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O uso de softwares robôs em pregões eletrônicos: uma ofensa ao direito fundamental à igualdade dos licitantes?

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07/02/2017 às 13:08
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3 ANÁLISE DA DECISÃO DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA PRIMEIRA REGIÃO NO Agravo de Instrumento nº 0046754-49.2011.4.01.0000/DF ACERCA DO USO DE SOFTWARES ROBÔS EM PREGÕES ELETRÔNICOS

Em termos de pregão eletrônico, noticia-se que, no cenário jurídico atual, vem se difundindo, entre os licitantes, o uso de softwares robôs, a fim de garantir o sucesso nos certames. Essas novas tecnologias, também denominadas simplesmente “robôs”, são programas de computador aptos a realizar lances automáticos, em fração de segundos, com a finalidade de manter o seu usuário sempre à frente nas disputas concorrenciais públicas. O programa é capaz de acessar, sozinho, o ambiente virtual do sítio oficial “compras governamentais”, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), capturando lances feitos antes que os demais licitantes tenham acesso a essa informação. Além disso, os robôs oferecem propostas pré-programadas em frações de segundo, o que é impossível de ser feito por uma pessoa humana.

Diante da constatação do uso dos robôs, a competitividade dos certames tem se tornado uma questão bastante controversa, pois inúmeros concorrentes reclamam ofensa ao princípio da igualdade com a alegativa de que os softwares não deixam chances aos àqueles que não podem, ou não querem, aderir a essa duvidosa prática. Apreciando o assunto, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) julgou o Agravo de Instrumento nº 0046754-49.2011.4.01.0000/DF, verbis:

DECISÃO

(...)

Impõe-se, assim, resguardar em toda a plenitude o principio da isonomia que deve prevalecer na relação entre os concorrentes, impedidos o oferecimento de propostas com a utilização de software de inserção automática de lances, sendo certo que, na espécie, não há que se perquirir a respeito do princípio da economicidade em prol da administração, uma vez que é mínima a diferença de valores das propostas, quando a utilização dos denominados “robôs”.

Antes o exposto, defiro o pedido de antecipação da tutela recursal, para suspender o procedimento licitatório relativo ao Pregão Eletrônico n. 5/2011, em face da irregularidade na utilização dos referidos programas de computador, facultando, no entanto, à Administração, com vistas a garantir a continuidade do serviço público, reabrir a fase de lances, possibilitando às concorrentes oferecer novas propostas, sem a utilização dos questionados “robôs”.

Comunique, com urgência, ao ilustre Juízo da causa originária.

Publique-se.

Intime-se a parte agravada para, querendo, apresentar resposta no prazo legal (CPC, art. 527, V)

Brasília – DF, 31 de agosto de 2011.

Desembargador Federal FAGUNDES DE DEUS

Relator (grifo nosso)

No caso concreto, a empresa Agravante bateu às portas do Judiciário para aduzir que a vencedora de uma licitação da qual participou teria se utilizado dos famigerados softwares robôs, para obter sempre os melhores lances. Acrescenta que o programa invade o ambiente virtual do sítio de compras do Governo Federal de modo a interceptar lances enviados pelos demais licitantes, emitindo como resposta, em frações de segundos, lances automáticos pré-programados, pelo que entende decorrer, dessa prática, verdadeira afronta aos princípios da isonomia e competitividade entre os concorrentes.

Em suma, o Desembargador Federal competente entendeu por bem suspender o certame, aduzindo que os robôs comprometem mesmo a isonomia entre os licitantes, porque inviabilizam a participação efetiva dos operadores humanos, a qual fica reservada somente àqueles concorrentes que aderiram ao uso de operadores eletrônicos. A fim de fundamentar o seu decisum, o julgador trouxe à baila o entendimento da Corte de Contas que veio recomendar ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, órgão responsável pela gestão do sítio “comprasgovernamentais”, a adoção de providências no sentido de resguardar a isonomia entre os concorrentes do pregão eletrônico.

