afirma:
“risco e segurança andam juntos, são fatores que atuam reciprocamente na vida moderna, cuja atividade primordial é driblar riscos.
Onde há riscos, tem que haver segurança; há intima relação com esses dois fatores, como vasos comunicantes. Quanto maior o risco, maior o dever de segurança. Se o causador do dano pode legitimamente exercer uma atividade perigosa, a vítima tem o direito (subjetivo) à incolumidade física e patrimonial, decorrendo daí o dever de segurança. Com efeito, existe um direito subjetivo de segurança, cuja violação justifica a obrigação de reparar sem nenhum exame psíquico ou mental, sem apreciação moral da conduta do autor do dano”.
Noutras palavras, o preso no sistema penitenciário brasileiro corre enormes riscos, seja de morte, de doenças, e embora uma parcela da sociedade não concorde, cabe ao Estado proporcionar segurança ao indivíduo que está sob sua custódia, sendo primordial lhe fornecer o mínimo aceitável de dignidade, cuidado e zelo por sua segurança da melhor forma possível, e se de alguma forma não tiver condições de lhe oferecer segurança, tal serviço não deveria ser fornecido, pois se o Estado como causador do dano pode legitimamente exercer uma atividade perigosa, a vítima, bem como sua família tem o direito à incolumidade física e patrimonial, decorrendo daí o dever de segurança.
A violação do dever de segurança justifica a obrigação de reparar sem nenhuma apreciação moral da conduta do autor do dano.
Independente dos anseios da sociedade quando um preso morre em um presídio há a violação do dever de segurança por parte do Estado. Onde há risco deve haver segurança e quanto maior for o risco, maior deve ser a segurança.
O dever de indenizar do Estado em nenhum momento está atrelado a conduta social do indivíduo, a sua personalidade, ao seu comportamento, ao grau de reprovação do crime praticado. O que se tem aqui é a responsabilidade objetiva do Poder Público ao exercer uma atividade perigosa, qual seja, zelar pela vida de indivíduos marginalizados, e ao se propor fornecer esse serviço público não pode causar dano a ninguém, sob pena de responder independente de culpa. Deste modo, aplica-se o ordenamento jurídico que fornece ao Estado a autotutela, mas também cobra dele a proteção dos indivíduos que estão sob sua custódia.
Em consonância com o referido dispositivo, o Código Civil Brasileiro, tutela a indenização por perdas e danos na ação ou omissão que causar dano a outem.
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
A atuação estatal é imposta à sociedade que não tem como recusar sua presença e tampouco afastar sua ação, uma vez que a Administração age de forma imperativa. Assim, considerando que os indivíduos são obrigados a aceitar e suportar o que lhe é imposto, nada mais correto e justo para esse cidadão, ter ressarcido eventuais danos, responsabilizando o Estado com maior severidade por suas ações/omissões.
É bem verdade que a sensação de insegurança é reinante na nossa sociedade e que houve o surgimento de uma classe denominada “sujeitos passivos” dos atuais distúrbios sociais com a evidente e clara identificação de grande parte da sociedade com a vítima da infração penal, e ainda, nasceu na sociedade a manifesta perda de confiança em outras instâncias de proteção que trazem ao indivíduo a convicção de abandono.
E o que se tem visto são indivíduos inconformados com esse momento que o país passa, e em conjunto com alguns formadores de opinião, utilizam desse anseio por mudança para fomentar essa sensação de abandono, desvirtuando situações que são corretas, que são condizentes com o Estado Democrático de Direito e que são funções do Estado como sujeito dotado de direitos e deveres.
A realidade do sistema penitenciário brasileiro é deplorável, e infelizmente os poderes legislativos, executivo e judiciário tem contribuído veementemente para que essa situação se agrave, seja por sua omissão ou por sua ação.
