A necessidade (ou não) do efetivo prejuízo ao Erário para o ressarcimento nos casos de afastamento indevido de licitação: a figura do dano in re ipsa

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31/01/2017 às 00:44
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A necessidade de comprovação do dano patrimonial para os atos de improbidade administrativa consistentes em dispensas de licitação.

RESUMO

O tema que se pretende desenvolver é a figura do dano in re ipsa no ato de improbidade administrativa consistente no afastamento indevido de licitação, gerando o consequente ressarcimento aos cofres públicos, ainda que não tenha havido prejuízo ao Erário. O assunto ganha relevo por conta da existência dentro do próprio Superior Tribunal de Justiça – STJ – de divergência, o que vem causando insegurança jurídica para a coletividade, visto que os jurisdicionados necessitam ter a certeza e a garantia se tal ato praticado no mundo da vida possui como consequência o ressarcimento patrimonial aos cofres públicos dos valores auferidos. Para compreender a questão, far-se-á uma excursão pelo instituto da improbidade administrativa, pelas hipóteses de afastamento indevido de licitação, o atual entendimento da doutrina e dos tribunais sobre o tema. Por fim, será feita uma proposta de compreensão da questão, de modo que promova a equalização dos interesses (muitas vezes divergente) envolvidos, quais sejam: a tutela da moralidade administrativa e o direito de propriedade dos administrados.

Palavras-chave: Direito Administrativo. Improbidade Administrativa. Licitações.

SUMMARY

The subject to be developed is the figure of damage in re ipsa in the act of administrative improbity consisting in the undue removal of the bidding, generating the consequent reimbursement to the public coffers, although there was no loss to the Treasury. The issue is highlighted because of the existence within the Superior Court of Justice (STJ) itself of divergence, which has been causing legal uncertainty for the community, since the jurisdictions need to have the certainty and the guarantee if such an act practiced in the world of life Has as a consequence the reimbursement of assets to the public coffers of the amounts earned. In order to understand the question, an excursion will be made by the institute of administrative improbity, by the hypotheses of undue withdrawal of bidding, the current understanding of doctrine and of the courts on the subject. Finally, a proposal will be made to understand the issue, so as to promote the equalization of the (often divergent) interests involved, namely: the protection of administrative morality and the property rights of the administrators.

Keywords: Administrative Law. Administrative dishonesty. Bidding.

O tema que se pretende desenvolver é a figura do dano in re ipsa[2] no ato de improbidade administrativa nos casos de afastamento indevido de licitação[3], gerando o consequente ressarcimento aos cofres públicos, ainda que não tenha havido efetivo prejuízo patrimonial ao Erário.

O assunto ganha relevo por conta da existência dentro do próprio Superior Tribunal de Justiça – STJ – de divergência, o que vem causando insegurança jurídica para a coletividade, visto que os jurisdicionados necessitam de certeza e previsibilidade para as suas vidas.

Para compreender a questão, far-se-á uma excursão pelo instituto da improbidade administrativa, pelas hipóteses de afastamento indevido de licitação, bem como o atual entendimento da doutrina e dos tribunais. Por fim, será feita uma proposta de compreensão do assunto de modo que haja a equalização dos interesses envolvidos (muitas vezes divergentes), quais sejam: a tutela da moralidade administrativa e o direito de propriedade dos administrados.

Basicamente o que se questiona no presente artigo é se no ato de improbidade administrativa, consistente no afastamento indevido de licitação, o dano é presumido (vale dizer in re ipsa)? Além disso, em se reconhecendo a presunção do dano, o ressarcimento do prejuízo aos cofres públicos é consequência natural e inevitável, mesmo que não tenha efetivo prejuízo patrimonial aos cofres públicos?

Destaque-se, ainda, que não serão analisados todos os tipos de improbidade administrativa, visto não ser o escopo do presente estudo, mas somente aqueles relacionados ao afastamento indevido de licitação (como o art. 10, VIII, da Lei n º 8.429/92).