Nesta monta, cumpre ratificar que o TCU, em recente decisão, veio manifestar-se contrariamente acerca do uso de softwares robôs em pregões eletrônicos, in verbis:

O uso de programas “robô” por parte de licitante viola o princípio da isonomia

Mediante monitoramento, o Tribunal tratou do acompanhamento do Acórdão nº 1647/2010, do Plenário, que versou sobre a utilização de dispositivos de envio automático de lances (robôs) em pregões eletrônicos conduzidos por meio do portal Comprasnet, da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI) do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG). No Acórdão monitorado, o Tribunal concluiu que, em pregões eletrônicos conduzidos via portal Comprasnet: “a) é possível aos usuários de dispositivos de envio automático de lances (robôs) a remessa de lances em frações de segundo após o lance anterior, o que ocorre durante todo o período de iminência do pregão; b) com a possibilidade de cobrir lances em frações de segundo, o usuário do robô pode ficar à frente do certame na maior parte do tempo, logrando assim probabilidade maior (e real) de ser o licitante com o lance vencedor no momento do encerramento do pregão, que é aleatório; c) ciente dessa probabilidade, que pode chegar a ser maior que 70%, o licitante usuário do robô pode simplesmente cobrir os lances dos concorrentes por alguns reais ou apenas centavos, não representando, portanto, vantagem de cunho econômico para a Administração”. Para o relator, os fatos configurariam a inobservância do princípio constitucional da isonomia, visto que “a utilização de software de lançamento automático de lances (robô) confere vantagem competitiva aos fornecedores que detêm a tecnologia em questão sobre os demais licitantes”, sendo que as medidas até então adotadas pela SLTI/MPOG teriam sido insuficientes para impedir o uso de tal ferramenta de envio automático de lances. Além disso, como as novas providências para identificar alternativa mais adequada para conferir isonomia entre os usuários dos robôs e os demais demandariam tempo, e a questão exigiria celeridade, entendeu o relator que MPOG  poderia definir provisoriamente, por instrução complementar e mediante regras adicionais para a inibição ou limitação do uso dos robôs, de maneira a garantir a isonomia entre todos os licitantes, nos termos do art. 31 do Decreto nº 5.450/2005, razão pela qual apresentou voto nesse sentido, bem como por que o Tribunal assinasse o prazo de 60 dias para que a SLTI implementasse mecanismos inibidores do uso de dispositivos de envio automático de lances em pregões eletrônicos conduzidos via portal Comprasnet, no que foi acompanhado pelo Plenário. Acórdão n.º 2601/2011-Plenário, TC-014.474/2011-5, rel. Min. Valmir Campelo, 28.09.2011.

Outrossim, a decisão judicial salientou, em consonância com o entendimento acima transcrito, esposado pelo Tribunal de Contas da União, que “(...) não há que se perquirir a respeito do princípio da economicidade em prol da administração, uma vez que é mínima a diferença de valores das propostas, quando a utilização dos denominados ‘robôs’.”

É interessante esclarecer que na fase de lances do pregão eletrônico há, de fato, uma disputa ferrenha entre os participantes que, determinados a contratar com a Administração, apresentam lances sucessivos no ambiente virtual, dentro de prazo previamente estipulado, com o objetivo de apresentar a melhor proposta e vencer o certame. Ocorre que esses programas computacionais podem reverter o resultado do certame em seus momentos finais, por uma diferença de centavos, sem que os demais licitantes tenham tempo hábil de esboçar qualquer reação.  

Nessa esteira, a igualdade entre os concorrentes constitui assunto de extrema relevância, pois qualquer desequilíbrio de condições pode gerar mácula ao procedimento administrativo, bem como prejuízos aos ofertantes desfavorecidos e à própria Administração Pública. O assunto ganhou espaço na mídia, tendo sido noticiado pela Revista Isto é Independente, no dia 27 de maio de 2011, sob o título “Golpe no pregão eletrônico: empresários usam programa de computador para fraudar leilões eletrônicos do governo e Ministério do Planejamento admite que ainda não sabe como evitar esta prática que se espalha pelas concorrências públicas”, de autoria de Lúcio Vaz. Na reportagem, investiga-se que empresários usam programas de computador para fraudar os leilões eletrônicos do governo, e o Ministério do Planejamento admite que ainda não sabe como evitar esta prática que se espalha pelas concorrências públicas.

