O panorama jurídico brasileiro atual.

STF: presunção de inocência e impacto no sistema carcerário

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16/02/2017 às 00:10
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O posicionamento do Supremo Tribunal federal – STF sobre a temática específica do início do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado e os reflexos provenientes disso com relação ao princípio da presunção de inocência.

“Existem duas coisas que você perde justamente quando você as guarda, e são elas afeto e conhecimento”.

(Mário Sérgio Cortella)

RESUMO: O presente trabalho cuida em apontar o posicionamento do Supremo Tribunal federal – STF, sobre a temática específica do início do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado, observando os reflexos provenientes disso com relação ao princípio da presunção de inocência, que se insere como impeditivo ou não à decisão atual do STF, e ainda o impacto no sistema carcerário brasileiro. Relatamos o conhecido caso dos irmãos “Naves”, os quais foram vítimas no caso em que ficou conhecido como o maior erro do judiciário brasileiro, o que nos conduz a pensar sobre o risco do cumprimento da pena antes do fim do devido processo legal. E para tanto, compilou-se, efetuando uma pesquisa bibliográfica de doutrinadores, a respeito dos princípios envolvidos, elaborando um comparativo entre os argumentos contidos nos votos dos doutos Ministros do STF.

Palavras-chave: Trabalho acadêmico. STF. Princípio. Presunção de Inocência. Sistema garantista (SG).

SUMÁRIO:CAPÍTULO 1 - INTRODUÇÃO ..CAPÍTULO 2. OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS .2.1 – O estado de direito e o direito penal . 2.2 – O princípio da não culpabilidade ou da presunção de inocência. 2.3 – A doutrina e o art. 5º, LVII da Constituição de 1988. CAPÍTULO 3 – O STF, breve apresentação. 3.1 – O STF – BREVE HISTÓRICO.3.2 – Os votos dos ministros sobre o HC 126.292. CAPÍTULO 4 – AS POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS SOBRE O SISTEMA PENAL.4.1 – A colocação do Brasil no ranking mundial. 4.2 – 4.2 – A redução da maioridade penal como fator prejudicial. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..REFERÊNCIAS


1. INTRODUÇÃO

No ano de 2016, o Supremo Tribunal Federal – STF, a corte mais elevada no sistema jurídico brasileiro, alterou um posicionamento seu sobre a interpretação do inciso LVII, do art. 5º que tem a seguinte disposição: “ninguém será considerado culpado até o trânsito e julgado de sentença penal condenatória”.

Isso, por sua natureza, providenciou a possibilidade de habilitar o início ao cumprimento de pena restritiva de liberdade após confirmação da condenação em grau de recurso, mesmo antes do trânsito em julgado da referida sentença, a depender de recurso especial ou recurso extraordinário.

Ao mudar a sua jurisprudência, a Corte possibilitou o cumprimento de pena restritiva de liberdade, após confirmação da condenação em grau de recurso, e abriu-se novamente as discussões sobre o princípio da presunção de inocência.

O presente trabalho envida esforços para fornecer ao leitor, uma ambientalização geral da situação jurídica atual, pela qual atravessa toda a sociedade brasileira em razão das naturais consequências da decisão do STF que, ao julgar o Habeas Corpus (HC) 126.292, permitiu o cumprimento antecipado da pena. Na prática, implica na efetiva prisão do réu.

Elucide-se, por oportuno que, com isso, o STF retoma um posicionamento anterior adotado até o ano de 2009, quando inicialmente entendia ser possível a prisão do réu antes do trânsito em julgado, e que foi retomado pois, entendeu à época, ocasião do julgamento do HC 84.078, que a medida importava violação ao princípio da presunção de inocência.

O que ocorre na prática é que, encerrada a discussão do recurso em segunda instância, já pode o condenado cumprir sua prisão antes de se encerrar os recursos às instâncias superiores, e que isso não fere o princípio da presunção de inocência.

Executar o início da pena, antes de encerrar os recursos às instâncias superiores, é o epicentro do impacto jurídico que está abalando as estruturas principiológicas de direito do país.

O atual cenário jurídico brasileiro, de tal maneira, encontra-se em verdadeira efervescência, devido às fortes manifestações de doutrinadores, bem como dos órgãos jurídicos do próprio Estado brasileiro como as Defensorias Públicas, e da Ordem dos Advogados do Brasil que em sua grande maioria, rejeitam com veemência a decisão do STF, e a qualificam como ponto de retrocesso no direito brasileiro.

O então relator do caso, Ministro Teori Zavascki, manifestou expondo que, a manutenção da sentença penal pela segunda instância, encerra a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, o que autoriza o início da execução da pena.

Em decorrência disso é pertinente notar o surgimento dos primeiros questionamentos que, por via de consequências, oferta a oportunidade de se analisar o fundamento de existência dos recursos aos tribunais superiores, uma vez que exauridos os momentos de análise dos fatos e provas, segundo o raciocínio do ministro, nada resta aos recursos senão questão nati morta, que termina por não causar nenhum efeito jurídico, nitidamente em desfavor injusto à defesa do réu.

