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Possibilidade de diferenciação de preço para pagamento no cartão de crédito e à vista: um olhar fiscal

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15/03/2017 às 15:28
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EFEITOS PRÁTICOS DA EDIÇÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA

Inobstante o fato narrado a título de ilustração de possíveis efeitos da norma recentemente editada, no geral, não se tem notícia de mudança significativa de comportamento no comércio em relação ao uso ou não do cartão de crédito. Pelo contrário, tais fornecedores continuam exercendo as prerrogativas da livre concorrência da forma habitual, com desconto proporcional às taxas devidas pela administração de cartão de crédito, bem como os já tradicionais descontos de final de estação e/ou de passagem de datas especiais.


POSICIONAMENTOS DIVERGENTES

Há muitos profissionais extremamente comprometidos com a causa nas mais diversas áreas de atuação: docentes, procuradores, magistrados, promotores de justiça, doutrinadores, pareceristas jurídicos, fiscais das referidas normas, representantes de órgãos de classe, gestores públicos, membros de instituições voltadas ao estudo do regramento em tela, dentre outros que se posicionam de formas divergentes acerca do assunto. Perceber que a discussão entre tais conceituados estudiosos deixa clara tal divergência quanto à adequação de se permitir a diferenciação de preço no caso de pagamento por intermédio do cartão de crédito ou de dinheiro: eis a verdadeira inspiração para a redação deste artigo.

Aparentemente o consenso só tem sido notado no que toca à suposta inadequação do instrumento utilizado pelo governo para tratar do tema. Suposta porque tal afirmativa só é realmente possível diante do resultado de uma ação de controle de constitucionalidade, desde que devidamente transitada em julgado.

Há quem defenda a tese de que - independente da edição da referida medida, tal possibilidade de diferenciação seja altamente favorável ao consumidor, alegando inclusive que a prática em questão segue contemplada pelo instituto da livre concorrência.

O repasse do valor referente à administração do cartão de crédito ao consumidor, mediante inclusão deste no custo total dos produtos é fato notório e, portanto, acrescer o produto deste montante seria uma duplicação de um mesmo acréscimo.

No tocante aos fiscais de defesa do consumidor, o entendimento é que a estes caberia tão somente a estrita observância das normas em vigor – inadequadas ou não, atendendo prontamente às denúncias que lhes chegarem.

No caso concreto, na ausência de meios eficazes para avaliar a questionada abusividade na vantagem auferida pelo fornecedor, restou aos fiscais do Procon JF relatar com o máximo de dados tudo o que for constatado, visando contribuir eventualmente para uma análise mais doutrinária da questão, enquanto não há mecanismo hábil para tal mensuração.

O fato é que, entre tais representantes do Procon Juiz de Fora, o que se percebe é que as demandas trazidas pelos consumidores têm mais motivação em cima da falta de informação sobre a aceitação ou não de cartão no caso de preço promocional, do que em cima da variação de preço em função do uso da cartão ou do dinheiro para pagamento.

Neste caso, é importante o uso da discricionariedade do ato administrativo dentro de seus limites – quais sejam a conveniência e oportunidade, atributos aplicáveis somente quanto ao momento da prática de um ato, não podendo, de forma alguma ser confundido com a omissão no poder-dever dos agentes da administração pública.

Interessante a respeito do atributo da discricionariedade, um trabalho de Juarez Freitas - “Políticas Públicas, Avaliação de Impactos e o Direito Fundamental à Boa Administração”, cujo trecho segue abaixo:

[...] eis os principais vícios no exercício da discricionariedade administrativa: (a) o vício da discricionariedade excessiva ou abusiva (arbitrariedade por ação) – hipótese de ultrapassagem dos limites impostos à competência discricionária, quando o agente público opta por solução sem lastro ou amparo em base válida. Ou quando a atuação administrativa se encontra, por algum motivo, destinada (desvio de prioridades constitucionais e/ou legais, por preferências corrompidas ou simplesmente mal concebidas); (b) o vício da discricionariedade omissiva (arbitrariedade por omissão) – hipótese em que o agente público deixa de exercer a escolha esperada pelo sistema ou a exerce com inoperância, faltando com os deveres de prevenção e precaução.

Impossível não remeter, neste momento, à interessante discussão jusfilosófica acerca das propriedades essenciais do direito. Robert Alexy, por exemplo, sustenta em sua tese de natureza dualista do direito que para tratar do tema deve-se explorar as propriedades que integram as suas dimensões real ou fática e ideal ou crítica. Segundo ele, coerção e correção, entendidas a primeira como força e a segunda como retidão, se associam às dimensões real ou ideal, respectivamente.

Na dimensão real ou fática haveria três elementos: a relação entre o direito e a coerção que são ligadas diretamente a direito e moral, cujo argumento mais forte é o prático-normativo. Por este a coerção é um meio imprescindível para que o direito possa cumprir com as funções que lhe impõem os dois valores com os quais o direito tem uma conexão necessária: da certeza e da eficácia jurídica; a relação entre o direito e a institucionalização de procedimentos de criação e aplicação de normas e, por fim, a relação entre o direito e o consentimento ou aceitação real acerca do mesmo.