1. Os atos de improbidade administrativa e o afastamento indevido de licitação

Ainda que na prática cotidiana não se verifique, no âmbito normativo, a Constituição da República de 1988 preocupa-se em combater a corrupção, punindo severamente tais atos. Seu art. 37, caput, afirma textualmente que a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Por “princípio jurídico”, Lucia Valle Figueiredo nos ensina que são: “[...] normas gerais, abstratas, não necessariamente positivadas expressamente, porém às quais todo ordenamento jurídico, que se construa, com a finalidade de ser um Estado Democrático de Direito, em sentido material deve respeito”.[4]

Anote-se que princípios são espécies de normas jurídicas, assim como as regras. Estas últimas possuem densidade normativa mais concreta, valendo-se da dinâmica do “tudo ou nada”, como por exemplo um dispositivo legal que prevê prazo para o exercício de um direito; inobservado o prazo legal, tal direito não poderá ser exercido. Por outro lado, os princípios jurídicos operam com lógica mais elástica. Explique-se: podem numa determinada hipótese ser aplicáveis, mas em outra não. Representam um mandado de otimização, aplicando-se o quanto mais possível. Vejamos o caso da liberdade de expressão, em algumas hipóteses pode incidir sobre uma situação concreta, mas em outras pode ser afastada pela prevalência de diverso princípio constitucional, como o direito à intimidade, a depender das peculiaridades em apreço.[5]

Por certo que, violada a norma jurídica (seja regra ou princípio) há grandes chances de estarmos diante de um ato de improbidade. Digo “grandes chances” porque a improbidade administrativa não representa a simples ilegalidade, mas necessita da má-fé para a sua caraterização[6]. A ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta antijurídica fere princípios constitucionais da Administração Pública pela má-fé do agente administrativo[7].

De maneira lacônica a Constituição da República tratou dos atos de improbidade, apenas prevendo suas consequências jurídicas, mas não descreveu as condutas tidas como improbadas, tal tarefa coube ao legislador infraconstitucional. Assim, dispõe a Carta Magna no seu art. 37, § 4º:

“Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”

Coube ao legislador infraconstitucional regulamentar a matéria, estabelecendo quais são os atos de improbidade administrativa através da Lei n º 8.429/92, que nos seus art. 9º, 10, 10-A e 11 classificou, respectivamente, os atos de improbidade em quatro categorias: (i) atos de improbidade administrativa que importam enriquecimento ilícito, (ii) atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário, (iii) atos de improbidade administrativa decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário e (iv) atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública.

Frise-se, também, que os tipos de improbidade administrativa apresentam a mesma técnica redacional, isto é, uma conceituação aberta e exemplificativa em seus incisos (com a utilização da palavra “notadamente”).[8]

Além disso, pela leitura do texto constitucional, bem como o disposto no art. 12, da Lei n º 8.429/92, verifica-se que as consequências da prática de tais atos são: a perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário.

Ademais, no âmbito do presente estudo, a Lei n º 8.429/92, em seu art. 20, II, afirma categoricamente que as sanções nela previstas independem de efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público, salvo quanto à pena de ressarcimento (como o caso de uma dispensa indevida de licitação, qualificada pela má-fé do gestor público, em que os preços estão abaixo do valor de mercado). Por outro lado, há situações em que o prejuízo ao patrimônio público é evidente, como a hipótese em que há uma dispensa de licitação indevida e os itens fornecidos possuem um valor acima de mercado ou até mesmo, numa hipótese mais grave, não houve efetiva prestação do serviço, embora pago o preço.

Ainda que não seja o escopo do presente estudo, vale, por sua relevância, destacar que o Supremo Tribunal Federal – STF – recentemente decidiu no julgamento do Recurso Extraordinário nº 669.069 que é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil, mas manteve o entendimento da imprescritibilidade do ressarcimento dos danos causados por atos de improbidade administrativa.[9]

Destarte, é preciso destacar que o objeto do presente texto é a espécie de improbidade administrativa consistente no afastamento indevido de licitação, que se encontra regulamentada expressamente no seguinte dispositivo da citada lei ordinária:

“Seção II

Dos Atos de Improbidade Administrativa que Causam Prejuízo ao Erário

        Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

(...)

VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente;”

Percebe-se, ainda, da leitura do título da seção II, nas disposições gerais da Lei n º 8.429/92, que a dispensa indevida de licitação, configurada como ato de improbidade, causa prejuízo ao Estado. Por isso, tudo leva a crer que qualquer dispensa indevida de licitação gera prejuízo ao Erário, mas a questão merece qualificações: nem sempre uma dispensa indevida de licitação, amoldada como improbidade, causará prejuízo patrimonial para os cofres públicos

Já citamos o caso clássico de uma dispensa de licitação em que os bens contratados foram fornecidos num preço muito acima do valor de mercado (ou nem mesmo fornecidos). Aqui, enquadra-se com perfeição o disposto no art. 10, VIII, da Lei n º 8.429/92, pois houve uma dispensa de licitação ilegal e os preços foram acima do valor de mercado. Há prejuízo econômico para os cofres públicos.

