A (im)pertinência da aplicação da desconsideração inversa no processo falimentar

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Sumário: Introdução. 1 A teoria da desconsideração e sua forma inversa;  2 Requisitos e Efeitos no processo falimentar; 3 posicionamentos doutrinários sobre a (im)pertinência da aplicação da desconsideração inversa no processo falimentar; Conclusão; Referências.

RESUMO:A jurisprudência já vem admitindo há algum tempo a desconsideração da personalidade jurídica como uma maneira de tentar acabar, ou pelo menos diminuir, as fraudes decorrentes da autonomia patrimonial. A forma inversa de desconsideração da personalidade jurídica ocorre quando há transferência do patrimônio do sócio para a sociedade, o que é caracterizado como fraude a interesses de terceiro, pois o indivíduo continua usufruindo os bens que estão em nome da sociedade, mas que não podem ser executados pelos credores. No âmbito da falência, o objetivo é conservar e otimizar o uso dos bens da empresa, ou seja, o processo falimentar tem como escopo analisar se o devedor tem ou não meios suficientes para o abatimento de suas dívidas, preservando os interesses de terceiros. Com isso, o presente trabalho tem como intenção analisar a pertinência da aplicabilidade da quebra da autonomia patrimonial de forma inversa dentro do processo falimentar, pois acerca desse tema a doutrina brasileira pouco se atenta e não há nenhuma previsão legal específica sobre o assunto. Essa pesquisa tem como principal objetivo caracterizar a aplicabilidade da desconsideração inversa no processo falimentar, contextualizando os conteúdos teóricos a respeito da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa, identificando os requisitos e efeitos causados pela aplicação da desconsideração da personalidade jurídica inversa no tocante ao processo falimentar e fazer uma análise sobre os posicionamentos doutrinários em relação à aplicação da desconsideração inversa no processo falimentar.

Palavras-chave: Falência. Personalidade Jurídica. Desconsideração Inversa.  


INTRODUÇÃO

É fato que a criatividade das pessoas diante das relações jurídicas não tem limites quando se busca um enriquecimento a todo custo. Com isso surge a desconsideração inversa da personalidade jurídica, como uma reação, uma forma do Poder Judiciário sanar algumas fraudes.

Tem-se como desconsideração inversa da personalidade jurídica o afastamento da autonomia patrimonial do meio social para atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, fazendo com isso que a responsabilidade seja da pessoa jurídica diante das obrigações do sócio, segundo entendimento do Supremo Tribunal de Justiça.

Com isso, caso ocorra o desvio do patrimônio do sócio para o patrimônio de sociedade falida, conduta caracterizada como fraude, se torna possível utilizar-se da técnica da desconsideração inversa da personalidade jurídica, fazendo com que atinja o patrimônio de todos os demais envolvidos.

O primeiro capítulo desse trabalho tem como objetivo desvendar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica e sua forma inversa, que é tida como uma técnica utilizada para sanar as fraudes de desvio de patrimônio decorrentes de sócios que buscam enriquecimento ilícito, tema principal da presente pesquisa.

O segundo capítulo, por sua vez, trará em seu desenvolvimento os requisitos e efeitos no processo falimentar, buscando esclarecer dúvidas pertinentes a respeito do tema em análise. Veremos que a desconsideração inversa da personalidade jurídica por se tratar de uma técnica utilizada para coibir atividades fraudulentas, não depende de dispositivo legal expresso para ser aplicada.

Por último, o terceiro capítulo tratará do tema principal da presente pesquisa, mostrando posicionamentos doutrinários sobre a pertinência ou não da aplicação da desconsideração inversa em situação de falência. Tem-se que não há consenso na doutrina sobre este instituto e quase nenhuma precisão legal específica sobre esse assunto. O capítulo fará abordagem dos posicionamentos de diversos autores sobre pertinência ou impertinência da aplicação da desconsideração inversa no processo falimentar.