A controvérsia que permeia o assunto diz respeito, portanto, à possível ofensa ao direito fundamental à igualdade dos concorrentes, em decorrência do uso dos referidos softwares.

Segundo Mello (1998, p. 23), a igualdade é princípio que visa a duplo objetivo: propiciar garantia individual contra perseguições, não é sem razão que se acha insculpido em artigo subordinado à rubrica constitucional “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, e tolher favoritismos.

Em lição valiosa, Ubillos (2003, p. 306) referiu-se à força expansiva dos direitos fundamentais e sua capacidade de interpenetrar as mais diversas relações jurídicas, haja vista possuírem, como núcleo, um substrato muito aberto, pelo que tendem a expandir-se, penetrando e preenchendo os interstícios do ordenamento. E não é diferente com o direito fundamental à igualdade.

De certo que afirmar que dois sujeitos de direito são iguais, sem nenhuma outra determinação, nada significa na linguagem política. É preciso especificar quem são os entes em questão e com relação a que são iguais, ou seja, qual o fator discriminatório adotado (BOBBIO, 1996, p. 11-12). Qualquer elemento inerente às coisas, pessoas ou situações é passível de ser escolhido pela lei como um fator discriminatório. Assim, como regra geral, não é no traço de diferenciação escolhido pelo legislador, que se deve buscar algum desacato ao princípio isonômico (MELLO, 1998, p.17).

De efeito, a mera discriminação poderá ser recebida como compatível com a cláusula igualitária quando existir um vínculo de correlação lógica entre o caráter distintivo acolhido, por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida. Para tanto, é necessário que tal correlação se mostre compatível com os interesses prestigiados na Constituição Federal (MELLO, 1998, p. 17).

Pois bem, no caso em apreço os entes em questão são os licitantes, a quem foi assegurada a igualdade de condições através das cláusulas igualitárias consubstanciadas no art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal; art. 3º, da Lei nº 8.666/1993; e art. 5º, caput, do Decreto nº 5.450/2005. Os dispositivos citados estabeleceram o direito fundamental à igualdade dos ofertantes, a fim de que o certame se torne mais competitivo, impessoal e transparente, porém não há qualquer vínculo de correlação lógica entre essa igualdade preconizada e a admissibilidade do uso de softwares robôs em pregões eletrônicos. Outrossim, não se vislumbra uma suposta compatibilidade dos operadores eletrônicos com os interesses constitucionais vigentes.

Como se vê, a Constituição não adotou fator discriminatório, mas igualitário, à exceção de tratamentos diferenciados para as microempresas e empresas de pequeno porte, nos moldes do art. Art. 179, as quais gozam de tratamento jurídico diferenciado, por parte dos entes políticos, com o fundamento do incentivo mediante a simplificação de obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou mesmo pela eliminação ou redução destas por meio de lei. Ademais, tais diferenciações procuram, indubitavelmente, realizar a igualdade material a partir de tratamentos discriminatórios amparados pelos valores jurídicos vigentes. Entretanto, mesmo essas empresas não gozam de privilégios no ato, propriamente dito, de realizar lances em pregões eletrônicos.

Em brilhante lição, Bobbio (1996, p. 15) assevera que, para que a harmonia prevaleça no universo ou na civitas mostra-se imprescindível que sejam observadas algumas condições: a) dar a cada uma das partes o seu lugar, em conformidade com o que lhe condiz; b) uma vez atribuído o devido lugar de cada um, mantenha-se o equilíbrio atingido a partir de normas respeitadas por todos. Logo, os pré-requisitos para a instituição e a conservação da ordem ou da harmonia do todo, segundo o autor, consistiriam no estabelecimento de certa igualdade entre as partes e, cumulativamente, na promoção do respeito à legalidade. As duas condições são necessárias para que seja realizada a justiça, mas somente quando aplicadas em conjunto é que serão suficientes.

