A sistemática brasileira de processos coletivos está integralmente assentada sobre uma distinção estrutural entre direitos designados por difusos, coletivos e individuais homogêneos. Essas categorias servem de base para toda a disciplina processual das ações coletivas, condicionando diretamente o regime da legitimidade para agir e a abrangência da coisa julgada (SALLES, 2009, p. 803).
A tutela coletiva, destarte, abarca dois tipos de interesses ou direitos: a) os essencialmente coletivos (lato sensu), que são os difusos, definidos no inciso I do parágrafo único do art. 81 do CDC, e os coletivos propriamente ditos, descritos no inciso II do parágrafo único do art. 81 do CDC; b) os de natureza coletiva apenas na forma em que são tutelados, que são os individuais homogêneos, definidos no inciso III do parágrafo único do art. 81 do CDC. O legislador preferiu defini-los para evitar que dúvidas e discussões doutrinárias, que ainda persistem a respeito dessas categorias jurídicas, pudessem impedir ou retardar a efetiva tutela dos interesses ou direitos dos consumidores e das vítimas ou seus sucessores. Outrossim, os termos interesses e direitos foram tomados como sinônimos, certo é que, a partir do momento em que passam a ser amparados pelo Direito, os interesses assumem o mesmo status de direitos, desaparecendo qualquer razão prática, e mesmo teórica, para a busca de uma diferenciação ontológica entre eles (WATANABE, 2001, p. 739).
Na conceituação dos interesses ou direitos difusos, optou-se pelo critério da indeterminação dos titulares e da inexistência entre eles de relação jurídica base, no aspecto subjetivo, e pela indivisibilidade do bem jurídico, no aspecto objetivo. Os interesses ou direitos coletivos foram conceituados como os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas, entre si ou com a parte contrária, por uma relação jurídica base (art. 81, parágrafo único, inciso II, do CDC). Tal relação jurídica base é a preexistente à lesão ou ameaça de lesão do interesse ou direito do grupo, categoria ou classe de pessoas, e não a relação jurídica nascida da própria lesão ou ameaça. O inciso III do parágrafo único do art. 81 do CDC conceitua os interesses ou direitos individuais homogêneos como os decorrentes de origem comum, permitindo a tutela deles a título coletivo. A homogeneidade e a origem comum são, portanto, os requisitos para o tratamento coletivo dos direitos individuais (WATANABE, 2001, p. 741, 742-743, 745).
Os interesses difusos podem ser empiricamente entendidos como relações de utilidade, concernentes a bens ou situações, que não têm titulares individualizados pela lei (como acontece, ao invés, pelo interesse que constitui o substrato do direito subjetivo, de onde vem a sua célebre definição por Ihering como “interesse juridicamente protegido”), mas resguardam a coletividade em geral ou parcela dela. Se a lei cria ou reconhece um centro de referência de um desses interesses difusos, isto é, um ente exponencial ao qual ligá-lo como titular, não há problemas: o interesse é transindividual como matriz prática, mas, sob plano jurídico, já é “individualizado”, e aquele ente o poderá certamente defender pelas vias judiciais. Quanto à construção substancial de um interesse difuso, isto é, quanto ao seu reconhecimento no plano do direito material, o esforço do intérprete deve se endereçar à procura da sua consagração como posição juridicamente protegida. Tal busca envolve, no mínimo, valores e princípios constitucionais e pode assim ter sucesso. Se, e na medida em que, essa busca não atinge um resultado concreto diante do ordenamento jurídico, a exigência social que está no fundo de um interesse difuso (que, antes, se identifica com ele) deve esperar a intervenção do legislador que sancione, isto é, discipline, a sua relevância (FAZZALARI, 2006, p. 342-343, 345).
No tocante aos interesses coletivos, a característica que os diferencia dos difusos é a possibilidade de determinação dos membros integrantes do grupo, permanecendo a natureza indivisível do objeto, a conflituosidade interna, a versatilidade no espaço e no tempo e a indisponibilidade do objeto comum a ambas espécies, devendo-se registrar que, tal qual nos interesses difusos, não se materializam em uma titularidade única e concreta, à medida que são próprios de grupo de membros da comunidade. A possibilidade de determinação adrede mencionada decorre da existência de uma relação jurídica base unindo os componentes do grupo entre si ou com a parte adversária, provocando uma aderência jurígena, ou seja, há um vínculo organizativo que os atrai. Através dessa agregação ou coesão é viável afirmar que eles estão mais fortalecidos, porém é bom frisar que a união dos interessados foi perfectibilizada a priori, e não somente em vista da tutela jurisdicional. Desta forma, não se fala, nos interesses coletivos, em circunstâncias fáticas, diversamente do que se dá com os difusos (MAGGIO, 2005, p. 120-121).