Diante dessa calamidade vivida nas carceragens brasileiras, os estudiosos e atuantes do Direito Penal tem defendido o reconhecimento do caráter subsidiário do Direito Penal, o qual deveria cuidar das infrações mais graves, deixando as condutas agressoras mais leves para outros ramos do direito e ao mesmo tempo, lutam pelo reconhecimento do caráter fragmentário do Direito Repressivo, na compreensão de que nem toda conduta tida como infratora da lei constitui um ilícito penal e deve levar um indivíduo ao encarceramento. Afinal, entende-se que cada vez mais a pena imposta não tem caráter ressocializador, pelo contrário, transforma o indivíduo em um ser muito pior.
A realidade carcerária hoje fabrica indivíduos cruéis, insere o indivíduo no crime organizado e enquanto isso nossos representantes criam cada vez mais crimes, como se o indivíduo inserido numa cela tivesse a oportunidade/escolha de não adentrar no âmago do crime organizado, uma vez que ao adentrar em uma penitenciária sua primeira escolha deverá sem qual facção criminosa deseja participar.
O que vemos é que o Estado Legislador, no afã de dar uma resposta à sociedade a qualquer custo, pressionado pela mídia e imbuído de um espírito encarcerador, edita leis extravagantes que, na contramão da Constituição Federal, tenta suprimir garantias individuais e processuais ao cidadão que está sendo processado.
Não se pode prescindir das garantias individuais e processuais, até mesmo para legitimá-lo (Estado) como instrumento hábil a enfrentar a criminalidade em suas variadas nuances. Não se pode admitir a irresponsabilidade da Administração para as barbáries do sistema penitenciário do Brasil. Admitir tal irresponsabilidade é a própria negação do direito, isso seria um retrocesso.
O Estado Democrático de Direito também se submete à lei, também possui direitos e deveres de arcar com o que lhe cabe. Não é porque não fornece um sistema único de saúde decente, uma educação de qualidade, que se deve menosprezar a família do preso, que não se deve ajudar ou mudar a realidade de sujeitos que com culpa ou sem culpa estão sob os cuidados do Estado.
A responsabilidade do Poder Público é consequência lógica, pois como ente dotado de personalidade, com obrigação e deveres, simplesmente inexistem motivos que justifiquem tamanha irresponsabilidade da Administração ou a isentem de culpa.
A Constituição de 1988, como expressão de Estado Democrático de Direito, estabelece como fundamento primordial a dignidade da pessoa humana, a qual, muito mais que um imperativo constitucional, traduz-se em princípio regente do ordenamento jurídico e tal princípio não pode ser menosprezado ou relevado. O que se questiona é o fato do Estado como guardião de Direito que é, deixar ao desamparo o cidadão ou a família que sofreu danos irremediáveis por ato do próprio Poder Público.
A sociedade que sofre há anos com o descaso dos governantes, argumenta que o preso está nessas condições por ter cometido um crime e por isso qualquer dano que lhe sobrevier não será injusto. Será esse o pensamento correto? Não estaria a sociedade repassando suas decepções em indivíduos (presos e suas famílias) tão vítimas das mazelas do Estado quanto ela?
É cediço que ocorrência de um dano, não gera por si só o dever de indenizar, a responsabilidade surge a partir do momento que o dano for injusto ou se o autor violou de alguma forma um dever jurídico.
O que para a sociedade parece ser boa notícia, como o aumento significativo da população carcerária brasileira, o caos instalado nos presídios, a cultura do encarceramento, na realidade não são motivos de festa. Na verdade, deveríamos estar vivendo dias de luto.
O fantasma da cadeia como punição não tem conseguido conter os criminosos, na verdade os têm qualificado. A sociedade, os poderes executivo, legislativo e judiciário estão defendendo o superencarceramento no Brasil e isso é preocupante. Prendemos muito e prendemos mal, prendemos errado.
