Resumo: O presente artigo trata da visão da autora, enquanto Fiscal do Procon Juiz de Fora/Minas Gerais, a respeito da prática de diferenciação de preço de produtos e serviços no caso de pagamento em dinheiro ou cartão de crédito, notadamente após a edição da polêmica Medida Provisória nº 764 pela Presidência da República em dezembro de 2016.
Palavras-chave: preço - diferença - cartão de crédito - fiscal
A EDIÇÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA 764/16
A Medida Provisória (MP 764/16) editada recentemente pela Presidência da República trouxe à baila uma temática há muito debatida: a possibilidade de diferenciação de preços de acordo com a forma de pagamento escolhida pelo consumidor – se com o cartão de crédito ou em espécie. Até então, tal tema não tinha um entendimento pacificado. Apesar de ser um costume entre os comerciantes oferecer desconto para pagamento em dinheiro, as normas consumeristas sempre proibiram tal prática.
Além disto, a referida MP veio eivada de questionamentos acerca da real necessidade de tal assunto ter sido objeto de um instrumento legal deste tipo. É sabido que o objetivo das MPs é tratar de medidas dotadas de caráter de urgência e relevância, cujo teor tem validade até que sejam referendadas em prazo certo pelo Congresso Nacional.
Segue transcrito o dispositivo da Constituição Federal que aborda o cabimento do instrumento legal: “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.”
Ocorre que, no entendimento de muitos profissionais da área, os argumentos apresentados para justificar a utilização de tal modalidade de norma não são necessariamente incontestes nos quesitos urgência e relevância do tema.
Ressalta-se ainda que, há alguns anos, existe uma forte movimentação no sentido de proceder à alteração da Lei Federal 8.078/90, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor em alguns aspectos, já tendo sido inclusive levados à discussão no Senado Federal alguns projetos de lei neste sentido. Não seria o Congresso Nacional o “fórum” mais adequado para contemplar o teor de tal medida?
JUSTIFICATIVAS DO GOVERNO
A justificativa do governo para a adoção de tal providência, que considera a medida vantajosa para o consumidor por poder pagar menos à vista, se baseia na necessidade de estímulo à competição entre os diversos meios de pagamento, de reduzir os juros do cartão de crédito e de regularizar uma prática já existente no pequeno comércio. Alega ainda que pretende – por intermédio do Ministério da Fazenda e do Banco Central, fazer uma análise do tempo que as administradoras de cartão de crédito levam para repassar o valor pago pelo consumidor ao comerciante (30 dias), atribuindo a este prazo a elevação das taxas de juros do cartão, afirmando, portanto, que existe possibilidade de significativa redução na referida taxa que dependerá somente da finalização dos estudos a cargo do Banco Central.1
Realmente taxas de juros menores interessam sobremaneira ao consumidor contratante do serviço das administradoras de cartão de crédito, entretanto, tal argumento não teria maior consistência após conclusão de tais estudos, restando comprovada inequivocamente a tão sonhada redução?
Inobstante a importância de tais reflexões, deixemos de lado a questão política que não representa o real objetivo deste artigo.
PRONUNCIAMENTOS DE PROFISSIONAIS E INSTITUIÇÕES DIVERSAS SOBRE A MENCIONADA MEDIDA PROVISÓRIA
As instituições especializadas no assunto em sua maioria, especialmente as não governamentais, após a notícia da permissão para diferenciação de preço se manifestaram contrárias à permissão concedida por intermédio da medida presidencial.