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Já na dimensão ideal ou crítica haveria a correção - ligada diretamente ao direito e a moral e tem como propriedades essenciais: o fato de o direito erigir uma pretensão de correção e a circunstância de que, como expressa a conhecida fórmula de Radbruch, a extrema justiça não é direito. A afirmação de que extrema justiça não é direito é entendida por alguns autores como uma orientação jurídica e moral direcionada especificamente ao juiz que se absteria de aplicar as normas extremamente injustas devido a relação destas com um sistema jurídico chamado “perverso”.

Para Alexy10, a institucionalização da razão é a tentativa de conciliar o ideal com o real.

Ainda na linha filosófica do direito, há quem entenda que o caminho é dispor cada vez menos da coerção e mais do respeito mútuo, do entendimento entre as pessoas, reduzindo significativamente a necessidade de recorrer às instituições.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto sobre a possibilidade de diferenciação de preço para pagamento no cartão de crédito e em dinheiro, pergunta-se:

O fato de a referida prática atualmente estar amparada pela medida provisória mencionada, já se achar consolidada muito antes da edição desta, poderia levar a crer que não havia um sentimento forte de lesão por parte do consumidor?

Ao contrário disto, poderia depreender-se, que este mais frágil integrante da relação de consumo estivesse se sentindo beneficiado com a possibilidade de negociação com relação ao preço dos produtos?

Ou seria a habitual falta de informação, clara e precisa, aliada à comodidade do uso do cartão, a responsável pela apatia diante de tal prática sistemática?

Os próprios interessados - integrantes da relação de consumo, considerando aí não só os tradicionais “consumidor e fornecedor”, mas também o administrador do cartão de crédito ditarão as novas regras de relacionamento dentro da liberdade que lhes foi acrescentada com a permissão legal para tal, caso devidamente referendada pelo Congresso Nacional?

A autora acredita que a diferenciação de preços, de acordo com a forma de pagamento, será mais bem avaliada com o decorrer do tempo e que os diferentes momentos econômicos do país serão os melhores “termômetros” da negociação em comento, mas, sobretudo que o consumidor deverá ficar mais atento ao mercado que poderá usar sua liberdade da forma mais plena.

E assim, o direito à informação – grande estrela das normas que regram as relações de consumo tenderá a se tornar o maior e talvez o único vilão desta história.

 

 


REFERÊNCIAS

Alexy, Robert. O conceito e a natureza do direito / Robert Alexy; tradução Thomas da Rosa de Bustamante; estudo introdutório Carlos Bernal Pulido – 1. Ed. – São Paulo: Marcial Pons, 2014.

 

FREITAS, Juarez. Políticas Públicas, Avaliação de Impactos e o Direito Fundamental à Boa Administração. Florianópolis-SC: Revista Sequência. 2015. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/seq/n70/0101-9562-seq-70-00115.pdf>. Acesso em 21 de dez. de 2016.


Notas

1 Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-12/medida-provisoria-legalizara-desconto-em-compras-vista

2 Disponível em http://oglobo.globo.com/economia/preco-podera-variar-de-acordo-com-forma-de-pagamento-20656201

3 Disponível em http://www.idec.org.br/consultas/dicas-e-direitos/preco-diferenciado-no-pagamento-com-carto-pode

4 Disponível em http://oglobo.globo.com/economia/preco-podera-variar-de-acordo-com-forma-de-pagamento-20656201#ixzz4VSZum7xs

5 (Disponível em http://genjuridico.com.br/2017/01/03/breves-comentarios-sobre-mp-764-que-trata-de-precos-diferenciados-de-acordo-com-forma-de-pagamento/

6 Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-12/comercio-e-autorizado-cobrar-preco-diferente-de-acordo-com-o-meio-de

 

7 Disponível em http://gaz.com.br/conteudos/geral/2016/12/30/86743-mp_sobre_diferenciacao_de_preco_nao_empolga.html.php

8 Disponível em http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2017/01/despesa-com-juros-do-cartao-de-credito-pode-cair-em-70 acessado em 01/02/2017

9 Disponível em http://www.tribunademinas.com.br/com-dinheiro-descontos-chegam-a-ate-20-por-cento/

10 Do original Hauptelemente einer Theorie der Doppelnatur dês Rechts, publicdo em Archiv für Rechts – und Sozialphilosophie, v. 95, n. 2, p. 151-166, abr. 209b. Tradução de Fernando Leal, mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutorando em Direito na Christian-Albrechts Universität zu Kiel.

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Sobre a autora
Helenice Lopes de Souza

Graduada em Administração de Empresas e em Direito, especializou-se Direito Ambiental. Funcionária Pública efetiva desde 1985, atuou como Fiscal de Saúde até 1994, fiscalizou as questões ambientais até 2013 e desde então fiscaliza o cumprimento das normas consumeristas no Procon de Juiz de Fora/MG. Lecionou Legislação Ambiental em curso Técnico de Meio Ambiente em instituição privada de Juiz de Fora por 2 anos. Atualmente é professora-tutora da EAD - Educação à Distância da Universidade Federal de Juiz de Fora na área de Direito desde 2009, notadamente na disciplina Gestão Ambiental e Sustentabilidade do curso de Administração Pública da Faculdade de Administração e Economia. Leciona legislações diversas em cursos preparatórios do referido município para concursos públicos, especialmente na área administrativa, ambiental, urbanismo e defesa do consumidor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Helenice Lopes. Possibilidade de diferenciação de preço para pagamento no cartão de crédito e à vista: um olhar fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5005, 15 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56091. Acesso em: 20 abr. 2024.

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