Seguindo ainda o mesmo raciocínio, com tal decisão, pressupõe-se a medida carente de exatidão, ou seja, a decisão confirmatória de segundo grau em desfavor do réu encerra a atividade dos recursos, e nesse sentido torna os tribunais superiores via írrita? Ou ainda, a supressão tem efeitos extintivos somente em desfavor do réu? O princípio da presunção de inocência está mesmo intacto?

Ou seja, se o próprio pretório excelso sodalício, não só afirma, como também estabelece que, as vias dos recursos às instâncias superiores não mais são capazes de atender às demandas penais naquilo que lhes são pertinentes, por isso acaba por encerrá-la.

E, por óbvio que o raciocínio faz acreditar que se tornou um instrumento inútil, pois se não é capaz de proteger o princípio no início de seu cabimento, não se parece razoável que o pretenda fazer no curso do cumprimento da pena.

Simplificando, isso resulta em prejuízo para o inocente que, na condição de réu e condenado em segundo grau vai preso. E, se descoberta sua inocência em sede de recurso especial ou extraordinário, restará ao estado democrático de direito, apenas lhe indenizar, e colocá-lo em sua justa liberdade. É o perigo, e é o dano, não só por se pensar nas condições de sofrimento injusto imposto ao inocente condenado, mas por danificar os instrumentos jurídicos baseados em decisão pouco fundamentada juridicamente falando, contra um princípio fundamental de direito, estabelecido a duras revoluções constitucionais, e ainda expresso em vários instrumentos legais, em inúmeras soberanias democráticas de direito.

Além de todo o exposto, reside ainda no caso a controvérsia explícita por conta do posicionamento contrário e anterior daquela mesma casa judiciária que, desde 2009, ao julgar o HC 84.078, só permitia o início do cumprimento da pena, após o trânsito em julgado da referida condenação, porém preservadas as condições autorizadoras no caso de se tratar de prisão preventiva, o réu deve manter-se em cárcere, instituto esse totalmente distinto do bojo da presente discussão.

Ou seja, houve uma significativa alteração, apontado por muitos do universo jurídico, inclusive por membros do próprio STF, como um retrocesso constitucional, o que importa análise criteriosa e aprofundada sobre o tema que se anuncia por demais delicado, de notória repercussão geral, e incute novidade nos afazeres do STF que, debruçado ao seu mister, acaba por emancipar-se legislador.

A natureza da decisão do STF é de grande repercussão e importância, e exerce reflexos evidentes sobre a segurança jurídica brasileira, além de perturbar todo o cenário constitucional, partindo da própria perspectiva dos efeitos indeléveis sobre o risco de manter em cárcere, um possível inocente.

Isto posto, fica evidente o ponto nodal do presente trabalho que, com base no novo posicionamento do STF, consigna-se em estruturar um painel em busca de expor um dos acontecimentos jurídicos de maior relevância da nossa versão atual de Estado Democrático de Direito no Brasil a respeito dos princípios constitucionais, na espécie, o princípio da presunção de inocência.

Oportunizada a ilustração do presente trabalho na apresentação introdutória, seguimos elaborando uma trajetória histórica e evolutiva com relação ao princípio em questão, para ofertar um primeiro ponto de informação para, em seguida, pontua-se as fundamentações em que se apoiou o STF para provocar tal novidade no nosso universo jurídico, e por fim, organizar uma síntese entre os dois pontos, ensejando um despertar crítico ao leitor, ficando assim constituídos:

Inicialmente, informações a respeito dos princípios fundamentais inseridos na constituição, e penais, em especial ao Princípio da Presunção de inocência. Bem como a manifestação de conceituados doutrinadores, como Luigi Ferrajoli que em sua obra Direito e Razão, oferta um sistema completo para a proteção dos direitos fundamentais de todos os acusados, criando um verdadeiro algoritmo de proteção dos direitos relacionados a todos, e intitulado de Garantismo Penal.

Em um segundo momento, vamos expor o posicionamento do STF, a respeito do princípio da presunção de inocência, fazendo um breve relato das manifestações dos Ministros quando das oportunidades anteriores, e dar maior ênfase às manifestações da atual composição do Supremo Tribunal Federal.

E em linhas finais, traremos ao leitor, em suma, uma síntese sobre a afetação ao princípio, destacando as consequências práticas quanto a realidade carcerária do país, observando as condições de superlotação, com base em pesquisa oficial dos sites governamentais disponíveis sobre o sistema prisional brasileiro.


2. OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Um dos pontos mais importantes de qualquer sociedade democrática baseada em direitos, é ter a sua organização judiciária, com todos os instrumentos jurídicos baseados em ideais que vislumbrem o respeito, as condições de igualdade social, as garantias fundamentais, a dignidade da pessoa humana, a segurança jurídica, o interesse público, e dentre uma infinidade de elementos, consideram-se os princípios jurídicos de uma sociedade, a base de tudo, pela qual opera-se a conditio sine qua non das ditas sociedades democráticas de direito.