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Nessa linha de raciocínio, pode-se chegar à injustiça, em uma totalidade ordenada, pela alteração das relações de igualdade bem como pela não observância das leis. Assim, a alteração da igualdade representa um desafio à legalidade constituída, ao passo que a não observância das leis postas consubstancia-se em uma ruptura do princípio de igualdade no qual a própria lei se inspira.

Com efeito, o que se vislumbra na situação em apreço é que a lei não se refere, expressamente, à proibição do uso de robôs em pregões eletrônicos. Esse seria o principal argumento de defesa dos vendedores desses programas. Porém, é notório que pode-se obedecer formalmente a lei, mas contrariá-la em substância. Não basta atender apenas a letra da lei, é imprescindível atentar para o seu conteúdo, que é materialmente isonômico (MELLO, 1998, p. 24).

É certo que “(...) uma relação de igualdade é uma meta desejável na medida em que é considerada justa” (BOBBIO, 1998, p. 15). Logo, se a igualdade normatizada admite condições diferenciadas aos licitantes tendo em vista o desenvolvimento de novas tecnologias que ofendem a competitividade no certame, esse preceito deve ser reinterpretado à luz da equidade e dos princípios gerais de direito, mediante a ponderação de interesses juridicamente protegidos pela ordem constitucional e legal vigente. Ademais, segundo Alexy (2008, p. 286), os direitos fundamentais apenas podem ser restringidos através de norma constitucional ou infraconstitucional, na hipótese de reproduzir um comando da Constituição.

Com isso, o direito fundamental à liberdade, cuja natureza é eminentemente principiológica, não poderia sofrer restrição em razão da mera inexistência de norma que proíba o uso de robôs em pregões eletrônicos, como bem ponderou o TRF1, ao expressar que “(...) Impõe-se, assim, resguardar em toda a plenitude o principio da isonomia que deve prevalecer na relação entre os concorrentes (...)”. De fato, uma interpretação sistemática do assunto não poderia chegar à outra conclusão, pois o que deve prevalecer é o espírito da lei, não a sua mera literalidade.

Outro argumento que poderia ser utilizado a favor dos operadores eletrônicos seria a existência de um direito geral de liberdade, pois a constituição afere que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei” (art. 5º, inciso II, CF/1988). Estar-se-ía, então, diante de um conflito aparente entre dois princípios fundamentais: liberdade versus igualdade.

Pereira (2006, p. 169) preleciona, com razão, que:

As repercussões hermenêuticas da aceitação, ou não, de um direito geral de liberdade na ordem constitucional são muito abrangentes, Uma vez que se identifique no ordenamento um direito à liberdade geral de agir, estar-se-á, em palavras de Alexy, reconhecendo duas conseqüências jurídicas: ‘de um lado, a cada qual está permitido prima facie – quer dizer, desde de que não intervenham restrições – a fazer e omitir o que queira (norma permissiva). Por outro, cada qual tem prima facie, quer dizer, na medida em que não intervenham restrições, um direito, frente ao Estado, a que este não impeça suas ações e omissões, quer dizer, não intervenha nelas (norma de direitos)’. (grifo nosso)  

Finalmente, Bobbio (1996, P. 31) esclarece sobre a igualdade de condições:

Essa difusão ocorreu, pelo menos, em duas direções: a) na exigência de que a igualdade dos pontos de partida seja aplicada a todos os membros do grupo social, sem nenhuma distinção de raça, de sexo, de classe, etc.; b) na inclusão, onde a regra deve ser aplicada, de situações econômica e socialmente bem mais importante do que a dos jogos ou concursos.     

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Sobre o autor
Leonardo Teixeira Maciel

Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Ceará. Chefe da Seção de Licitações e Contratos Administrativos do Grupamento de Apoio de Fortaleza.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACIEL, Leonardo Teixeira. O uso de softwares robôs em pregões eletrônicos: uma ofensa ao direito fundamental à igualdade dos licitantes?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4969, 7 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55595. Acesso em: 24 abr. 2024.

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