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Processo disciplinar e tortura.

Os processos administrativos que aniquilam carreiras e vidas

27/03/2017 às 12:56
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Aqueles que comandaram o regime militar que vigorou no Brasil ficariam ruborizados com as agressões que atualmente são feitas à honra, à carreira e à vida de servidores. Lançadas sem pressupostos dentro de processos que são farsas jurídicas, essas infortunadas pessoas experimentam tortura psicológica do pior nível.

Os gestores têm o histórico dever de garantir a regularidade dos ofícios públicos, a obediência à hierarquia e o cumprimento das normas de serviço. Ao crivo da lei, o funcionário que não se ajustar a essa linha está sujeito às sanções administrativas que são determinadas no corpo de um processo administrativo de caráter disciplinar. Essa é uma regra que sobrevive desde a instalação da República. O problema que sobrevém é o emprego irracional do sistema. O que deveria ser um instrumento de segurança para a própria sociedade, credora da lisura da administração, passou a ser um ralo pelo qual são despejados recursos do erário em procedimentos sem lógica, sem necessidade e, principalmente, de resultado inócuo, em 90% dos casos. E o que deveria ser uma garantia do acusado (o devido processo legal) é uma tortura psicológica que não raramente se arrasta por uma década. Tem-se, portanto, uma rotina que percorre tenebrosos terrenos, do despautério no consumo de verbas do contribuinte ao da perseguição, com processos sem regras e vidas destroçadas por injustiças.

O regime militar que vigorou no Brasil por duas décadas ficaria ruborizado com agressões que atualmente são feitas à honra, à carreira e à vida de servidores. Lançadas sem pressupostos dentro de processos que são farsas jurídicas, essas infortunadas pessoas experimentam tortura psicológica ao nível das piores ditaduras. Muitos, acometidos de doenças psicossomáticas, perecem no caminho; outros, invadidos pela depressão, buscam a solução extrema do suicídio.

Prerrogativas da advocacia – como acesso aos autos, o direito de manifestação e o direito de ver as razões consideradas – são frequentemente tratadas com desprezo nos balcões da burocracia. Teses sustentadas com esmero resultam ignoradas sem a devida motivação; ou os arrazoados para desconstituí-las são desprovidos de mínimo amparo na ciência jurídica.

A exemplificar, servidor de uma das mais relevantes carreiras de Estado foi demitido sem que contra ele houvesse qualquer prova nos autos. Mas a conclusão da administração foi:

“(...) o fato de não existir provas nos autos, ora sob análise, não significa, de pronto, a não responsabilidade”.

Ou seja, a inexistência de prova não tem qualquer repercussão. A prova é um detalhe, como sustentava o guerrilheiro Ernesto Che Guevara, mito inadvertidamente celebrado por gerações:

“Para mandar homens para o pelotão de fuzilamento não é necessária nenhuma prova judicial. Estes procedimentos são um detalhe arcaico burguês.”.

Inexistência de provas e provas obtidas por meios ilícitos são correntes nas ações disciplinares intentadas pela administração federal. Nega-se à defesa o penhor que têm os bandidos da pior espécie nas ações criminais. E não há, no espaço administrativo, possibilidade real de reconhecimento desse arbítrio, porque no ambiente administrativo o homem se despersonaliza, opera como máquina, torna-se insensível e passa a viver em um mundo diferente, de organogramas, fluxogramas e estatísticas. Isso é essencialmente a burocracia; e a burocracia é desprovida de inteligência e de alma.

Diz-se, em relação a uma Corregedoria Federal em São Paulo, por exemplo, que quem advoga perante ela está apto a atuar em qualquer tribunal de exceção do mundo. Isso porque os processos ali instaurados seguem como trens desgovernados, cuja maior probabilidade é produzir desgraças.

Nesse contexto, os advogados precisam reagir à altura e os juízes devem estar atentos. Os primeiros não podem ser meros coadjuvantes de um teatro de horror; os segundos não podem aceitar aquilo que vem com o timbre do Estado como sendo necessariamente a expressão da verdade e do direito.

Um servidor injustiçado, se persistir, tem chance de reverter a tragédia, em média, nove anos depois. Precisa, todavia, acionar o Recurso mais que Extraordinário (recurso financeiro alcançado por familiares) e ser devoto de uma santa singular: a Santa Paciência. Há registro de decisão no Supremo Tribunal Federal 41 anos depois. Então, dizer-se que a parte tem direito a recursos nos casos de decisões administrativas e judiciais equivocadas é desconhecer por absoluto o que representa na prática esse instituto.

Enquanto a administração não empregar meios racionais de controle da disciplina – e eles existem –, o contribuinte continuará a pagar pela fanfarrice de gestores improvisados; e nesse tempo, enquanto o modelo não for juridicamente seguro, que os servidores tenham especial cuidado quando forem acionados em sindicâncias ou processos disciplinares. Não descuidem da qualidade da defesa. O enfrentamento deve ser feito com visão estratégica, para desde o início mapear as ilegalidades, eventualmente, sustentadas na Justiça. E o resto é orar para que os magistrados leiam as peças e respectivos fundamentos científicos, entendam os disparates e julguem com equilíbrio. 

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Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Léo Silva. Processo disciplinar e tortura.: Os processos administrativos que aniquilam carreiras e vidas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5017, 27 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55826. Acesso em: 26 abr. 2024.

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