Consultado o AURÉLIO, observa-se algumas definições sobre o conceito dos verbetes princípio, e jurídico, para auxiliar o raciocínio, e aqui inserimos conforme se segue: “1. Momento ou local ou trecho em que algo tem origem; 2. Causa primária; 3. Preceito, regra”. Enquanto que jurídico: “Relativo ao direito. Conforme aos princípios do direito; lícito, legal”. (Mini Dicionário Aurélio, 2010).

Em tal senda, os princípios jurídicos como elementos que, por sua natureza, atuam imbricados numa verdadeira ligação polivalente, implicam em forças que orquestram os mecanismos para a experimentação dos fins que pretendem as sociedades.

Hodiernamente, os princípios se encontram há muito evoluídos, constituídos com o passar dos longos anos, experimentando as mais diversas e catastróficas versões de sociedades através dos tempos, onde sua história evolutiva se confunde com a própria história do homem.

Com efeito, os princípios exaram características que se consolidam, ao passo que começam a fornecer a ideia de segurança jurídica, incluindo-se aqui um ambiente valorativo, axiológico, eis que não finda em si uma ordem liquidada, que não está mais sujeita a qualquer alteração.

Mas o princípio é algo que se constitui com um núcleo rígido, porém aceita certos e determinados aperfeiçoamentos, mas que não pode ser alterado pela vontade do homem pura e simplesmente, que não cede a interesses, que não se corrompe por paixões, que se impõem contra a força dos mais fortes, que se mantém estabelecida, que é apenas descoberto e não simploriamente criado, e que parece ser intocável.

Para Luiz Flávio Gomes, os princípios são normas jurídicas de caráter cogente, vejamos:

Qual o valor jurídico dos princípios? Os princípios não são apenas um conjunto de valores ou de prescrições éticas ou programáticas. São normas jurídicas de caráter cogente. De outro lado, a eficácia prática dos princípios irradia-se não só ao momento legislativo de elaboração da norma penal (quando o legislador cria a lei penal), senão também ao aplicativo e interpretativo (nem o intérprete nem o juiz podem ignorá-los), bem como no momento executivo (no momento da elaboração de políticas preventivas assim como quando se vai concretizar o comando sancionador contido na sentença condenatória, ou seja, no momento da execução da pena). (GOMES, Luis Flávio. Princípios Constitucionais Penais – LIVRONET.)

Além dos princípios jurídicos, outra questão de ordem elementar às sociedades, são os pontos sobre os quais incidem o objeto a ser extraído do ser humano, como comando que sirva de meio coercitivo funcional de obediência, para que os efeitos dos princípios providenciem seus resultados práticos, e a exemplo disso temos vários tipos de punição, como é a prisão, a multa, e até mesmo a excepcionalíssima pena de morte prevista na constituição.

Ou seja, é a liberdade do homem o alvo para a pretensão punitiva do direito, e os princípios são as forças intelectuais que vêm regrar tudo o que se dispuser a manusear a conduta humana como fonte de proteção e equilíbrio entre o Estado e o homem, limitando e restringindo a liberdade de locomoção do homem sempre que este praticar ato lesivo às condutas reprovadas pela sociedade democrática de direito, lhe garantindo sempre, a aplicação dos princípios fundamentais. É todo o raciocínio inserido, na espécie, no nascedouro do direito penal.

Decorrente disso, vieram as leis, normas, regulamentos, entre outros, que compõem a estrutura jurídica, de certo modo mais objetiva, porém recebem da constituição a devida outorga para que seus efeitos tenham validade, e sejam sentidos na esfera prática da vida cotidiana de todos indistintamente. E para providenciar a confecção dessas leis, dessas normas, em especial as de direito penal, é que os princípios se fazem presentes, guiando os métodos de criação e colocação de tais leis e normas no mundo jurídico prático.

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Vale ressaltar que, nesse ambiente intelectual onde se traduz os princípios como fonte moral para se constituir o método de convivência em sociedade, tutelando os direitos protecionistas, instituindo-se a regra e a punição, a intensidade do dano, a extensão e abrangência, devem tais normas obedecerem a um determinado rito de confecção. São as formalidades para o seu nascimento, mas que a teor da proposta aqui perseguida, não se faz interessante aprofundar nessa temática, contudo, pelo exposto, é necessário saber que, inclusive para isso, existem regras e que também seguem uma orientação superior advinda de princípios, como o próprio nome sugere, início de tudo.

Assim sendo, é a constituição o ordenamento mais alto de um Estado, mas nele não repousa todos os princípios que se possa desejar, até mesmo por uma questão de razoabilidade, senão seria necessário constituir um livro dedicado exclusivamente aos princípios, o que se revela naturalmente desnecessário, inclusive a não taxatividade é reconhecida pela própria Constituição, no seu art. 5º, §2º, in verbis:

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Do ponto de vista hermenêutico não se pode afirmar, devido a extrema complexidade sobre o conteúdo que cada princípio traz consigo, em relação aos demais princípios não inscritos de forma expressa na Constituição, contudo o constituinte deu destaque pelo simples fato de narrar no corpo da Constituição da República.