A coordenadora institucional da Proteste, Maria inês Dolci, por exemplo, entende que o consumidor já arca com muitos custos para ter o conforto do cartão de crédito. Custos estes que vão desde a anuidade, tarifas, bem como os juros do sistema rotativo. A tese adotada é a de que “o custo do lojista para trabalhar com cartão não pode ser repassado para o consumidor, pois faz parte do risco do negócio”.2
No site do IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, a economista Ione Amorim ressaltou que “Essas despesas já são consideradas na definição do preço do produto ou serviço pelo lojista. Além disso, para o comerciante, dar a opção de pagamento com o cartão é uma estratégia para atrair mais clientes. Portanto, os custos são inerentes à sua atividade comercial”, defendendo que as “medidas representam um retrocesso às garantias do Código de Defesa do Consumidor, em temas que foram regulamentados em normas e leis, e não apresentaram resultados satisfatórios para a redução do custo do crédito no Brasil (como diferenciação no pagamento à vista no cartão de crédito e a adesão ao Cadastro Positivo). Fixar um preço mais alto de quem paga com cartão de crédito fere o inciso V do artigo 39 do CDC, que classifica como prática abusiva exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva.”3
Vitor Hugo do Amaral Ferreira, membro do Brasilcon - Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor afirma categoricamente que tal medida vai contra os direitos já assegurados em favor do consumidor.4
Flavio Tartuce, Doutor em Direito Civil e também membro do Brasilcon – Instituto Brasileiro de Política e de Direito do Consumidor, em seu artigo Breves comentários sobre a MP 7645, que trata de preços diferenciados, de acordo com a forma de pagamento, informa que a norma contraria a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça e transcreve acórdãos, entre os mais recentes Recurso especial da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte conhecido e improvido”. (STJ, REsp 1479039/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/10/2015, DJe 16/10/2015):
PRECEDENTES DO STJ: RESP 1.479.039/MG, REL. MIN. HUMBERTO MARTINS, Precedentes de outras Turmas deste Tribunal Superior (REsp. 1.479.039/MG, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, DJe 16.10.2015 e REsp. 1.133.410/RS, Rel. Min. MASSAMI UYEDA, DJe 7.4.2010). 4. Recurso Especial do comerciante ao qual se nega provimento”(STJ, REsp 1.610.813/ES, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/08/2016, DJe 26/08/2016) DJE 16.10.2015 E RESP 1.133.410/RS, REL. MIN. MASSAMI UYEDA, DJE 7.4.2010
As entidades representativas do comércio em geral demonstraram boa aceitação, sob o argumento de que os custos do cartão já vêm embutidos nos preços anunciados, de que a legalização de preços tende a ser positiva para lojistas e para o consumidor, uma vez que confere maior liberdade nas relações comerciais: “Existe uma coisa que se chama concorrência. Nada impede aumentar o preço e depois dizer que o desconto é promoção. No mercado você tem liberdade de preços, não vejo que isso vai alterar em nada”, disse Marcel Solimeo, diretor do Instituto de Economia da Associação Comercial de São Paulo. “Não vai mudar muito em relação ao que é hoje, a não ser a segurança para quem já faz a diferenciação de preços”.6
LEGISLAÇÃO CONSUMERISTA E A MEDIDA PROVISÓRIA
Sabe-se que o CDC – Código de Defesa do Consumidor, no artigo 39 inciso V, proíbe que se exija do consumidor o que ficou conhecido como “vantagem manifestamente excessiva”. Mas em que se constitui a tal “vantagem manifestamente excessiva” depende de exegese apropriada das normas consumeristas e/ou de uma regulamentação específica, devido à subjetividade envolvida.
A medida provisória em questão sequer sinalizou para uma delimitação para adoção da referida prática no mercado de consumo, por exemplo, limites nos percentuais máximos aplicados para tal variação. A norma se restringiu - pelo menos inicialmente, a permitir a negociação sem restrições.
Também no parágrafo 3º do artigo 36 da Lei Federal 12.529/11 no rol de condutas que caracterizam infração à ordem econômica brasileira, há dispositivo relacionado: “X - discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços;”
Os órgãos que verificam o cumprimento das normas de proteção e defesa do consumidor, não carregam consigo somente a obrigação de defender o consumidor. O Código de Defesa do Consumidor trouxe consigo a obrigação precípua do governo adotar meios capazes de estabelecer o equilíbrio entre este e os fornecedores. Apesar da defesa do consumidor ser o ponto forte de tais órgãos, devido ao fato deste representar a parte mais frágil da relação de consumo, cabe ainda a observância dos princípios dispostos no artigo 4º da Lei Federal 8078/90:
Art. 4º - A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
[...]
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;
V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;
[...]
VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;
VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.
Instituições que visam à proteção do consumidor têm, como primado, a preocupação com o efetivo equilíbrio das relações entre consumidores e fornecedores, devendo, portanto, atuar pronta e firmemente em todos os aspectos que lhes digam respeito.
