4. A LEGALIDADE DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO FACE AO DISCURSO DE ÓDIO
A liberdade de expressão, assegurada pela Constituição Federal de 1988, é um pilar da democracia. Contudo, o discurso de ódio representa um dos limites mais controversos e polêmicos desse direito, pois entra em conflito com outros valores igualmente protegidos pela Carta Magna, como a dignidade humana e a igualdade.
De acordo com Meyer-Pflug (2009, p. 103) [(Nota: Corrigido o nome da autora)]:
No discurso do ódio é colocada em teste a capacidade da liberdade de expressão de prevalecer em face dos demais princípios, ou melhor[,] dos “contravalores”. Há, primeiramente, que se fazer uma distinção nítida entre o fato de [não] gostar ou discordar de uma ideia e censurá-la ou negar sua manifestação. São coisas absolutamente diferentes. A liberdade de expressão permite a todo indivíduo contestar e discordar da opinião e das ideias em voga, mas negar o direito delas se manifestarem é censura. (MEYER-PFLUG, 2009, p. 103)
É necessário destacar que, enquanto a liberdade de expressão protege a manifestação de opiniões diversas, mesmo que controversas ou impopulares, o discurso de ódio se caracteriza pela forma e conteúdo dessa expressão, visando atacar, humilhar, incitar à violência ou discriminar indivíduos ou grupos com base em características como raça, gênero, religião, nacionalidade, orientação sexual, etc., ferindo sua dignidade.
O Estado democrático deve permitir o debate amplo, mas o discurso de ódio atenta contra direitos fundamentais e pode gerar danos reais, propagando a intolerância e legitimando a violência.
4.1. O DISCURSO DO ÓDIO
O discurso de ódio (hate speech) baseia-se na discriminação e na externalização de preconceitos, proclamando ideias que inferiorizam ou hostilizam determinados grupos, ferindo a dignidade humana individual e coletiva. Como expressa Ursula Owen (2003 apud Smiers, p. 319), “as palavras podem se tornar balas, a linguagem do ódio pode matar e mutilar, como a censura”. A autora compara o dano potencial do discurso de ódio ao da censura, ambos minando a democracia e a liberdade.
Embora o Estado Democrático garanta a liberdade de expressão, é crucial analisar os limites desse direito. O discurso de ódio, ao propagar a intolerância e incitar excessos como insultos, difamação e violência contra grupos específicos, desafia esses limites. Revisitando Portiguar (2012, p. 160):
[...] o próprio resultado do discurso do ódio não se coaduna com o ideal democrático de proporcionar a todos a possibilidade de exprimir suas opiniões, vez que ele resulta em um efeito silenciador [para os grupos atacados]. (PORTIGUAR, 2012, p. 160)
Muitas vezes, ignora-se o impacto real que o discurso de ódio provoca sobre os indivíduos e grupos alvejados. No Brasil, embora a Constituição de 1988 garanta a liberdade de expressão (com previsão de direito de resposta e indenização por danos, Art. 5º, V), não há uma lei específica e abrangente que defina e proíba o discurso de ódio como tal, embora existam leis que punem manifestações específicas como racismo e injúria discriminatória.
4.2. A VEDAÇÃO (IMPLÍCITA) AO DISCURSO DO ÓDIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A proteção constitucional à liberdade de expressão (Art. 5º, IV e IX) é um dos pilares da ordem democrática brasileira, possibilitando a construção de um ambiente pluralista em termos políticos, religiosos e culturais. Segundo Conrado (2013), “uma das projeções da liberdade mais caras à humanidade vem a ser a livre manifestação de pensamento.” Este direito permite ao ser humano pensar e difundir suas ideias, impulsionando o progresso e a transformação social.
Contudo, como afirma Santos (2014), “apesar de a CRFB/88 [...] garantir a igualdade dos indivíduos perante a lei e a proteção legal contra a discriminação, não existe no Brasil nenhuma legislação específica em relação ao discurso do ódio.” Apesar da ausência de uma lei específica denominada "lei do discurso de ódio", diversas normas constitucionais e infraconstitucionais podem ser interpretadas como limitadoras desse tipo de manifestação. A própria Constituição veda o anonimato (Art. 5º, IV), garante o direito de resposta (Art. 5º, V), repudia o racismo como crime inafiançável e imprescritível (Art. 5º, XLII) e estabelece a dignidade da pessoa humana e a igualdade como fundamentos (Art. 1º, III e Art. 5º, caput). Além disso, a Lei nº 7.716/1989 (Lei Caó) define crimes resultantes de preconceito de raça ou cor, demonstrando que certas manifestações de ódio não são toleradas e devem ser penalizadas.
