A temática do acesso à justiça, via de regra, é um estímulo ao nosso raciocínio. Talvez, por isso, uma obra jusfilosófica fosse tão lida, relida, interpretada, reinterpretada, visitada e revisitada, quanto aquela de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (Acesso à Justiça). Aqui, caímos novamente na admoestação de Norberto Bobbio, para quem chegou a hora de parar um pouco de declarar direitos humanos fundamentais e passar a ter o firme compromisso de apenas efetivá-los.
O assunto, porém, é, antes de tudo, questão de honra para sociedade e para o Estado. Destarte, com o intuito de superar os três obstáculos a serem transpostos, foram, em contrapartida, propostas três soluções: às custas judiciais em sentido amplo, assistência judiciária gratuita aos pobres; à (im)possibilidade de as partes acessarem, de verdade, à justiça, representação dos interesses difusos; às vicissitudes específicas relativas aos interesses metaindividuais, enfoque centrado na representação rigorosamente efetiva em juízo, a fim de estender os efeitos da decisão proferida.
Para tanto, sucedeu-se, por assim dizer, a assunção de inúmeros compromissos constitucionais e legais no sentido de estabelecer, sobretudo com o advento e a consolidação das premissas do Estado Democrático de Direito, mecanismos tendentes a possibilitar, de maneira simples e eficiente, a solução de conflitos, sejam estes mecanismos de índole judicial, sejam eles extrajudiciais.
Nesse passo, a organização jurisdicional mediante a adoção de critérios racionais de competência judicial prossegue sendo de extrema importância na realização desse direito público subjetivo (direito de ação) em favor do indivíduo, notadamente a pessoa desprovida de recursos financeiros para se socorrer do judiciário. Por quê? Porque a escolha política do legislador, constitucional ou infraconstitucional, acerca de quem é responsável para processar e julgar determinada demanda pode, temerariamente, pôr em risco o exercício mais próximo, mais célere, mais democrático e menos dispendioso desse direito.
Em outras palavras, a escolha equivocada e a má distribuição da competência jurisdicional em razão da matéria, do lugar, da pessoa e do valor da causa, afeta negativamente não só o direito fundamental de acesso à justiça, ou seja, o direito de, ao menos, discutir se lhe assiste razão em face de um conflito de interesses, mas também – e sobretudo – priva-se o cidadão do bem da vida a que, eventualmente, poderia usufruir sob a chancela dos órgãos jurisdicionais. Bem da vida este que deixou de fazer parte do acervo jurídico do pessoa humana justamente porque o Estado não proporcionou a ele, corretamente, os meios para atingir tal desiderato.
Com efeito, o prejuízo à implementação de direitos é exponencialmente potencializado – quando ocorre essa falha por parte do Estado (ou seja, o equívoco na distribuição da competência jurisdicional) – se estes direitos estiverem expressamente reconhecidos no texto constitucional. Incide, pois, um agravante, tendo em vista a natureza dos direitos envolvidos, o que, em última análise, viola o princípio segundo o qual, quando a Constituição declara um direito, deve ela oferecer os instrumentos (processuais) para torná-los concretos, reais, tangíveis, efetivos.
Além disso, considere-se também a circunstância de que, com a constitucionalização do Direito, a judicialização da vida e a expansão da jurisdição constitucional, o Poder Judiciário passou a obter amplo espectro de influência no cotidiano social e, mormente, na construção institucional do sistema jurídico, de modo que o avanço e o aperfeiçoamento do judiciário, de um modo geral, e da otimização dos critérios de fixação de competência, de uma forma específica, exigem uma manejo criterioso, racional, responsável e, principalmente, constitucional das normas que a regerão.
Aliás, foi movido por esse espírito e pela observância a tais pressupostos - é dizer, acesso à justiça, efetivação dos direitos fundamentais, protagonismo e proeminência do Judiciário - que o § 3.º, do artigo 109, da CF/88[1] deve ser analisado e cuja expressão estendeu, para os juízes de primeiro grau da justiça comum estadual, a competência material acerca dos litígios previdenciários promovidos contra o INSS, se inexistir órgão judicial federal na sede da comarca, delegando, ainda, ao legislador infraconstitucional a prerrogativa de ampliar o rol de demandas, para as quais a competência, a princípio, é da Justiça Federal.
O citado dispositivo constitucional, a rigor, é exemplo contundente do compromisso assumido pela CF/88 de ampliar os horizontes no que tange ao acesso à justiça, na medida em que a “interiorização” das varas federais ainda é um projeto, em certa medida, ambicioso, cuja consolidação, ao que parece, levará algum tempo para ocorrer, em razão dos limites orçamentários a que toda administração pública está sujeita.
Ou seja, sensível às exigências sociais por acesso aos serviços jurisdicionais, o constituinte de 1988 inovou o sistema, uma vez que não existia precedente normativo-constitucional dessa natureza em nenhuma das constituições brasileiras, do Império e da República.