Cabe ressaltar que as constituições não têm a pretensão de colacionar todos os princípios ao seu bojo, porém é de boa monta que se preze por juntar ao máximo, os princípios fundamentais como forma de concretização e proteção jurídica. Ademais, nada impede que as demais normas, como as leis ordinárias, por exemplo, tragam em si os princípios que, por seu turno, se adequem melhor a seu ramo do direito, como o direito penal, por exemplo.

O aspecto de constitucionalidade de um princípio, é alusiva ao patamar de importância que se dá a uma norma dentro do ordenamento jurídico, e como tal os princípios exigem uma colocação diferenciada.

As constituições precisam estar mais altas para ver onde se quer ir, e guiar com o mais profundo esmero, cuidado e presteza toda a sociedade. É o condutor da ordem jurídica, e como tal, não recebe interferências e obstáculos inferiores.

Ou seja, a fonte das constituições vem dos princípios, que as nutre com inspirações de modo a fomentar a ordem objetiva subordinada a elas.

2.1. O estado de direito e o direito penal

Estabelecido o Estado de Direito, este tem relação estrita e fundamental com o direito penal, eis que é, na essência, o material de trabalho que se dirige ao bem mais precioso do homem, depois da vida, a liberdade.

E assim sendo, a atividade prática penal do Estado deve estar contida em um sistema penal, como bem conceituam Eugenio Zaffaroni e José Henrique Pierangeli:

Chamamos de “sistema penal” ao controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Esta é a ideia geral de “sistema penal” em um sentido limitado, englobando a atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes, promotores e funcionários e da execução penal. (Zaffaroni, Eugenio Raul / Pierangeli, José Henrique. 11ªed. 2015).

Identificada a liberdade como o direito mais importante depois da vida, esta foi eleita como alvo de manipulação do próprio homem social para, dentro do Estado de Direito com o intento claro, de obrigá-lo a se conformar às condições estabelecidas da sociedade.

Nesse sentido, nos esclarece César Roberto Bittencourt, em seu Tratado de Direito Penal I, de 2012:

O Direito Penal apresenta-se, por um lado, como um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes — penas e medidas de segurança. Por outro lado, apresenta-se como um conjunto de valorações e princípios que orientam a própria aplicação e interpretação das normas penais. Esse conjunto de normas, valorações e princípios, devidamente sistematizados, tem a finalidade de tornar possível a convivência humana, ganhando aplicação prática nos casos ocorrentes, observando rigorosos princípios de justiça. (BITTENCOURT. Tratado de Direito Penal I, p. 19. 2012).

Historicamente, o direito penal vem se adaptando e evoluindo aos ditames dos princípios geras do direito para alcançar as pretensões humanas de convívio em paz e harmonia, obedecendo aos preceitos constitucionais, e assim escreve Fernando Capez:

Sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito, por reflexo, seu direito penal há de ser legítimo, democrático e obediente aos princípios constitucionais que o informam, passando o tipo penal a ser urna categoria aberta, cujo conteúdo deve ser preenchido em consonância com os princípios derivados deste perfil político-constitucional. Não se admitem mais critérios absolutos na definição dos crimes, os quais passam a ter exigências de ordem formal (somente a lei pode descrevê-los e cominar-lhes urna pena correspondente) e material (o seu conteúdo deve ser questionado a luz dos princípios constitucionais derivados do Estado Democrático de Direito ). (CAPEZ. Curso de Direito Penal. p. 23. 2015).

Resulta de tal evolução, a complementaridade entre os princípios que, por sua leva aduz uma crescente fortificação do ordenamento jurídico, e afeta de modo positivo o Estado Democrático que ganha maior legitimidade para praticar o jus puniendi estatal.

E, é nessa relação que devem servir instrumentos tais, todos inspirados nas questões dos direitos e princípio já esposados aqui, para que haja o equilíbrio fundamental à harmonia entre o homem e o Estado.

O jusfilósofo italiano Luigi Ferrajoli, em sua obra Direito e Razão, publicada originalmente em 1989, trouxe à luz do universo jurídico, uma obra sistemática que fundamenta o que ele batizou de Garantismo Penal.

Em resumo, a obra Direito e Razão trata de um sistema da doutrina garantista voltada ao direito penal que preconiza as garantias e direitos Fundamentais de todos os acusados, e não condenados com trânsito em julgado. Uma boa característica dessa obra que trata do garantismo penal, é que ela não é hiperbólica, minimalista, ou seja, ela é profunda e cuida, ponto a ponto, de todas as questões principiológicas, dá uma dimensão maior para além dos envolvidos nos processos penais, tais como autor e réu por ser sua abrangência notoriamente necessária, pois que cuida dos direitos fundamentais aplicáveis a todos da sociedade, caracterizando assim o interesse público geral.