4.3. LIBERDADE DE EXPRESSÃO RELIGIOSA E O DISCURSO DO ÓDIO
A liberdade de expressão religiosa garante o direito de manifestar, praticar e divulgar a própria fé, sem ser indevidamente recriminado. O discurso de ódio, por sua vez, representa o abuso da liberdade de expressão, atacando ou incitando a discriminação contra outros com base em suas crenças (ou ausência delas) ou outras características.
Como afirma Lima (2014), “numa sociedade, a tolerância é característica essencial e inescusável, com todos aceitando e sendo aceitos com suas diferenças. Tem, portanto, o Estado o dever de coibir e punir os intolerantes, concedendo assim o direito a não discriminação”.
O conflito surge quando a manifestação de uma crença religiosa ultrapassa a exposição de seus dogmas e passa a atacar, de forma hostil e discriminatória, a fé ou a dignidade de outros grupos religiosos ou não religiosos. Enquanto o primeiro aspecto é protegido pela liberdade religiosa, o segundo pode configurar discurso de ódio, que não encontra amparo absoluto na Constituição.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou demonstrar a importância da liberdade de expressão, incluindo a religiosa, como direito fundamental restaurado e garantido pela Constituição Federal de 1988, após o período de opressão da ditadura militar. A liberdade de expressão é um instrumento essencial para a democracia, permitindo a formação da opinião pública e o debate de ideias.
A pesquisa evidenciou as diversas facetas da liberdade de expressão religiosa – crença, culto e organização – que asseguram aos cidadãos o direito de professar e praticar sua fé. No entanto, também se destacou a problemática do discurso de ódio como um abuso desse direito, caracterizado pela expressão de opiniões que incitam à discriminação, ao preconceito e à hostilidade contra determinados grupos.
Observou-se que o discurso de ódio entra em conflito direto com princípios constitucionais basilares, como a dignidade da pessoa humana e a igualdade, ao promover a retaliação, a exclusão e o preconceito. Embora a legislação brasileira não contenha uma lei específica e abrangente contra o discurso de ódio, diversas normas constitucionais e infraconstitucionais (como a lei antirracismo) podem ser invocadas para coibir e punir suas manifestações mais graves.
Conclui-se que a Constituição assegura a liberdade de expressar pensamentos, palavras e opiniões, mas esse exercício deve ocorrer dentro dos limites impostos pelo respeito aos direitos e à dignidade alheia, pilares da nossa democracia. Não é admissível que, sob o manto da liberdade de expressão, discursos de ódio sejam utilizados para denegrir ou incitar à violência contra grupos em razão de sua religião, raça, etnia, orientação sexual ou qualquer outra característica. Cada pessoa, independentemente de suas contingências, possui igual valor e dignidade.
Surge, assim, a necessidade de promover políticas pluralistas e interações culturais baseadas no respeito mútuo. É essencial assegurar a autonomia pública e privada, mas uma sociedade democrática não pode tolerar discursos que sistematicamente prejudicam a dignidade humana e corroem a coesão social. O sistema democrático exige uma discussão ampla e aberta, que pressupõe a convivência pacífica e respeitosa de todas as ideias, ideologias e opiniões, rejeitando aquelas que promovem o ódio e a discriminação.
REFERÊNCIAS
ALTAFIN, Juarez. O Cristianismo e a Constituição. 1ª Ed. Belo Horizonte: Del rey, 2007.
ANASTASIA, Fátima et al. Reforma política no Brasil. 1ª Ed. Belo Horizonte: Editora Universitária, 2007.
BALEEIRO, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1891. – v.2 – Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001
BRANDÃO, Claúdio, et al. Do Direito Natural ao Direitos Humanos. 1ª Ed. Coimbra: Almedina, 2015.
CARVALHO, Rayanna Silva. Liberdade Constitucionais: breves anotações. Disponível em: <https://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12809&revista_caderno=9> Acesso em: 09.nov.2015.