VISÃO DOS FORNECEDORES
A liberação para cobrar preços diferentes, conforme a maneira de pagamento vai depender de cada lojista, analisando o perfil do cliente e a necessidade financeira do estabelecimento. Essa é a visão do presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Santa Cruz do Sul, Lauro Mainardi Júnior. Disse ele, ainda, que não acredita em alterações no volume de vendas em decorrência de tal possibilidade. Para o presidente da CDL, quem mais vai se beneficiar com a mudança são os clientes que já preferiam pagar à vista e com dinheiro, entretanto ele acredita que seja possível fomentar as negociações entre as operadoras de crédito e os lojistas, para que se crie um estímulo nas compras com cartões. “Comprar com cartão ainda é o mais seguro para os clientes”, diz Mainardi.7
A primeira de muitas perguntas que cabem aqui é se, ao consumidor, principal ator da relação, interessa o “preço” que pagará para ter acesso a tal negociação. Há também o desejo de saber se o fornecedor está preparado para figurar no polo passivo de tal negociação, sem que isto represente, no mínimo, um retrocesso na história do direito do consumidor.
O que não se pode deixar de admitir é que sempre existiram consumidores ávidos por reaver seu antigo poder de negociação. Antigo por datar de antes da existência do “dinheiro de plástico”, quando os consumidores se utilizavam de outros meios de pagamento, tais como o cheque ou o crediário, registrado em notas promissórias e/ou carnês. No intuito de obter algum desconto na aquisição de produtos ou na contratação de serviços diversos, o consumidor tinha a sensação de estar exercendo desta forma e com plenitude seu poder de escolha.
Entretanto não se pode desprezar a situação daquele que está na outra ponta: o fornecedor. A situação deste se agrava devido ao atual cenário econômico: muitas obrigações tributárias – que nem sempre trazem os benefícios a que se propõem, encargos trabalhistas – que não conseguem fazer do empregado uma pessoa com digna qualidade de vida e a atual crise financeira. Tudo isto, somado a outros fatores específicos de cada segmento do mercado, tem o condão de levar consigo sistematicamente uma boa parcela dos lucros de tais fornecedores.
Observando as variadas manifestações decorrentes da edição da MP 764/2016, arrisca-se afirmar que onde parece haver maior consenso é no fato de o uso do cartão de crédito ter se tornado símbolo da “não inadimplência” na relação consumidor/fornecedor.
Isto porque com a crescente utilização do cartão de crédito que se iniciou há aproximadamente duas décadas, houve a quase extinção do cheque – histórico instrumento de calote no mercado de consumo.
Ocorre que, com a possibilidade de redução de preço com o pagamento à vista, inevitavelmente o cheque pode voltar a ser uma boa alternativa aos bolsos cheios de dinheiro, situação esta última inconcebível num país com alto índice de marginalidade e de muito pouca segurança. A partir da inserção do cartão de crédito como meio de pagamento, o risco de endividamento no comércio passou a ser quase nulo, transferindo-o para as administradoras de cartões de crédito, pelo qual a instituição cobra bem caro, tanto dos comerciantes a título de taxa de administração e outros custos, quanto do titular de seu produto, notadamente quando este se utiliza dos limites de crédito ofertados, estes invariavelmente com taxas acima da inflação.
Obviamente que o cartão de crédito tem seu custo e, como todo custo, pode e invariavelmente é incorporado ao custo do produto ou serviço, incrementando o preço exposto no mercado. Portanto, a comodidade mencionada anteriormente, trazida a ambos os integrantes da relação de consumo - ao consumidor pela praticidade de seu uso e crédito facilitado, ao fornecedor pela inexistência de riscos de inadimplência e a ambos pela maior segurança que oferece, parece ser totalmente custeada por apenas um dos integrantes da relação: o consumidor.