Vale notar que a categoria dos chamados interesses individuais homogêneos é um tanto peculiar. Não se trata aqui de defesa de direitos coletivos, mas de defesa coletiva de direitos individuais. Na verdade, cuida-se de direitos tipicamente individuais e, portanto, fracionáveis, aos quais o ordenamento concede a possibilidade de defesa coletiva, em razão de possuírem uma origem comum. Por origem comum se entende a coincidência de situações jurídicas entre os vários lesados entre si ou entre eles e a parte contrária. Assim, as vítimas de um acidente de consumo ou os adquirentes em face do fornecedor de determinado produto (SALLES, 2009, p. 804). A proteção coletiva desses direitos (tutela de direitos individuais por meio de uma técnica coletiva, isto é, adequada às lesões próprias das relações de massa), além de eliminar o custo das inúmeras ações individuais e de tornar mais racional o trabalho do Poder Judiciário, supera os problemas de ordem cultural e psicológica que impedem o acesso à justiça e neutraliza as vantagens dos litigantes habituais e dos litigantes mais fortes (como as grandes corporações). Os direitos individuais homogêneos, destarte, embora não sejam definidos como transindividuais, podem ser tutelados por meio de ação coletiva, a qual tem, neste caso, seu procedimento específico delineado a partir do art. 91 do CDC (MARINONI; ARENHART, 2003, p. 753-754).
Cumpre ressaltar que, processualmente, o que qualifica o direito como difuso, coletivo ou individual homogêneo é o conjunto formado pela causa de pedir e pelo pedido deduzido em juízo. O tipo de pretensão e seu fundamento, ou seja, o objeto litigioso trazido pelo autor da demanda, é que caracterizam a natureza do direito para fins de tutela jurisdicional (NERY JR.; NERY, 1999, p. 1864; WATANABE, 2001, p. 750).
A definição da legitimação ativa para as demandas coletivas é questão que envolve dificuldades legislativas, em virtude da complexidade teórica e prática da matéria. Tais dificuldades decorrem de que, quando se trata da defesa em juízo dos interesses supraindividuais, normalmente aquele que se pretende legitimado não é diretamente titular deles ou, ainda que o seja, não exerce essa posição em caráter de exclusividade. Antes da definição do perfil legislativo da legitimação coletiva, há que ser identificada a tendência adotada pelo legislador e qual a concepção, em termos de inerência subjetiva, dos bens tutelados em matéria de interesses metaindividuais. Os extremos são sempre indesejáveis, sendo identificáveis nas hipóteses de adoção de concepção publicista ou privatista dos interesses transindividuais. Assim, identificando-se os interesses metaindividuais como simplesmente públicos, provavelmente o legislador partiria para a solução da legitimação ad causam de órgãos ou entidades públicas, ao passo que, identificando-se tais interesses como sendo meramente privados, haveria provavelmente a adoção da legitimação de entidades privadas ou do próprio cidadão, com exclusividade. As soluções extremadas tendem ao equívoco e devem ser evitadas (LEONEL, 2002, p. 154-155).
A solução mais adequada para o modelo de legitimação varia conforme as diversidades de cada sistema. A postura legislativa adotada em certo local pode ou não ter o mesmo sucesso se simplesmente transplantada para outro ordenamento. Porém, as experiências do Direito comparado devem ser aproveitadas. A determinação da legitimação para agir é, antes do que um problema técnico-jurídico, uma questão de política legislativa. As soluções adotadas têm certa relatividade, pois servem apenas enquanto adequadas para resolver os problemas verificados na realidade da vida em sociedade e seus desdobramentos no âmbito da jurisdição. Em que pese a validade da atuação tanto de entes públicos como privados, ou mesmo do cidadão, na defesa de interesses transindividuais, a perfeição do modelo de legitimação não é identificada somente em um, e tampouco em outro polo da equação. A concessão de legitimação para agir a órgãos públicos apresenta maior probabilidade de êxito na implementação da tutela coletiva, em virtude da melhor estruturação destes para a promoção da respectiva defesa em juízo, e ainda da possibilidade de adoção da regra da indisponibilidade da ação, o que é inviável com relação ao particular legitimado. Outrossim, a legitimação para a demanda coletiva deve se afastar dos resquícios da concepção tradicional, firmada em decorrência da visão liberal, preconizando a impossibilidade da existência de corpos intermediários – aptos a compartilhar o poder com o Estado –, na ideia de que das “coisas” coletivas somente este último é que deveria cuidar. A importância da ampliação da legitimação para a defesa dos interesses metaindividuais em juízo se reflete na própria concepção política do Estado, implicando a implementação da democracia participativa (LEONEL, 2002, p. 155-156).
REFERÊNCIAS
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006.
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
MAGGIO, Marcelo Paulo. Condições da ação: com ênfase à ação civil pública para a tutela dos interesses difusos. Curitiba: Juruá, 2005.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do processo de conhecimento. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil comentado: e legislação processual civil extravagante em vigor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
SALLES, Carlos Alberto de. Duas faces da proteção judicial dos direitos sociais no Brasil. In: ______ (Coord.). As grandes transformações do processo civil brasileiro: homenagem ao professor Kazuo Watanabe. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 787-818.
WATANABE, Kazuo. Disposições gerais. In: ______ et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. tít. III, cap. 1, p. 722-784.