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Autonomia da vontade versus coletividade. Obrigações na democracia (humanística)

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A moral pode corrigir o direito? Devemos nos guiar pelo direito natural? O que há de humano em limitar a liberdade individual?

"Nenhum homem é uma ilha, completamente isolado. Cada homem é um pedaço do continente, uma parte do todo. Se um torrão for levado pelo mar, a Europa ficará menor, não importa se for um promontório, a casa do seu amigo ou a sua própria. A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte da humanidade." (John Jones)

Em poucas palavras, Jones sintetiza a percepção do que seja a dignidade humana.


SER LIBERTÁRIO É SER HUMANIZADOR

John Locke é um poderoso aliado dos libertários. Como qualquer filósofo, por ser humano, diverge, em alguns pontos, de outros libertários, e há divergências entre os outros libertários. É a natureza humana. Divergir, a capacidade natural que impulsionou o ser humano ao patamar de desenvolvimento, não sendo final, político, moral, ético e tecnológico

Locke dizia que os direitos fundamentais são o Direito Natural (direito à vida, à liberdade, à propriedade). Sendo um direito natural, este direito existe muito antes de qualquer governo, leis e o próprio Estado. No Estado de Natureza todos os seres humanos são livres, portanto não existe hierarquia entre os seres humanos. Pelo Direito Natural, segundo Locke, cada ser humano é dono de si mesmo (autopossessão). Contudo, pelo Estado de Natureza, o próprio ser humano possui obrigações consigo e com os seus semelhantes (Locke não faz diferenças quanto à morfologia, sexualidade, religião, ideologias políticas, pessoa com necessidades especiais ou não. Afinal, todos os seres humanos são regidos pelo Estado de Natureza, possuindo, assim, o Direito Natural. São os direitos fundamentais).

Cada ser humano, pelo Direito Natural, tem o dever de se autopreservar, pois Locke não admite qualquer possibilidade de autodestruição (suicídio). Cada ser humano tem a obrigação de respeitar uns aos outros, pois todos são regidos pelos direitos fundamentais. Isso vale dizer que a ninguém, pela Lei Natural, é permitido violar a dignidade humana de quem quer que seja. E pela mesma Lei, nenhum ser humano pode se apropriar de propriedade ou qualquer posse alheia. A liberdade de qualquer ser humano encontra limite na Lei da Natureza.

Ainda segundo Locke, pelo Direito Natural, cada ser humano pode e deve defender os seus direitos fundamentais quando violados. Destarte, Locke não descarta o uso da força (legítima defesa ou estado de necessidade), e até a guerra, para cada ser humano defender suas autonomias (Direito Natural). Assim, cada ser humano é um juiz para defender o Estado de Natureza. Todavia, o filósofo sabia das fraquezas e dos limites de entendimento, e consequentemente de seus enganos, quanto ao ser juiz. Os excessos podem ser cometidos ao ser defender o Estado de Natureza. Locke afirmava que para o ser humano não agir, unicamente, pelo Estado de Natureza, e não cometer excessos, é preciso o surgimento do Estado de Consentimento. Ou seja, abdicação de alguns direitos em favor da manutenção da coletividade.


O SER HUMANO COLETIVO OU INDIVIDUAL? MORAL E COMPORTAMENTO

Agir pelo direito natural, em sua plenitude, é agir sob selvageria. Selvageria, pois, em pleno século XXI, nós, seres mortais e imperfeitos, diante dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, temos o conhecimento da banalidade do mal. Hanna Arendt demonstrou o quanto a razão, destituída de valor moral, pode ser animalesca. Convicção, puramente ideológica, destitui o ser humano de moralidade em seus próprios atos. Ora, pela lógica ideológica nazista (eugenia, cujo autor se chama Francis Galton, foi aplicada pela primeira vez nos EUA, cujas norte-americanas consideradas portadoras do 'sangue ruim', não poderiam ter filhos; o aborto e as esterilizações eram forçados pelo Estado norte-americano), suas atitudes eram benéficas para todos os seres humanos, os meios justificam os fins. Porém, os nazistas possuíam moral:

A Áustria alemã deve voltar a fazer parte da grande Pátria germânica, aliás sem se atender a motivos de ordem econômica. Mesmo que essa união fosse, sob o ponto de vista econômico, inócua ou até prejudicial, ela deveria realizar-se. Povo sem cujas veias corre o mesmo sangue devem pertencer ao mesmo Estado. Ao povo alemão não assistem razões morais para uma política ativa de colonização, enquanto não conseguir reunir os seus próprios filhos em uma pátria única. Somente quando as fronteiras do Estado tiverem abarcado todos os alemães sem que se lhes possa oferecer a segurança da alimentação, só então surgirá, da necessidade do próprio povo, o direito, justificado pela moral, da conquista de terra estrangeira. O arado, nesse momento será a espada, e, regado com as lágrimas da guerra, o pão de cada dia será assegurado à posteridade. (HITLER, Mein Kampf/Minha Vida, p. 5)

A burguesia vê, como no teatro e no cinema, no lixo da literatura e na torpeza da imprensa, dia a dia, o veneno se derramar sobre o povo, em grandes quantidades, e admira-se ainda do precário "valor moral", da "indiferença nacional" da massa desse povo, como se a sujeira da imprensa e do cinema e coisas semelhantes pudessem fornecer base para o conhecimento das grandezas da Pátria, abstraindo-se mesmo a educação individual anterior. Pude então bem compreender a seguinte verdade, em que jamais havia pensado:

O problema da "nacionalização" de um povo deve começar pela criação de condições sociais sadias como fundamento de uma possibilidade de educação do indivíduo. Somente quem, pela educação e pela escola, aprende a conhecer as grandes alturas, econômicas e, sobretudo, políticas da própria Pátria, pode adquirir e adquirirá, certamente, aquele orgulho íntimo de pertencer a um tal povo. Só se pode lutar pelo que se ama, só se pode amar o que se respeita e respeitar o que pelo menos se conhece. (HITLER, Mein Kampf/Minha Vida, p. 33).

A ira aos judeus:

Os judeus da Rússia, das terras habsbúrgicas da Galícia, da Hungria ou da Morávia, como era o caso dos Freud, não paravam de chegar a Viena. Os financistas, os mascates, os pequenos lojistas, os comerciantes atacadistas, os jornalistas, os médicos e os advogados eram em sua grande maioria judeus. Mas os judeus emancipados também participavam ativamente da vida cultural e científica de Viena: editores, donos de galerias, empresários teatrais e musicais, músicos, escritores, maestros, pintores, cientistas, filósofos e historiadores — fenômeno que era chamado de “impacto da invasão judaica” pelos anti-semitas. Sem restrições civis, ouvia-se um murmúrio, como usem humor, contra os judeus e alguns pediam sua expulsão do território austríaco. Em 9 de maio de 1873, ano em que Freud ingressou na universidade, veio a quebrado mercado de ações, que ficou conhecida como a Sexta-Feira Negra. Banqueiros, homens de negócios, artesãos e agricultores faliram do dia para a noite. Os judeus se tornaram, então, o bode expiatório do colapso financeiro, intensificando o antissemitismo. Protestos se realizavam na frente da Bolsa de Ações de Viena, com manifestantes carregando cartazes com caricaturas de judeus. (PSICANÁLISE PASSO A PASSO, p. 7)

Qual a diferença entre uma tribo primitiva canibalesca e os nazistas? Nenhuma, pois ambos agiam pelos seus valores humanos aceitos e compreensíveis do que seja violência ou não violência. Para as tribos, o canibalismo é uma forma de absorver o espírito do guerreiro vencido. Já para os nazistas, o extermínio dos judeus era a maneira correta de purificar o mundo, sendo os próprios nazistas como portadores de qualidade superiores, "missionários" da tarefa de higienizar o mundo. Seja qual for o tipo de crença, a humanidade atual tem a capacidade de ratificar que tais comportamentos, das tribos e dos nazistas, são desumanos. Existindo tal pensamento — razão mais emoção — é possível saber o que é bom ou mal? Qual ser vivo quer ser subjugado, maltratado? Nenhum, seja animal humano ou animal não humano.