1 A TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO E SUA FORMA INVERSA

Tudo começa com o Princípio da Autonomia Patrimonial que considera distintivamente a personalidade jurídica própria da empresa da de seus membros societários, ou seja, separa os direitos e obrigações das sociedades, dos direitos e obrigações de seus sócios. Assim clarifica Gladston Mamede: “há personalidade jurídica própria da sociedade, distinta da personalidade jurídica de seus sócios; há um patrimônio jurídico próprio da sociedade, distinto do patrimônio jurídico de seus sócios; e há uma existência jurídica própria da sociedade, distinta da existência jurídica de seus sócios” (MAMEDE, p. 400. 2012). Além disso, há uma limitação legal de responsabilização do patrimônio pessoal do sócio perante obrigações da sociedade, no limite de suas cotas.  

O que ocorre é que em atuações de má fé, o devedor pode se garantir deste princípio para realizar fraude contra seus credores, transferindo ativos pessoais para a sociedade e vice-versa. Resguardado pela autonomia patrimonial, o devedor fraudulento realiza operações societárias de desvio de bens que conseguem ocultar o ilícito, “livrando-se” assim da possibilidade de sanar obrigações diante de credores.

A desconsideração da personalidade importa justamente num instrumento de reação e repressão a esse ilícito. Desconsiderar funciona como um remédio à fraude. Permite “que se levante o véu da personalidade societária para responsabilizar pessoalmente aquele ou aqueles que sejam responsáveis pela prática do ato ilícito ou fraudatório” (MAMEDE, p. 401, 2012). Desse modo, podemos afirmar que considerar a autonomia patrimonial é a regra. A possibilidade de desconsiderá-la, nestes casos, é uma forma excepcional de coibir manipulações fraudulentas. Isso não quer dizer, de forma alguma, que a teoria da desconsideração vai de encontro à da consideração da personalidade. Seu intuito é justamente coibir práticas fraudulentas que se utilizam desta. 

O autor Fábio Ulhoa Coelho elenca a fraude que este instituto visa coibir, assim como os direitos que ele ampara: “A sociedade empresária, em razão de sua natureza de pessoa jurídica, isto é, de sujeito de direito autônomo em relação aos seus sócios, pode ser utilizada como instrumento na realização de fraude ou abuso de direito”. (COELHO p. 58, 2014).

A fraude ocorre quando o empresário desvia bens com o intuito de engabelar credores. Distorce a capacidade de liquidar dívidas. Transfere bens de propriedade da pessoa jurídica para a pessoa física, a fim de proteger o patrimônio, livrá-lo de execução, bloqueio ou penhora judicial capazes de cumprir a obrigação.

Na forma invertida, ocorre justamente o contrário: o sócio devedor transfere seus bens para a pessoa jurídica, também com o mesmo objetivo de, neste caso, “proteger” seu patrimônio pessoal da responsabilidade de alguma dívida. Dessa forma, ele põe-se numa situação de conforto, pois tem a possibilidade de continuar usufruindo o bem, já que detém controle sobre ele.

Geralmente, segundo a doutrina, a desconsideração inversa protege direitos de família. Caso típico ocorre quando o sócio, na iminência de dissolução do seu casamento e consequente divisão de bens, transfere-os para a pessoa jurídica sob seu controle, numa tentativa de excluí-los da partilha.  

É justamente essa prática que a desconsideração inversa visa coibir. Assim diz Coelho: “Desconsideração inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio.” (p. 68, 2014).

Com isso, surge o questionamento se há pertinência na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa no processo falimentar, já que a falência tem como objetivo conservar e otimizar o uso dos bens da empresa, ou seja, o processo falimentar tem como intenção analisar se a sociedade devedora tem ou não meios suficientes para o abatimento de suas dívidas, preservando os interesses dos seus credores.

Processualmente, a desconsideração da autonomia patrimonial ocorre por meio de ação judicial movida pelo credor ou pelo Ministério Público, conforme artigo 50 c.c que deverá demonstrar a presença da fraude, contra o sócio (ou sócios) que se utilizou ilicitamente da personalidade jurídica da sociedade falida; e não contra a pessoa jurídica que terá sua personalidade desconsiderada. Sob pena de ter o processo extinto sem resolução do mérito.  