Nesse momento, importa reproduzir alguns dos dispositivos contidos na obra de Ferrajoli, para otimizar a explicação sobre o sistema garantista (SG):

2. Dez axiomas do GARANTISMO PENAL: o sistema garantista SG.

Denomino garantista, cognitivo ou de legalidade estrita o sistema penal SG, que inclui todos os termos de nossa série. Trata-se de um modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfatível. Sua axiomatização4 resulta da adoção de dez axiomas ou princípios axiológicos fundamentais, não deriváveis entre si, que expressarei, seguindo uma tradição escolástica, com outras tantas máximas latinas:

A1 Nulla poena sine crimine

A2 Nullum crimen sine lege

A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate

A4 Nulla necessitas sine injuria

A5 Nulla injuria sine actione

A6 Nulla actio sine culpa

A7 Nulla culpa sine judicio

A8 Nullum judieium sine accusation

A9 Nulla accusatio sine probatione

A1O Nulla probatio sine defensione

Denomino estes princípios, ademais das garantias, penais e processuais por eles expressas, respectivamente: 1) princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; 6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio da jurisdicionariedade, também no sentido lato ou no sentido estrito; 8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ou da verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade. (FERRAJOLI. 2002. p. 74/75)

Com base nessa sistemática garantista de Ferrajoli, fica claro que o que se busca é a não abreviatura dos métodos, para assegurar, não só ao Estado, mas a todos o quanto importem interesse de se aproximar ao máximo da verdade factual, com arrimo inconfundível dada a necessidade de se provar a culpabilidade, antes que se imputa pena contra qualquer acusado, em qualquer lugar onde haja uma democracia baseada de direitos.

Isso exige o cumprimento de outro princípio, que é o princípio do devido processo legal. Repise-se que, os princípios exercem uma ligação polivalente com os demais princípios, mesmo que não estejam reunidos no mesmo diploma textual.

Prova dessa ligação é o entendimento colaborativo que se extrai, por exemplo. Não se deve punir alguém antes que se tenha provado sua culpa, e para provar tal culpa, é indispensável a instalação de um processo baseado em normatividade justa, por isso legal, baseada em leis. Poder-se-ia dizer ainda, que tal lei deveria já existir antes do fato delituoso, o que constitui o princípio da anterioridade, e por aí vão surgindo princípios e mais princípios que atuam coligados e exercendo as suas forças, cada um a sua maneira e cabimento, exatamente como organizou Ferrajoli.

Trazemos ainda um breve comentário do mesmo autor, contida na mesma obra que, oportuniza otimizar a crítica contra as decisões não fundamentadas, o que ele chama de “modelos punitivos irracionais”.

Os dois últimos sistemas, baseados um apenas no princípio nulla poena sine lege, o outro apenas no princípio nulla poena sine judicio, correspondem a formas absolutas do Estado "selvagem" ou "disciplinar".19 Destes, o primeiro representa o Estado policial, caracterizado por leis em branco, que permitem intervenções punitivas livres de qualquer vínculo, inclusive o do juízo prévio: pense-se, por exemplo, nos plenos poderes militares ou de polícia previstos pela lei italiana durante o "estado de guerra" ou "de perigo público". 20 O segundo corresponde, ao contrário, ao chamado por Weber "justiça patriarcal" ou "do cádi",21 não vinculada a nenhum critério preestabelecido, nem de fato nem de direito, mas remetida à boa vontade dos príncipes, dos notáveis, do sábio embaixo da árvore ou talvez do povo no estádio, como justiça completamente "substancial", "material", sumária ou eqüitativa. 22Está claro que a falta total de jurisdicionariedade, no primeiro caso, e de legalidade, no segundo, esvazia de conteúdo garantista igualmente a única condição exigida - a lei ou o juízo unindo os dois sistemas sob a insígnia do arbítrio e tornando-os dificilmente distinguíveis na prática. (FERRAJOLI. 2002. p. 82).

Se as leis não podem mais serem editadas sem base principiológica, respaldada pelas constituições, o que se dirá das decisões importantes sem uma base mais aprofundada, e, pior, contra uma decisão anterior sobre o mesmo tema, adotada pelo mesmo ente judicial, que é o caso em liça do STF.

Portanto, o Estado deve continência às leis, por sua feitura, por sua aplicação, por sua proteção, e por sua evolução, não podendo jamais se distanciar dos conceitos principiológicos racionais que o limitam, mas que também o justificam, para que não haja sacrifício injusto de ninguém contra ninguém.

2.2. O princípio da não culpabilidade ou da presunção de inocência.

É o princípio especial ao presente trabalho. Seu espelho reflete as considerações sobre a certeza ao caso concreto para a competente aplicação da correlata punição. Ou seja, o art. 5º da Constituição de 1988, em seu inciso LVII, expressa: “LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, impede, em decorrência disso, que a ninguém pode ser aplicada pena, se não sobrevier a certeza da culpa.

Tal princípio é fonte de antigas discussões e divergências no mundo jurídico brasileiro. A ilustração disso se deu quando o STF, no ano de 1976, sob a égide da Constituição de 1967, reformou uma decisão do Superior Tribunal Eleitoral – STE, que afirmava ser inelegível o cidadão que estivesse respondendo a processo-crime.

É preciso adicionar uma breve explicação sobre a duplicidade dos termos: “não culpa” ou “inocência”. Para alguns doutrinadores, deve-se entender o princípio como o da não culpa, uma vez que a Constituição expressa o termo: “(…) ninguém será considerado culpado”.