Quanto à moral correta. Era moralmente correto aos gregos (Grécia Antiga) escravizarem os povos vencidos. Para os romanos (Roma Antiga) era moralmente correto jogar os cristãos aos leões. Era moralmente correto, pela Igreja Católica, a Inquisição, as Cruzadas. No início do século XIX, era moralmente aceito o marido, em nome de sua honra, matar sua mulher, em caso de traição. Também era moralmente aceita a escravidão negra e o comércio transatlântico. Na América Latina, a Operação Condor era moralmente aceita para evitar o comunismo. Era moralmente aceito, para Richard Nixon, combater o uso da maconha, por ser ela uma 'arma' comunista. Para os czares, era moralmente correto lutar contra os revolucionários (Revolução Russa de 1917).

Vejam que existe uma moral — não adentrarei em minúcias de diferenças entre ética e moral, pois falo da essência humana e seu comportamento — em qualquer coletividade e até individualmente. Locke fala no contrato social como forma de se evitar que o ser humano haja puramente pelo Estado de Natureza, o que pode gerar carnificinas, pois cada qual lutará pelos seus direitos fundamentais. Sigmund Freud dizia que pela diversidade de personalidades humanas, somente um pacto social permitiria um mínimo de paz para se viver em comunidade. Tanto Locke quanto Freud diziam que é através da comunidade que o ser humano consegue viver sem se destruir, totalmente.

Logo, as liberdades individuais sempre foram suprimidas ao longo da vivência humana no orbe. Não há como escapar, pois a individualização, plena, como o eremita, leva ao próprio perecimento do ser humano — estando doente, o eremita não terá forças para providenciar a profilaxia. Nenhum ser humano tem a capacidade de fazer tudo sozinho, pois não detém todos os conhecimentos necessários para a sua própria sobrevivência e desenvolvimento da razão.

Quando se invoca o individualismo pleno, a legitimação é falaciosa. Por exemplo, quando uma pessoa se diz no direito de não ajudar outra pessoa, ela mesma invoca para si o dever de não exigir que a outra pessoa não preste qualquer ajuda. Ora, qual ser humano não quer ser socorrido? Somente quando o próprio instinto de sobrevivência se acha diluído. E pode? Sim, dependendo do tipo de educação — samurais e Seppuku — ou sob os efeitos de drogas psicoativas (Segunda Guerra Mundial. O uso de crystal meth e benzedrina: o super-homem).

Certa vez levantei uma discussão entre os nutricionistas. Viver com dignidade. O que seria? Por exemplo, há uma discussão de que a pobreza em si não é certeza de o ser humano agir com violência, ou violar o contrato social. Metabolismo basal, o mínimo para se garantir o bom funcionamento do organismo. Admitimos que uma pessoa tivesse uma ração diária para garantir o metabolismo basal. A pessoa vive com dignidade. Logo, não se pode dizer que a pessoa viva na miséria. Entretanto, o simples andar exige mais calorias (energia). Se o cidadão tem alimentação suficiente para garantir o metabolismo basal, a sua vida já é indigna: vive como miserável. Quando os judeus eram escravizados pelos egípcios, a alimentação garantia a sobrevivência, mas não por muito tempo, já que as condições de trabalho eram exaustivas, o tempo de descanso diminuto, e a própria alimentação, provavelmente, não supria às necessidades fisiológicas.

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Agora admitimos que o ser agisse com violência — instinto de sobrevivência — para obter mais alimentos, portanto o corpo, filologicamente falando, exige mais calorias, minerais, vitaminas e proteínas para as necessidades diárias. Seu comportamento é totalmente criminoso?