Com relação a este assunto específico, cabe informar que, segundo dados do Portal Brasil - cuja fonte é o Banco Central, a partir da vigência das novas regras para pagamento do cartão de crédito, os gastos do consumidor com juros podem cair até 70%, uma vez que não será mais possível ficar no rotativo (pagamento mínimo) por mais de 30 dias. Acreditam ainda que esta medida pode contribuir para uma significativa redução nas taxas e nos custos desta modalidade de pagamento, passando de 484,6% ao ano para 153,8%, o que representa 8,07 % ao mês, taxa que até então girava em 15,85% para o mesmo período.8
ATUAÇÃO DE ÓRGÃOS DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Para Eduardo Cesar Schröder e Braga, Superintendente do Procon Juiz de Fora/MG, a medida provisória parece não implicar em alteração significativa na atuação do órgão: “a fiscalização sobre a obrigatoriedade de informação correta sobre o preço não deixa de existir, e obriga o fornecedor a prestar mais informações do que prestava antes”, resume ele.9 O posicionamento do gestor do Procon JF vai, coincidentemente, ao encontro do adotado na prática pelas autoridades fiscalizadoras do referido órgão. Coincidentemente por que, seu depoimento à imprensa foi dado sem que tivesse sido convencionada com a fiscalização do órgão, a postura a adotar diante de um inevitável fato concreto “pós” medida provisória.
O que ocorre, na visão de quem já contabiliza mais de 30 anos de prestação de serviços fiscais à comunidade municipal de Juiz de Fora é que, muitas vezes, longe de pretender afirmar que o entendimento dos gestores de tais órgãos é divergente do entendimento dos fiscais do mesmo órgão, o que seria um contrassenso, oportuno atentar para a existência de visões, abordagens diferentes para o mesmo fato.
Isto provavelmente se deve ao fato de existirem dentro das instituições voltadas para a proteção e defesa do consumidor duas vertentes bastante diferenciadas.
A primeira, mais emblemática e, provavelmente, responsável pela ampla aceitação e alto índice de credibilidade do órgão a nível nacional, se refere à defesa do consumidor individual e coletivamente. Esta se inicia no setor de atendimento do órgão com uma reclamação de lesão ou ameaça de lesão, passando pelas audiências, no caso de não existir solução com a intervenção do órgão junto às partes. Por fim, se não houver acordo na referida tentativa de conciliação, o processo é encaminhado para a devida abertura de processo administrativo visando apuração de prática infrativa. Tal procedimento já não diz respeito diretamente ao consumidor propriamente dito e, portanto, não tem o condão de gerar solução para o conflito, a despeito de muni-lo de argumentos e informações relevantes para uma eventual ação judicial.
A outra vertente diz respeito à verificação da prática de infração às normas consumeristas de natureza difusa, ou seja, fiscalização de segmentos que possam expor um número indeterminado de pessoas também indetermináveis, a uma prática considerada infrativa à luz das normas vigentes. Desta feita a ação do órgão é desencadeada por fiscais propriamente ditos. Neste caso, a atuação destas autoridades pode ser motivada por ações programadas, em função de datas comemorativas que levam o consumidor a uma procura mais maciça a determinados produtos, tais como Natal, dia dos pais, das crianças, das mães, dentre outros e também pode ser motivada por denúncias que, por exemplo, decorrem das mencionadas reclamações de consumidores no setor de atendimento dos Procons.
Voltando ao tema “diferenciação de preço de acordo com o meio de pagamento”, a autora traz aqui um caso concreto também, a saber:
Em atendimento a uma denúncia feita dois dias após a edição da MP 764/16 relativa à obtenção de vantagem manifestamente excessiva no comércio local da mencionada cidade mineira, a fiscal autora deste artigo - devidamente designada para o feito, constatou informação de preço diferenciado para pagamento em cartão de crédito com percentual acima de 40% em alguns produtos. Segundo informações da funcionária presente, o proprietário sequer tinha conhecimento da existência da Medida Provisória em comento, fato que vem reforçar a tese de que tal prática já era recorrente, tendo sido tão somente formalizada. Entendendo que a medida não abordou nenhuma forma de limitação para a permitida diferenciação de preço, à fiscal – a despeito de considerar a diferença aviltante, não restou alternativa diferente. A fiscal não autuou a empresa por infração naquele ato pelo motivo objeto da denúncia. Procedeu sim à lavratura de um Auto de Constatação, passível de análise pela autoridade responsável pela aplicação de penalidades do referido órgão, devido à insuficiência de fundamento legal que, inequivocamente, amparasse um eventual auto de infração.