Contudo, a questão toma contornos especiais quando há uma dispensa indevida de licitação e os bens foram efetivamente fornecidos no valor de mercado. Numa análise formal, preliminarmente, verifica-se que neste caso não há como amoldá-lo ao tipo previsto no art. 10 da Lei n º 8.429/92. Por isso, não haveria a prática de ato de improbidade? Penso que não, pois se o ato é ilegal e presentes os demais requisitos da Lei n º 8.429/92 (como a indispensável má-fé), trata-se de improbidade administrativa, mas por outro fundamento, qual seja: art. 11 da Lei n º 8.429/92, que dispõe dos atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da Administração Pública, dentre eles a legalidade; que inclusive se utiliza da técnica legislativa em sua parte final da expressão “notadamente”.

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Com efeito, percebe-se que é possível (a) uma hipótese de dispensa indevida de licitação não representar ato de improbidade, embora ilegal, pois não estão presentes os pressupostos da Lei n º 8.429/92, como a indispensável má-fé (inocorrência de improbidade); (b) um caso de dispensa indevida de licitação representar ato de improbidade e prejuízo ao Erário (improbidade administrativa enquadrada no art. 10 da Lei n º 8.429/92); (c) por fim, um caso de dispensa indevida de licitação não gerar qualquer prejuízo patrimonial ao Estado, mas mesmo assim se tratar de ato de improbidade (improbidade administrativa enquadrada no art. 11 da Lei n º 8.429/92). Neste último é que se apresentam as discussões do presente artigo, visto que se tem percebido a adoção pelos tribunais e pela doutrina da figura do dano in re ipsa no ato de improbidade administrativa consistente no afastamento indevido de licitação, gerando o consequente ressarcimento aos cofres públicos, ainda que não tenha havido prejuízo ao Erário.

Contudo, antes de adentramos no centro da questão, faz-se necessária algumas observações sobre os casos de afastamento (indevido) de licitação, o que será visto no próximo tópico.

2. As hipóteses de afastamento (indevido) de licitação

O Estado para prestar a sua gama de atividades necessita de bens, serviços e instalações, fornecidos muitas das vezes por particulares, via contratos administrativos, que, como forma de observar ao princípio da impessoalidade e moralidade administrativa, devem ser previamente licitados, consoante imperativo constitucional.[10]

Coube à legislação infraconstitucional, em especial à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, regulamentar o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, instituir normas para licitações e contratos da Administração Pública.

A licitação é a regra de observância imperativa, podendo haver seu “afastamento” na presença das hipóteses legais em que o certame não tem como ocorrer, fica facultada a sua realização ou é inviável, conforme os art. 17, 24 e 25 da Lei nº 8.666/93, respectivamente. Esse “afastamento” será irregular quando ausente os pressupostos fáticos e jurídicos para a não realização do certame, sendo considerado um ato ilegal, visto que a licitação deveria ter ocorrido.

Há uma variedade de situações em que a licitação é afastada indevidamente. É inegavelmente um ato ilegal, mas para adentrar no campo da improbidade necessita de outros requisitos, como a má-fé. Uma série de expedientes são utilizados para indevidamente deixar de licitar, como por exemplo o fracionamento de licitações, que se caracteriza quando se divide a despesa para utilizar modalidade de licitação inferior à determinada pela legislação para o total da despesa, ou para efetuar contratação direta. Por exemplo, a lei impede a utilização da modalidade convite para parcelas de uma mesma obra ou serviço, ou ainda para obras e serviços de idêntica natureza e no mesmo local que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente, sempre que o somatório de seus valores caracterizar o caso de tomada de preços.

O fracionamento é apenas uma das possibilidades de afastamento indevido de licitação. A criatividade humana (para o bem ou para o meu) é fértil[11]. Resta saber se no ato de improbidade administrativa, consistente no afastamento indevido de licitação, o dano é presumido (in re ipsa)? Ademais, em se reconhecendo a presunção do dano, o ressarcimento do prejuízo aos cofres públicos é consequência natural e inevitável, ainda que o valor da contratação esteja dentro dos padrões de mercado?