Contudo, a contrário senso, versa uma divergente corrente que se posiciona pelo entendimento da aplicação do termo ‘inocente’, explicável com o advento da adesão da República Federativa do Brasil ao Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969) que traz também expresso, em seu artigo 8: (…) “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”. (grifamos).

Para a doutrina que se firma pela presunção da inocência, esta alega a solução trazida pela Convenção Americana que, uma vez estabelecida um direito que seja de direitos humanos justos, este não pode ser suprimido, pois que não há equívoco em proteger o homem se valendo de leis, de direito, de justiça, e de princípios. A lei não é inimiga do homem.

E ainda seria desnecessária tal discussão, uma vez que os fins a que pretendem os dois entendimentos, culminam em encontrar-se em seus efeitos posteriores à sua aplicação, ou seja, tanto o inocente de fato quanto ao acusado mesmo que de fato seja culpado, todavia não provado em trânsito em julgado, subtende-se os dois na mesma condição à pena, imunes.

É exigível a certeza, e se essa não for extraída, percebe-se o surgimento do favor rei, ou o princípio do in dubio pro reo, que significa dizer, em caso de dúvida é o acusado inocente.

Não cabendo em hipótese alguma o contrário, sob pena recrudescimento da norma penal, que nada mais é que ir além das pretensões punitivas que ela própria descreve, ou seja, é punir mais com menos.

Por óbvio, não resta nenhuma dúvida que, apesar de a Constituição expressar o termo culpa, essa significa que enquanto não provada em trânsito em julgado, trata-se o réu como se inocente o fosse, cabendo contra o inocente que se encontre na condição de acusado, todas as medidas preventivas, somente.

E nesse sentido expõe Regina Maria Macedo N. Ferrari, em sua obra de direito constitucional:

Em que pese ser reconhecido já no direito romano, foi com a Revolução Francesa que o princípio passou a ser compreendido no sentido de que 'entre a condenação de um inocente e a absolvição de um culpado, a segunda hipótese seria preferível'. Ora, como salientou Cesare Beccaria, 'um homem não pode ser chamado culpado antes da sentença do juiz, e a sociedade só pode retirar-lhe a proteção pública após ter decido que ele violou os pactos por meio dos quais ela foi concebida’.

Assim, a Declaração dos Direitos do Homem, da época da Revolução Francesa de 1789, previu, no art. 9º, que 'todo homem se presume inocente até ser declarado culpado; se se considerar indispensável prendê-lo, todo o rigor que não seja necessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei'.

(…)

“O princípio da presunção de inocência não impede que o legislador, em face de determinadas situações, adote certas medidas de caráter cautelar, seja em relação à liberdade do investigado ou do denunciado, seja em relação a seus bens e pertences. Tal posicionamento não impede que, em determinado caso concreto, se adotem eventuais conformações ou restrições, embasadas no princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. (2011. p. 686).

2.3. A doutrina e o art. 5º, LVII da Constituição de 1988.

Diante da situação sobre o início da pena em relação ao princípio da presunção de inocência, é importante, e se apresenta diferenciando, o ponto cronológico anterior da literatura a respeito do conceito sobre o respectivo princípio, e mais ainda interessante quando, mais à frente, no próximo capítulo, poderemos observar as fundamentações dos membros do STF, sobre seus votos na oportunidade do HC. 126.292.

Assim sendo, é observável o que diz José Afonso da Silva, um dos mais respeitados juristas brasileiros.

A norma constitucional do inciso LVII, agora sob nosso exame, garante a presunção de inocência por meio de um enunciado negativo universal: 'ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória'. Assim também o faz a Constituição italiana (art. 27, alínea 2 – embora não por meio de juízo universal, porque particulariza o destinatário da norma em I'imputato = imputado). Usa-se de uma forma negativa para outorgar uma garantia positiva. A Constituição Espanhola emprega uma fórmula positiva: 'todos tienen derecho (…) a la presunción de inocenia'. Falta, porém, um limite. A Constituição colombiana, de 1993, declara, positivamente: 'Toda persona se presume inocente mientra o se la haya declardo judicialmente culpable'. Na verdade, o texto brasileiro não significa outra coisa senão que fica assegurada a todos a presunção de inocência até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. O trânsito em julgado se dá quando a decisão não comporta mais recurso ordinário, especial ou extraordinário. Essa garantia de inocência é que fundamenta a prescrição do inciso LXXV, segundo o qual 'o Estado indenizará o condenado por erro judicial, assim como o que ficar preso além do tempo fixado da sentença'. (2014, p.158).

A doutrina constitui torrencial e uníssona vertente no mesmo sentido, ao qual se coaduna Alexandre Morais:

A Constituição Federal estabelece que ninguém será condenado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, consagrando a presunção de inocência, um dos princípios basilares do Estado de Direito como garantia processual penal, visando à tutela da liberdade pessoal. Dessa forma, há a necessidade de o Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal. A presunção de inocência é uma presunção juris tantum, que exige para ser afastada a existência de um mínimo necessário de provas produzidas por meio de um devido processo legal e com garantia da ampla defesa. Essa garantia já era prevista no art.9º da Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada em 26-8-1789 (‘Todo acusado se presume inocente até ser declarado culpado’).