Temos a consciência da ira da sociedade, também entendemos que o sistema é um sumidouro de verbas públicas. A despesa média com cada preso é exorbitante, os gastos não são suficientes, vemos a superlotação das cadeias e, infelizmente, aplaudimos um ciclo vicioso que se formou sem o Estado nada fazer a respeito.
O que não se tem observado é que as cadeias brasileiras estão superlotadas, sem controle do poder público e entregues ao domínio do crime organizado, não restando dúvidas para nós, como atuantes do direito, que dali ninguém sai melhor, só é possível piorar.
A cultura do encarceramento, tem sido a causa dos problemas mais sérios do Poder Judiciário. Temos levantado a bandeira que prender deveria ser exceção, não regra, justamente pelo fato do nosso sistema estar falido, não existindo nenhuma possibilidade de ressocialização.
Torna-se essencial começarmos uma conscientização da necessidade de adotarmos cada vez mais as penas alternativas, para que os indivíduos que ainda não foram absorvidos pelo crime organizados nos presídios tenham pelo menos a oportunidade de se tornar um cidadão de bem. (Mas não só isso! Sem o adequado investimento no sistema carcerário o caos persiste!)
O papel da mídia como formadora de opinião no tratamento da criminalidade dispensado por governos, tribunais e parlamentares tem sido cada vez mais desastroso.
A cultura do medo disseminada por alguns meios de comunicação, a distorção dos fatos, o repasse de que o governo indeniza família ao invés de investir em saúde ou educação ou qualquer área que esteja defasada, tem sido apenas um dos obstáculos à calamidade que o sistema penitenciário tem vivido. Como esclareceu de forma acertada Eugenio Raúl Zaffaroni em uma entrevista, o mundo moderno no fundo gosta da situação. As sociedades atuais são excludentes e precisam se livrar dos indesejados. Sistema prisional que não recupera ninguém e parece um matadouro ou uma universidade do crime seria o bueiro perfeito. As elites políticas e econômicas não sujam as mãos. “Quanto mais se matem os pobres, melhor. Esse é o programa das sociedades excludentes”.
Com a devida vênia, aos que acham absurdas essas indenizações aos familiares dos 60 presos mortos nessas rebeliões, defendemos que o Estado ao ressarcir essas famílias apenas irá assinar sua incompetência e falta de eficiência em fornecer serviço aquém do necessário. Nada mais justo do que indenizar pela sua irresponsabilidade ao não arcar de forma apropriada com seu dever de segurança.
A dignidade no trato enquanto ser humano é um direito inerente a todos os indivíduos, os problemas estão aí, surgem a todo estante e se tornam cada vez maiores, existem as ideias do que possa ser feito para que possa ser transformada a situação, as leis estão à disposição de todos. Mas não basta apenas normas formais, se elas não são executadas como devem. É necessário colocar em prática de maneira efetiva as normas existentes em nosso ordenamento, principalmente a Lei de Execuções Penais, que aborda de forma excepcional o assunto. A situação nos presídios brasileiros é caótica e não atende às finalidades essenciais da pena, quais sejam, punir e recuperar. É imprescindível que sejam implementadas políticas públicas voltadas para a organização, o preparo e manejo desse sistema e assim promover uma melhor efetivação da Lei de Execução Penal.
REFEFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13 ed. Ver. e atual. SP: Editora Malheiros, 2003.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 11 ed. – São Paulo: Atlas, 2014.
MARINELA. Fernanda. Direito Administrativo. 7ª ed. – Niterói: Impetus, 2013.
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Se cadeia resolvesse, o Brasil seria exemplar. por André Barrocal. Reportagem publicada originalmente na edição 838 de CartaCapital, com o título "Se cadeia resolvesse..." Disponível em:< http://www.cartacapital.com.br/>
Maysa Silva Oliveira, advogada, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito/SP.
Pedro Henrique Holanda Aguiar Filho, advogado, especialista em Direito Civil com ênfase em contrato e responsabilidade civil.