3. O comportamento dos tribunais e da doutrina brasileira sobre o tema

As Turmas que compõem a Primeira Seção do STJ já posicionaram a orientação de que a configuração dos atos de improbidade administrativa previstos no art. 10 da Lei n º 8.429/92 exigem a presença do efetivo dano ao erário, como podemos demonstrar no seguinte julgado, grifo nosso:

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE. LICITAÇÃO IRREGULAR. HOMOLOGAÇÃO. DANO AO ERÁRIO NÃO COMPROVADO. VIOLAÇÃO DO ART. 10 DA LEI 8.429/1992 CONFIGURADA.

1. O Tribunal de origem constatou a irregularidade da licitação, por não ter sido observada a publicidade do edital, e enquadrou a conduta do recorrente no art. 10 da Lei 8.429/1992, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário.

2. De acordo com a premissa fática do acordão recorrido, o edital da licitação foi publicado no Diário Oficial, tendo faltado divulgação em jornal de grande circulação. Tal omissão não foi imputada ao recorrente, então prefeito, que apenas homologou o procedimento licitatório.

3. A jurisprudência do STJ rechaça a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei 8.429/1992, exigindo a presença de dolo nos casos dos arts. 9º e 11 – que coíbem o enriquecimento ilícito e o atentado aos princípios administrativos, respectivamente – e ao menos de culpa nos termos do art. 10, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário.

4. Na hipótese, os fatos considerados pelo Tribunal a quo podem denotar somente negligência do recorrente por ter homologado a licitação, porém não se constatou dano concreto, tanto que não houve condenação ao ressarcimento. Nesse contexto, mostra-se equivocada a aplicação do art. 10 da Lei 8.429/1992.

5. Recurso Especial provido.”[12]

Os tribunais, de forma majoritária, vem decidindo que esta modalidade de improbidade administrativa só se configura quando demonstrada a existência de efetivo prejuízo financeiro ao erário. Então, à falta de prova de superfaturamento e à correta execução do contrato, segundo esse entendimento, não se aperfeiçoaria o ilícito.

No entanto, existem julgamentos recentes (por exemplo, STJ, AgRg no REsp 1.288.585/RJ, de 16/2/16 e AgRg no REsp 1512393/SP) que entendem que a demonstração de dano financeiro efetivo não é necessária para a configuração dos atos de improbidade decorrentes de dispensa indevida de licitação. O dano seria in re ipsa, na medida em que o poder público, quando não promove a licitação, sendo ela obrigatória, deixa de contratar a melhor proposta. Vejamos o seguinte julgado de 2016 do STJ, grifamos:

“ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI 8.429/92. FRACIONAMENTO INDEVIDO DE LICITAÇÃO. FRUSTRAÇÃO DE COMPETITIVIDADE. DANO AO ERÁRIO E PRÁTICA DE ATO DE IMPROBIDADE.

OCORRÊNCIA. MEMBRO DA COMISSÃO DE LICITAÇÃO MUNICIPAL. RECURSO ESPECIAL PROVIDO PARA, EM CONSONÂNCIA COM O PARECER MINISTERIAL, RESTABELECER A SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU, QUE RECONHECEU A PRÁTICA DE ATO ÍMPROBO E A SITUAÇÃO IRREGULAR DO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO.

1. Pretende a União restabelecer a condenação de Paulo Eduardo Martins por ato de improbidade administrativa, com a consequente condenação de ressarcimento ao erário.

2. Em vez de realizar a licitação na modalidade Tomada de Preços, compatível com os valores do convênio, a Comissão Licitante do Município de São José da Laje fracionou o objeto da licitação, de modo a tornar possível a adoção da modalidade convite, em dois procedimentos apartados - convite nº 016/2002, para aquisição do veículo tipo Van, e o convite nº 17/2002, para aquisição dos equipamentos odontológicos para a ambulância, permitindo, assim, a escolha das empresas participantes dos certames. Após realização de auditoria, constataram-se diversas irregularidades no procedimento licitatório.

3. Da análise dos autos, observam-se presentes elementos concretos aptos a infirmar as conclusões adotadas no acórdão recorrido, através de simples valoração da prova produzida nos autos, o que afasta a incidência da Súmula 7/STJ.