2 REQUISITOS E EFEITOS NO PROCESSO FALIMENTAR

A desconsideração da personalidade não depende de dispositivo legal expresso para ser aplicada, pois se trata de um instrumento utilizado para coibir manipulações fraudulentas. No entanto, é importante que se observe a presença dos pressupostos necessários à sua decretação. Mamede ressalta que, como o artigo 82 da lei de falência prevê o procedimento ordinário do processo civil, afasta-se a possibilidade de reconhecimento da desconsideração ex officio.     

Coelho (p. 59, 2014) traz em seu estudo, quatro princípios que funcionam como critérios que podem justificar a aplicação da desconsideração. O primeiro ressalta a necessidade da presença de fraude. Nesta situação, a decisão do juiz pode impedir que terceiros sejam prejudicados. O segundo princípio ratifica o primeiro defendendo que a simples insatisfação de direito do credor não justifica a desconsideração, é preciso que haja ilícito. O terceiro verifica a pessoa física que agiu pela pessoa jurídica. E para o último princípio, cabe desconsiderar justamente para distinguir os sujeitos envolvidos. 

Segundo Coelho, a pertinência, a validade e o limite ao montante do investimento são pressupostos da desconsideração (p. 61, 2014). Além disso, ela deve ser aplicada excepcionalmente, como já mencionamos no primeiro capítulo, quando detectada a presença de fraude.  Se não houver fraude caracterizada, não há porque afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica.

A aplicação da desconsideração só tem pertinência quando a responsabilidade não tem como ser imputada diretamente ao sócio. No caso concreto, quando o juiz decide aplicar a desconsideração, isto não produz efeitos sobre a constituição da pessoa jurídica. Assim diz Coelho: “A aplicação da teoria da desconsideração não implica a anulação ou o desfazimento do ato constitutivo da sociedade empresária, mas apenas a sua ineficácia episódica” (p. 64, 2014).

Em suma, a desconsideração é capaz de responsabilizar a pessoa jurídica por dívida do sócio, assim como responsabilizar o sócio por obrigação da pessoa jurídica.      


3 POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE A (IM)PERTINÊNCIA DA APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA NO PROCESSO FALIMENTAR

Pudemos verificar no decorrer deste estudo, que no ordenamento brasileiro o instituto da desconsideração inversa carece de uma regulamentação. Não há previsões legais, doutrinárias ou jurisprudenciais suficientes para enfrentar sua concretização processual. O que se percebe são posicionamentos raros e em algumas hipóteses, completamente opostos.

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No caso específico da falência, dita o artigo 82 da Lei n. 11.101/ 2005 que a responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada será apurada no próprio juízo da falência, segundo os trâmites do procedimento ordinário previsto no código de processo civil.

A doutrina não entra em consenso em relação a aplicabilidade da teoria inversa da desconsideração da personalidade jurídica, por não haver nenhuma previsão legal sobre o assunto, com isso faz-se necessário explanar alguns posicionamentos doutrinários a respeito da impertinência ou pertinência da aplicação dessa desconsideração inversa no processo falimentar.

Fábio Ulhoa Coelho[5] considera pertinente à aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, sobre esse assunto, ele explica:

É certo que, em se tratando a pessoa jurídica de uma sociedade, ao sócio é atribuída a participação societária, isto é, quotas ou ações representativas de parcelas do capital social. Essas são, em regra, penhoráveis para garantia do cumprimento das obrigações do seu titular. Quando, porém, a pessoa jurídica reveste forma associativa ou fundacional, ao seu integrante ou instituidor não é atribuído nenhum bem correspondente à respectiva participação na constituição do novo sujeito de direito. (COELHO, 2010, p. 47).