(…)

Dessa forma, a presunção de inocência condiciona toda condenação a uma atividade probatória produzida pela acusação e veda taxativamente a condenação, inexistindo as necessárias provas. (2013. p. 336).

Intentando por compilar um regimento mínimo de doutrinadores a respeito do tema, podemos trazer ainda os dizeres de Uadi Lâmego Bulos:

A propósito, lembre-se que a presunção de inocência foi uma novidade trazida pela Carta de 1988. No passado, ela era extraída do contraditório e da ampla defesa, pois não vinha prevista taxativamente.

Agora, todos são inocentes, exceto se provado o contrário.

Até o trânsito em julgado da sentença condenatória, o réu tem o direito público subjetivo de não ostentar o status de condenado. (grifamos).

Trata-se de uma projeção dos princípios do devido processo legal, da dignidade da pessoa humana, do Estado Democrático de Direito, do contraditório, da ampla defesa, do favor libertatis, do in dubio pro reu e da nulla poena sine culpa. (BULOS, 2015. p. 713).

Entendendo a sistemática dos doutrinadores sobre o tema da presunção de inocência, esta se insere de modo a impedir aplicação de injustiça, promovida pelo mais forte em detrimento do mais fraco.

O Estado é sempre o mais forte, e isso é indiscutível. Ele recebe toda a força que emana do povo, se organiza e estabelece a ordem que a impõe contra o mais fraco, o indivíduo, uma pessoa ou um conjunto de pessoas que jamais se equiparará ao Estado, por vez que este representa toda a dinâmica do conjunto integral povo de qualquer Estado soberano.

É por isso que jamais o Estado, que é mais forte, a pretexto de representar o povo na sua inteireza, poderá iniciar o cumprimento de uma pena contra um indivíduo único ou um grupo de indivíduos antes de provar sua culpa.

Não é razoável entender que o maior representante jurídico que tem por seu mister a defesa da ordem suprema, dar entendimento diferente do que se expressa por demais constituído sob a égide dos conceitos principiológicos necessários à garantia da harmonia social.

O caso registrado há muito por doutrinadores, ou seja, pelos que pensam o direito e o defendem com base em teses, exemplos, raciocínios, estudos de anos a fio, é por demais simples e se resume a entender que, jamais alguém será punido antes do trânsito em julgado, e isso tem razão certa e inequívoca, e se sobrepões à fase de análise e produção de provas, encerrada na segunda instância como bem argumentou o Ministro Teori Zavascki, em seu voto-vista, facilmente explicável dentro do devido processo legal.

O devido processo legal tem o condão de se estender ao máximo o tempo para que, por qualquer meio, surja uma prova nova, lícita, capaz de, por sua novidade trazer informação a qual possa assegurar o início do cumprimento da pena. E nesse prisma, labora no mesmo sentido inúmeros fatos ocorridos na história da humanidade que comprovam que é melhor esperar que punir açodadamente.

Ora, se é o Estado mais forte, sem qualquer dúvida, se pode o Estado legislar, ou seja, constituir lei que legalize, em tese o que a sociedade pretende, se ele tem e reúne todos os mecanismos punitivos, acusatórios, lógico que não é mensurável admitir uma antecipação a decidir a vida de alguém.

A exemplo disso, esclarecemos que houve um fato apontado como o maior erro judicial ocorrido no Brasil, que repercutiu no exterior, e ficou conhecido como “o caso dos irmãos Naves”, que inclusive foi retratado em filme produzido no Brasil em 1967, com base no livro produzido e publicado pelo advogado defensor dos Naves, o qual passamos a relatar, como enfoque exemplar de como uma antecipação judicial de cumprimento de pena pode ser infernal, injusta e desumana. (Da obra de João Alamy Filho. O caso dos irmãos Naves. 1975.)

Cidade de Araguari, Estado de Minas Gerais, ano de 1937. O agricultor Benedito Caetano desaparece, e os irmãos Joaquim Naves e Sebastião Naves, doravante conhecidos apenas por irmãos Naves, são acusados pelo seu desaparecimento.

No dia do desaparecimento, Benedito Caetano levava consigo uma importância em dinheiro muito alta, estima-se que o valor hoje corresponderia a uma soma em torno de uns duzentos e cinquenta mil reais. Ele era um comerciante de cereais e tinha feito uma grande compra de sacas de arroz, apostando em uma possível alta dos preços, mas não foi o que aconteceu, e por conta disso teve que vender tudo o que tinha, pegou o dinheiro e sumiu.

Por conta disso os irmãos Naves foram acusados, processados e condenados pelo desaparecimento do comerciante que saíra naquela fatídica noite.

Parecia muito justificável que uma volumosa quantia daquelas, nas mãos de um só homem, originasse a causa ao animus furandi por parte dos irmãos que, em maior número, e com proximidade íntima poderiam facilmente dar cabo dele, inventar uma história qualquer, e, sem provas ficariam livres da acusação e, por fim abraçariam o dinheiro.