CASTRO, Gilson Moura. A imigração no Brasil. 2014. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=RBtGBQAAQBAJ&pg=PA7&dq=liberdade+religiosa+no+Brasil&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwi_sbeIoKTJAhUHmJAKHR6KAXw4ChDoAQgaMAA#v=onepage&q=liberdade%20religiosa%20no%20Brasil&f=false> Acesso: 20.nov.2015
CHIROU, Yaco Alexander Kirzner. Diálogos entre as culturas judaica e contemporânea. 1ª Ed. São Paulo: Instituto Cultural Interface, 2014.
Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados. Direitos Humanos: Cidadania e Igualdade. 1ª Ed. São João do Estoril: Princípia Editora, 2006.
DEVINE, Carol, et al. Direitos Humanos: Referências Essenciais. 1ª Ed. São Paulo: Edusp, 2007.
FERREIRA, Francilu São Leão Azevedo. A liberdade religiosa nas constituições brasileiras e o desenvolvimento da Igreja Protestante. Disponível em: <https://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13496&revista_caderno=27> Acesso em: 03.11.2015
GARRET, Marina Batista. A necessidade de limites à liberdade religiosa. Disponível em: <https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2372/A-necessidade-de-limites-a-liberdade-religiosa> Acesso em: 11.nov.2015
GIANNOTTI, Vito. História das Lutas dos Trabalhadores no Brasil. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
LELLIS, Lélio Maximino, et al. Manual de Liberdade Religiosa. 1ª Ed. Engenheiro Coelho: Ideal Editora, 2013
LIMA, Isan Almeida. Liberdade de expressão e de crença x direito a não discriminação: “hate speech” homofóbico em livros didáticos religiosos. 2014. Disponível em: <https://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=14456&revista_caderno=9> Acesso em: 01.nov.2015
MARSHALL, Paul, et al. Perseguidos: O Ataque global aos cristãos. 1ª Ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2013.
MELO, José Tarcizio de Almeida. Direito Constitucional no Brasil. 1ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
MEYER-PF LUG, Samnatha. Liberdade de expressão e discurso do ódio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
MONDAINE, Marcos. Direitos Humanos no Brasil Contemporâneo. 1ª Ed. Recife: Editora Universitária, 2008.
PIMENTA, Marcelo Vicente de Alkimim. Teoria da Constituição. 1ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
POTIGUAR, Alex. Liberdade de expressão e discurso do ódio: a luta pelo reconhecimento da igualdade como direito à diferença. Brasília: Consulex, 2012.
REIS, Daniel Aarão. Ditadura e Democracia no Brasil. 2000. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=i17PAgAAQBAJ&printsec=frontcover&dq=a+ditadura+no+Brasil&hl=pt-BR&sa=X&redir_esc=y#v=onepage&q=a%20ditadura%20no%20Brasil&f=false> Acesso em: 20.nov.2015
SANTANA, Mirian Ilza. Censura no período da ditadura. Ano 2015. Disponível em: <https://www.infoescola.com/historia/censura-no-periodo-da-ditadura/> Acesso em: 04.nov.2015
SANTIAGO, Emerson. Liberdade de Expressão. Ano 2015. Disponível em: <https://www.infoescola.com/direito/liberdade-de-expressao/> Acesso em: 10.nov.2015
SANTOS, Cecilia MacDowell dos. A Mobilização Transnacional do Direito: Portugal e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. 1ª Ed. Coimbra: Almedina,2012
SANTOS, Gustavo Ferreira, et al. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio no Brasil. Disponível em: <https://www.esmarn.tjrn.jus.br/revistas/index.php/revista_direito_e_liberdade/article/viewFile/780/621> Acesso em: 22.nov.2015
SARLET, Wolfgang. Liberdade religiosa e dever de neutralidade estatal na Constituição Federal de 1988. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-jul-10/direitos-fundamentais-liberdade-religiosa-dever-neutralidade-estatal-constituicao-federal-1988> Acesso em: 16.nov.2015
SILVA, Ney. Estudo de Direito: Coletânea de artigo vol.1. 1ª Ed. São Luiz: NS Editor, 2012.
SMIERS, Josst. Artes sob pressão: Promovendo a diversidade cultural na era da globalização. 1ª Ed. São Paulo: Escrituras, 2003)
Notas
1 A Declaração De Virginia, foi feita em 16/06/1776, proclamou o direito à vida, a liberdade e a propriedade. Outros direitos humanos forma expressos na declaração, como princípio de legalidade, a liberdade de impressa e a liberdade religiosa.
2 Todo indivíduo tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou particular.
3 Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade
4 Art. 19. - É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embarcar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II - recusar fé aos documentos públicos; III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.