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[6] posicionam-se no mesmo sentido de Fábio Ulhoa Coelho:

Ora, a partir do momento em que se isola o fundamento jurídico da admissibilidade desta teoria, fácil é depreender a admissibilidade do inverso: é possível, igualmente, desconsiderar a (mesma) autonomia da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigações assumidas pelos seus sócios. (FARIAS; ROSENVALD, 2009, p. 393).

Esses autores vêem a desconsideração inversa como sendo uma técnica que se aplica a determinados casos em que o sócio transfere seu patrimônio particular para a pessoa jurídica para se abster de suas obrigações pessoais, porém, continua se beneficiando do patrimônio pois tem o controle da pessoa jurídica para a qual os bens foram transferidos.

Ana Caroline Ceolin[7], por sua vez, posiciona-se em sentido contrário, ela entende que com a transferência dos bens pessoais do sócio para a pessoa jurídica, essa pessoa jurídica atua como terceiro adquirente, não ocorrendo assim o desvio de finalidade, e portanto, não ocorrendo a fraude. Sobre isso, Ana Caroline dispõe: “ao transferir-lhe seus bens pessoais, o sócio frustra a garantia geral de seus credores mediante o desfalque de seu acervo patrimonial passível de ser executado”.

Alexandre Couto Silva[8] também considera a aplicação da desconsideração inversa impertinente, e sobre esse seu posicionamento ele destaca dois motivos, o primeiro motivo se refere à probabilidade de penhora das participações societárias e o segundo motivo esta relacionado à possibilidade de anulação do negócio jurídico.

Alfredo de Assis Gonçalves Neto[9] posiciona-se no mesmo sentido de Alexandre Couto, ou seja, que a aplicação da desconsideração inversa é impertinente, fundamentando seu posicionamento da seguinte forma: “Não devem ser tomadas como desconsideração, igualmente, as hipóteses em que o mau uso da pessoa jurídica decorre de vício do negócio jurídico, que conduz à aplicação das normas gerais de anulação – ou, mais precisamente, de sua ineficácia (...)”. Em igual sentido, Marlon Tomazette[10] expõe:

Embora seja factível e extremamente útil, temos certas reservas quanto à desconsideração inversa, na medida em que, qualquer que seja a sociedade, o sócio terá quotas ou ações em seu nome [...] passíveis de penhora para pagamento das obrigações pessoais do sócio. [...] não é razoável admitir a desconsideração inversa com ônus para a sociedade, se é possível satisfazer os credores dos sócios sem esses ônus. (TOMAZETTE, 2009, p. 273).

João Batista Lopes[11], por sua vez, posiciona-se no sentido de que se o Código Civil não dispõe sobre a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, então em razão disso se torna mais provável que a jurisprudência tenha uma interpretação no sentido de aplicar extensivamente a norma da desconsideração propriamente dita.

Tendo em vista os posicionamentos destacados, por não haver um consenso entre os doutrinadores, conclui-se no sentido de que a aplicação da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica requer uma observação do caso concreto.

Em síntese, a desconsideração inversa da personalidade jurídica consiste na retirada momentânea e excepcional da autonomia patrimonial da pessoa física a fim de estender o peso de suas obrigações à pessoa jurídica da qual constitui sociedade, com o intuito de coibir atos ilícitos e fraudulentos praticados por este(s) sócio(s), que se valem do princípio da autonomia patrimonial para burlar a lei prejudicando assim seus credores.    

Diante do que foi exposto, concluímos então ser impertinente desconsiderar a personalidade jurídica de forma inversa numa situação em que a pessoa jurídica esteja enfrentando um processo de falência, visto que nesta ocasião a empresa encontra-se numa situação juridicamente insolvente. Já sofre de crise econômico-financeira e patrimonial sem alternativa de superação, onde este patrimônio restante configura como garantia dos seus próprios credores, sem possibilidade de arcar com obrigações de seus sócios.  

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Sobre os autores
Byhanca de Sá Varão

Aluna do 7º Período do Curso de Direito, vespertino da UNDB .

Nydia Lycia Soares Guimaraes

Aluna do 6º período vespertino.

Humberto Oliveira

Professor, Mestre, orientador.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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