Vale dizer também que, sob o ponto de vista lógico, administrativo e organizacional, a extensão de competência previdenciária à justiça comum estadual em primeira instância se justifica plenamente, já que, reconhecendo uma gama considerável de direitos sociais que, em larga medida deles, estão inseridos os direitos de índole previdenciária, a CF/88, por certo, já previra a escalada significativa de processos judiciais, em relação aos quais a Justiça Federal, até então confinada aos médios e grandes centros urbanos, além de somente atender parte dos jurisdicionados – privilegiando os moradores destas cidades – poderia, inevitavelmente, entrar em colapso e, por conseguinte, não prestar à sociedade um serviço jurisdicional razoável e condizente com os anseios desencadeados pela então carta constitucional.
Aliás, a própria CLT[2], é sempre bom lembrar, jocosamente caracterizada por muitos como jurássica, desde há muito já prevê atribuição similar de competência em favor da justiça comum estadual para as causas trabalhistas em certos casos. A capilarização da Justiça do Trabalho, no entanto, teve o mérito de, aos poucos, deixar de lado a aplicação dessa regra que, pelo que se sabe, ainda acontece em algumas regiões no norte e no nordeste do país.
Enfim, os princípios, os métodos e os objetivos propugnados pelo § 3.º, do artigo 109, da CF/88 se fundamentam à luz de uma abordagem variada, isto é, sob a óptica jurídica (constitucional e processual), política (distribuição equânime do poder), social (direitos previdenciários promovem a igualdade social) e lógico-administrativo (coaduna-se com o aumento de demanda nos órgãos jurisdicionais). É, por isso, instituto irrepreensível – a não ser para a Procuradoria Federal, cuja objeção consiste na dificuldade de defesa por conta da pulverização de processos – e que se firmou vigorosamente em nosso sistema jurídico-constitucional.
Apesar de todas essas evidências, a PEC 287/2016, que veicula a famigerada reforma da previdência social, pretende dar nova redação ao referido preceptivo constitucional, o que, em última instância, modifica radicalmente o sistema de competência material no âmbito previdenciário em relação à justiça comum estadual[3], dado que, se aprovada for, a subseção da Justiça Federal, independente de se localizar ou não na sede de comarca, adquirirá a competência exclusiva, a princípio, para processar e julgar a mencionada matéria e a Justiça Comum Estadual de primeiro grau ficará privada da competência previdenciária. Só será competente, todavia, se lei posterior lhe devolver esta e outras atribuições, haja vista que a extensão de competência poderá ser determinada para demandas dos mais diferentes matizes.
Conclusão: não obstante o fato de a nova PEC frustrar vários direitos previdenciários materiais, de quebra, busca também reduzir o acesso do cidadão ao Judiciário, indo na contramão de tudo que, a princípio, se preconizou na CF/88 em termos de acesso à justiça.
Comparando a redação de ambos os textos, nota-se perfeitamente que a diferença entre eles é fulcral, no que atine à natureza das normas cotejadas. Esclareça-se: a versão primeva delimita especificamente a competência para a justiça estadual na questão previdenciária, deixando a cargo do legislador infraconstitucional a prerrogativa de ampliar-lhe a competência, de modo que se vislumbra uma norma constitucional de eficácia plena na primeira parte do dispositivo e uma norma de eficácia limitada na parte final.
A contrario sensu, se e quando for promulgada a novel redação do § 3.º, do artigo 109, CF/88, da forma em que ora se apresenta, trará ela contratempos de ordem operacional, na medida em que incalculáveis autos de processo de conteúdo previdenciário em trâmite nas varas estaduais serão de lá desaforados e remetidos às federais. Tal fato seria, portanto, consequência imediata desta inovação constitucional. Trocando em miúdos, um forte congestionamento nas varas federais assoberbará os serviços jurisdicionais ali prestados.
Pelo teor da PEC 287/2016, repise-se, a regulamentação do futuro § 3.º, do artigo 109, da CF/88 dependerá da vontade política do legislador, o que tornará, então, uma norma constitucional de eficácia limitada em sua integralidade. Neste sentido, a atribuição de competência em matéria previdenciária aos órgãos jurisdicionais dos estados-membros virtualmente poderá acontecer, eis que outras matérias poderão ter primazia, ao sabor das preferências do poder legislativo infraconstitucional.
É lógico que a PEC 287/2016 ainda está sendo discutida no parlamento e espera-se que ocorra um amplo debate até sua eventual promulgação. Todavia, é necessário que se esteja atento aos detalhes da PEC ora em discussão.
Portanto, é com essa singela observação – referente à mudança na sistemática de competência na apreciação dos litígios previdenciários – que percebem-se, nitidamente, as bases econômicas e políticas sobre as quais foi forjada a PEC 287/2016.
Notas
[1] Art. 109. [...] § 3º Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.
[2] Art. 668 - Nas localidades não compreendidas na jurisdição das Juntas de Conciliação e Julgamento, os Juízos de Direito são os órgãos de administração da Justiça do Trabalho, com a jurisdição que lhes for determinada pela lei de organização judiciária local.
Art. 669 - A competência dos Juízos de Direito, quando investidos na administração da Justiça do Trabalho, é a mesma das Juntas de Conciliação e Julgamento, na forma da Seção II do Capítulo II.
[3] Art. 109 [...] § 3º As causas de competência da justiça federal poderão ser processadas e julgadas na justiça estadual, quando a comarca não for sede de vara do juízo federal, nos termos da lei.