4. Os autos reforçam a irregularidade apontada. Isso porque, quando levado em consideração o fato de que a empresa DIVEPEL - Distribuidora de Veículos e peças Ltda. participou de ambos os procedimentos licitatórios (convite 016/2002 e convite 017/2002), sendo convidada pela comissão licitante, evidencia-se a possibilidade de procedimento licitatório único, a fim de garantir o melhor preço. A situação denota não só a existência de empresa que forneça ambos os objetos, como também o expresso conhecimento do fato por parte da Comissão Licitante.

5. Tudo isso leva à conclusão inafastável da ocorrência de ato ímprobo, uma vez que a Comissão Licitante, a fim de frustrar a competitividade da licitação e os princípios que regem o tema, fracionou o procedimento, ensejando dano ao erário.

6. O STJ possui o entendimento de que, em casos como o ora analisado, o prejuízo ao erário, na espécie (fracionamento de objeto licitado, com ilegalidade do procedimento licitatório), que geraria a lesividade apta a ensejar a nulidade e o ressarcimento ao erário, é in re ipsa, na medida em que o Poder Público deixa de, por condutas de administradores, contratar a melhor proposta.

Precedente: REsp 1.280.321/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 9.3.2012.

7. Recurso Especial provido para, em consonância com o parecer ministerial, restabelecer a sentença proferida em primeiro grau, que reconheceu a prática de ato ímprobo e a situação irregular do procedimento licitatório.[13]

O dissenso jurisprudência reflete-se no âmbito doutrinário, visto que existem autores que compreendem que a expressão “dano” mencionada no art. 10 da Lei n º 8.429/92, refere-se apenas às efetivas lesões patrimoniais. Não havendo que se falar na sua presunção, como professa o Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região José Antonio Lisbôa Neiva[14], analisando o citado dispositivo legal, em sua excelente obra Improbidade Administrativa, a saber:

“É indispensável, para a adequação da conduta neste dispositivo legal [art. 10 da LIA], que tenha ocorrido a efetiva lesão ao erário, sendo ônus do autor da ação civil de improbidade administrativa fazer prova do dano e do nexo causal com uma conduta dolosa ou excepcionalmente culposa, equiparável ao dolo em razão de sua gravidade, nos termos destacados anteriormente (CPC, art. 333, I). A inocorrência da efetiva lesão ao patrimônio pode caracterizar, eventualmente, improbidade com base no art. 9º ou 11, conforme o caso.”[15]    

Por outro lado, parcela da doutrina afirma que a incidência do art. 10 da LIA imprescinde de efetiva comprovação de dano ao erário, sendo o ato de dispensa de licitação presumivelmente danoso o prejuízo ao erário (como no já citado caso de fracionamento de objeto licitado, com ilegalidade da dispensa de procedimento licitatório). Assim, geraria a lesividade apta a ensejar a nulidade e o ressarcimento ao erário, sendo o dano in re ipsa, na medida em que o Poder Público deixa de, por condutas de administradores, contratar a melhor proposta (no caso, em razão do fracionamento e consequente não-realização da licitação, havendo verdadeiro direcionamento da contratação). Seguindo essa corrente de pensamento podemos citar o membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Rogério Pacheco Alves[16], quando afirma categoricamente que:

“É importante frisar que a noção de dano não se encontra adstrita à necessidade de demonstração da diminuição patrimonial, sendo inúmeras hipóteses de lesividade presumida previstas na legislação especial. Como consequência da infração às normas vigentes, ter-se-á a nulidade do ato, o qual será insuscetível de produzi efeitos válidos.”[17]

Com efeito, para esse segundo entendimento de que o dano causado pelo afastamento indevido de licitação, nos casos de improbidade administrativa do art. 10 da Lei n º 8.429/92, especialmente seu inciso VII (frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente), tem a lesividade presumida, isto é, in re ipsa; ocorrendo tal hipótese não se faz necessário comprovar prejuízo para o Erário.

Destarte, o ressarcimento dos “prejuízos econômicos” causados aos cofres públicos devem ser reparados pelo agente causador e o beneficiário da conduta improba, como forma de retornar ao status quo que precedeu a contratação.[18]

De uma maneira geral, a base jurídica para esse ressarcimento integral do dano é o fato do contrato ser nulo, pois a dispensa de licitação que o fundamentou não teve amparo legal; sendo invalido o contrato, não produz qualquer efeito material e jurídico válido. Uma vez invalidado o negócio jurídico, a situação tem que voltar ao seu estado anterior, com a devolução integral dos valores advindos da contratação, pelo particular contratado.