Atividade e alimentação. Digamos que, agora, uma nutricionista calcula, de forma habilidosa, o gasto calórico diário. Uma dieta balanceada — vitaminas, sais minerais, proteínas, lipídios — garante o bom funcionamento orgânico. Há dignidade na vida desse indivíduo assistido pela nutricionista. Porém, a nutricionista recebe ordens de planificar a dieta apenas com os alimentos permitidos pelo Estado, ou líder da comunidade. O líder tem a liberdade de comer tudo o que quiser, sem qualquer restrição. Caso o indivíduo que tem sua dieta controlada pela nutricionista quisesse exigir o direito de comer outros alimentos, e cometesse um furto ou roubo, este indivíduo estaria agindo criminosamente?

Por exemplo, o Brasil é uma potência em agronegócio. A maioria do povo brasileiro é subnutrido, não mais faminto — graças aos programas sociais a partir da década de 1990. Podemos admitir que essa desigualdade social garante dignidade humana aos excluídos de uma alimentação diversificada e nutritiva?


CONDUTA E RESPONSABILIDADE SOCIAL

Quem tem culpa num estupro, o estuprador ou a cultura? Depende do contexto sociopolítico, ou melhor, dos períodos históricos. Contemporaneamente, a relação sexual tem que ser consentida.

Estupro

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 2º Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)”

O sujeito ativo na coação pode ser tanto o homem quanto a mulher. Se o homem, em qualquer fase da relação sexual, ou mesmo antes de iniciar, não quiser, a mulher tem que respeitá-lo, ou seja, desistir do ato. O mesmo vale para o homem que quer iniciar, ou continuar a praticar ato libidinoso com a mulher. Ela tem o direito de pedir a cessação do ato. Ambos são detentores de direito, o direito à preservação de seus templos corporais.

“Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)”

Isso vale até para os profissionais do sexo [prostituição]. Se o cliente quiser forçar o profissional, o crime é consumado. Alguns inquirirão:

“Profissionais do sexo possuem templos corporais”?

Se nos basearmos nas religiões de cunho altamente dogmático, não. Pois a prostituição já é pecado, e pessoa deve ser apedrejada. Se analisarmos pelo ângulo dos direitos humanos de Jesus Cristo, o corpo é um templo, e deve ser sempre respeitado e preservado de qualquer ataque. Pois, “Quem não tem pecado, que lance a primeira pedra!”. É a máxima filosofia de respeito à vida, de qualquer ser humano, não importando a sua condição física, religiosa, conduta.

No entanto, o estupro pelo marido era justificado:

"Exercício regular de direito. Marido que fere levemente a esposa, ao constrangê-la à prática de conjunção sexual normal. Recusa injusta da mesma, alegando cansaço. Absolvição mantida. (...)" (ANDREUCCI, 2012, p. 526)

Se o estupro era permitido pela Justiça, que deve apenas aplicar o que foi convencionado pelos representantes do povo (Poder Legislativo), e se os maridos exigiam o ato sexual forçado, e já que o exercício regular de direito é universal, a cultura assim queria e consentia o estupro da mulher. Conclusivamente, o estuprador, legalizado, é um produto da cultura. O estupro (era) um consentimento cultural. No entanto, com a promulgação da CRF de 1988, e direitos iguais entre homens e mulheres (art. 5º, I), não seria possível admitir que o sexo masculino tivesse pelos poderes sobre a mulher. A força da norma constitucional modificou as leis infraconstitucionais, o Código Penal (as normas contidas nele) e o Código Civil (revogado o CC de 1916, por exemplo). As mulheres tiveram o seu direito de dizer "não" aos seus maridos. No melhor linguajar feminista, abre as pernas quando quiser, quando sentir vontade. Não há dominação do homem ao corpo da mulher.

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Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HENRIQUE, Sérgio Silva Pereira. Autonomia da vontade versus coletividade. Obrigações na democracia (humanística). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5031, 10 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55769. Acesso em: 22 dez. 2024.

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