Não foi o que aconteceu, mas foi o que o então conhecido “Chico Vieira”, tenente militar que substituiu o delegado de polícia civil que conduzia as investigações à época, acreditou, e com base nisso cometeu as maiores atrocidades contra os irmãos Naves, além de tortura, prisão injustificada, o que provocou a confissão dos mesmos, mesmo sendo a mais profunda falsificação da verdade.

Convencido de que estava praticando os meios cabíveis para adquirir os fins necessários, Chico Vieira, atuando como elemento humano, dentro de uma sistemática penal injusta, propiciou a prisão sem provas dos Naves, criando uma espécie de presunção de culpabilidade.

É importante um parêntese para conceituar o verbete presunção que pode ser entendido como um raciocínio que liga e dá nexo a um fato certo ao probando, e que segundo o Aurélio significa: “Ato ou efeito de presumir; Suspeita, conjectura; Afetação, vaidade; Sentimento ou opinião de grande valorização que alguém tem em relação a si próprio”.

Ou seja, o sistema adotou conjecturas, ilações, provas valorativas, e ainda obtidas por meios ilícitos, e admitiu a prisão dos irmãos como sendo legal e devidamente processadas, mas que findou por castigar injustamente os irmãos que na verdade eram inocentes.

Mas o pior ainda estava por vir. Houve vários julgamentos, sendo os dois primeiros ocorridos em 1938, onde os irmãos Naves foram inocentados das acusações a eles imputadas, por uma maioria de 6 (seis) votos contra 1 (um), e novamente jugados, obtiveram o mesmo resultado.

Parecia que a odisseia de injustiça havia terminado, contudo, no Brasil estava imperando um regime ditatorial, e estávamos sob a égide da “Polaca”, apelido pela qual ficou conhecida a Constituição de 1937, que inclusive admitia a pena de morte num rol mais amplo, e estava inserida em seu art. 122, inciso 13, alínea ‘j’, com o seguinte texto: “o homicídio cometido por motivo fútil ou com extremos de perversidade”, a este preceito primário, poder-se-ia punir com a morte.

Sobreveio a intervenção no feito por parte do Tribunal que alterou o julgamento do Tribunal do Júri e condenou os Naves a 26 (vinte e seis) anos e 06 (seis) meses de prisão. Tal pena foi revista e reduzida para 16 (dezesseis) anos. Mas os irmãos Naves foram postos em liberdade, devido ao seu comportamento exemplar, passados 8 (oito) anos e 3 (três) meses.

E por fim, então passados, então 12 (doze) anos, veio a confirmação da inocência dos Naves quando, em 1952, eis que retorna por uma localidade nas proximidades, Benedito. Vivo, e reconhecido por todos, foi o álibi tardio. Mas que serviu para comprovar que um sistema penal fraco, açodado é o ambiente perfeito para as maiores atrocidades imagináveis.

Pouco tempo depois, morre Joaquim Naves em decorrência dos traumas sofridos das torturas, durante as diligências do Tenente “Chico Vieira”, e ainda pelos maus tratos do cárcere.

João Alamy Filho, foi o advogado que atuou intensamente em defesa dos Naves, e veio a falecer em 1993, publicou um livro sobre o caso, e este deu origem a um filme, o que ajudou a disseminar as vísceras processuais praticadas durante a velha ditadura, no Brasil.

Existe uma pequena expressão popular a qual alguns atribuem ao caso dos irmãos Naves, e é utilizada como um a interjeição de espanto assim descrita: “Será o Benedito?”.

O caso concreto e emblemático dos irmãos Naves, nos oferta um ambiente rico para entender a importância da doutrina a respeito das análises a que ela se dispõe a discutir.

O trabalho doutrinário emerge como um fator intelectual constante sobre determinados temas, com o escopo de provocar-lhe a evolução, seja por modificações que a amplie, ou a diminua, ou ainda provoque a estabilidade dos efeitos a que o tema em análise, possa produzir.

Essa colaboração doutrinária, em especial relação ao princípio constitucional da presunção de inocência, é tão útil quanto é providencial.

Proveniente de incansáveis estudos, debates e pesquisas, a doutrina se fortalece tanto pela observação teórica quanto pela observação prática dos resultados fáticos das sociedades.

Nesse contexto, ela se revela como fonte mais adequada, robusta e confiável para se interpretar um elemento textual, perfeitamente aplicável ao caso dos irmãos Naves.

Se fosse aplicado, por exemplo, o sistema garantista (SG) do jusfilósofo Ferrajoli, provavelmente o caso não teria o mesmo desfecho trágico que providenciou. Se fossem respeitadas as orientações, os estudos que colaboram com a jurisdição, e não aos acusados, teríamos mais um fato positivo em concreto a nosso favor.

Disso se extrai claro e notório que, sem se ter certeza da culpa, é melhor que se ache um culpado livre, que a um inocente preso.

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Sobre o autor
André Menezes

Bacharel em direito, eterno aprendiz, sempre disposto a conhecer, e aprofundar temas, inclusive suscitar diálogo entre não doutrinadores, despertando discussão sobre os aprendizados como forma de evolução, além dos estudos formais, consultas, em diversas áreas do conhecimento, além do universo jurídico.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade do Vale do Jaguaribe – FVJ, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito.

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