Contudo é preciso fazer uma reflexão melhor sobre esse posicionamento, visto que outros valores constitucionais também estão em jogo. Tema que será objeto de nossa conclusão.

4. Conclusão

A assunto precisa ser melhor delimitado para a sua compreensão, de modo que o combate à malversação da coisa pública seja equalizada com o respeito aos direitos fundamentais dos administrados, notadamente o direito de propriedade.

Em primeiro lugar, o afastamento indevido da licitação, quando presente os demais requisitos para a configuração da improbidade administrativa, ainda que não haja prejuízo econômico efetivo para o Erário, sofrerá as sanções da Lei n º 8.429/92, mas não poderá ensejar o ressarcimento dos valores recebidos pela execução do contrato, pois representa enriquecimento sem causa para o Estado e empobrecimento indevido para o particular. Tendo sido o contrato administrativo efetivamente executado de acordo com os preços de mercado não há que se falar em retorno ao status quo ante. Solução diversa representaria uma violação frontal ao direito de propriedade, uma verdadeira expropriação do Poder Público sobre o patrimônio do particular.

Ademais, a própria Lei nº 8.666/93 dá solução para a hipótese no seu art. 59 e parágrafo único, a seguir transcrito:

Art. 59.  A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.

Parágrafo único.  A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.

Com efeito, ainda que o contrato seja invalidado, há dever de indenizar do Poder Público, cujo corolário é princípio que veda enriquecimento sem causa do Estado, anotando Marçal Justen Filho que “se a Administração recebesse a prestação executada pelo particular e se recusasse a cumprir o contrato por invocar sua nulidade, haverá seu locupletamento indevido”.[19]

Por isso, uma vez comprovada a dispensa de licitação indevida como ato de improbidade, caso os preços praticados estejam dentro dos padrões de mercado e o contrato efetivamente executado, não há que se falar em ressarcimento dos valores recebidos pelo particular. Entretanto, não se afastam as outras sanções previstas na Lei n º 8.429/92, como a perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, pagamento de multa civil e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário.

Logo, nada impede que um caso de afastamento indevido de licitação, comprovada a má-fé, fique enquadrado como improbidade administrativa à luz do art. 11 da Lei n º 8.429/92, por simples violação de princípio jurídico, ainda que não haja efetivo dano patrimonial. Nessa situação, não há que se falar em ressarcimento aos cofres públicos, sob pena de haver confisco interesses econômicos dos particulares que executaram o contrato administrativo.

Acreditamos que o combate à corrupção não seja um valor absoluto, colocando em jogo outros interesses constitucionalmente protegidos, como os direitos fundamentais dos particulares que contrataram com a Administração Pública, máxime quando não deram causa à invalidação do contrato administrativo. Ademais, os tribunais precisam uniformizar o entendimento sobre o assunto utilizando-se os modernos instrumentos de Código de Processo Civil de 2015, pois o atual panorama gera insegurança jurídica para os jurisdicionados.

REFERÊNCIAS

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris , 2011.

COPOLA, Gina. A improbidade administrativa no direito brasileiro. Belo Horizonte: Fórum. 2011.

FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Atos de improbidade administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. 2. ed. São Paulo: Atlas. 2008.

FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de direito administrativo. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2001.

Filho, Marino Pazzaglini. Lei de improbidade administrativa comentada, 2ª edição, São Paulo: Atlas, 2005.

GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 9. ed. São Paulo: Dialética, 2002.

MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade administrativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

NEIVA, José Antonio Lisboa. Improbidade Administrativa. Niterói-RJ: Impetus, 2009.

PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal. 5. ed. São Paulo: Atlas. 2011.

SOBRANE, Sérgio Turra. Improbidade administrativa: aspectos matérias, dimensão difusa e coisa julgada. São Paulo: Atlas. 2010.

TOURINHO, Rita. Dispensa, Inexibilidade e Contratação Irregular em face da Lei de Improbidade Administrativa. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 16, outubro, novembro, dezembro, 2008. Disponível na internet em: [http://www.direitodoestado.com.br]. Acesso em 27 de janeiro de 2016.

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