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Evolução do direito e do conceito de família

25/05/2018 às 08:20
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Analisam-se as fases do nosso direito de família, com o estabelecimento, de forma simples e cronológica, de toda a evolução por nós vivida nos últimos anos.

Cumpre esclarecer, primeiramente, que este trabalho não teve o escopo de se aprofundar em cada fase decorrida pelo nosso Direito de Família, mas, tão somente, estabelecer de forma simples e cronológica toda a evolução por nós vivida nos últimos anos.

Começarei falando sobre o conceito de família, partindo do Código Civil de 1916, ou seja, do início do século XX. Esse Código, apesar de editado no início do século XX, fora forjado em estudos e projetos de meados do século XIX, com base numa sociedade patriarcal, patrimonialista, agrária e extremamente conservadora.

Nesse período, somente a família decorrente do vínculo matrimonial  formal – casamento - era considerada legítima, as demais uniões eram consideradas ilegítimas e imorais, ficando totalmente desprovidas de proteção jurídica e de reconhecimento social. Nessa época, o conceito de família era o da “instituição-fim em si mesmo”, ou seja, o indivíduo que deveria servir à família.

Com o Código Eleitoral de 1932 surgiu um significativo avanço nos direitos da mulher, esse Código permitiu o voto feminino a partir de 21 anos de idade, tendo a Constituição de 1934 reduzido essa idade para 18 (dezoito) anos.

Foi somente ao final dos anos 1940 que se observou uma tendência nos tribunais da Capital Federal e de São Paulo ao reconhecimento do direito da mulher a ser beneficiada com pensões relativas a seus companheiros, com os quais tivessem formado família e mantido longa convivência marital.

Dessa forma, o instituto da união estável entre homem e mulher passou por quatro fases: a) 1ª fase – negação dos direitos decorrentes da união estável; b) 2ª fase – companheira fazia jus somente aos direitos previdenciários; c) 3ª fase – equiparação à sociedade de fato, edição das Súmulas 380 e 382, ambas do STF; d) 4ª fase – reconhecimento como entidade familiar.

Em 1962 foi promulgada a Lei nº 4.121 (Estatuto da Mulher Casada), que devolveu à mulher casada a plena capacidade, dispensou a necessidade da autorização marital para o trabalho e instituiu o bem reservado. Esse bem reservado era aquele conquistado pela mulher casada, fruto do seu trabalho, que, por sua vez, não respondia pelas dívidas do marido. Ressalte-se que o bem reservado, previsto no Estatuto da Mulher Casada, não foi recepcionado pela Constituição da República de 1988.

Mais adiante no tempo, no ano de 1964, foram editadas duas Súmulas, a 380 e a 382, ambas do STF, quando já era aceita a união estável entre homem e mulher. De acordo com as supracitadas Súmulas, a união estável foi elevada à esfera do Direito Obrigacional, criando, na jurisprudência, a teoria da sociedade de fato e da proibição do enriquecimento sem causa.

Nessa esteira, comparava-se a união estável às sociedades de fato do Direito Comercial, valendo-se do seguinte raciocínio: a sociedade que não realiza o seu registro funciona de fato e não de direito, da mesma forma a união estável entre homem e mulher que não se formalizava pelo casamento. Erroneamente, confundia-se affectio societatis com affectio maritalis.

Além disso, as questões levadas ao Judiciário acerca dessas uniões eram direcionadas para as Varas Cíveis.

E, para dificultar ainda mais a posição da companheira, os juízes aplicavam, de acordo com o entendimento de cada um, a teoria da contribuição direta ou indireta.

Em 1977 foi editada a Emenda Constitucional nº 9/77 – instituindo o divórcio no Brasil, que causou na ocasião imensa polêmica e discussão. A Constituição teve de ser alterada para que a Lei nº 6.515/77 fosse promulgada.

Com o advento da Lei nº 6.515/77, há a substituição da palavra “desquite” (que quer dizer “não quites”, em débito para com a sociedade – que rompia a sociedade conjugal, mas não dissolvia o casamento) pela expressão “separação judicial”; a adoção do patronímico do marido passou a ser facultativa, estendeu-se ao marido o direito a alimentos, e o regime da comunhão parcial de bens passou a ser a regra geral.

A Lei nº 6.515/77 concedeu a possibilidade de um novo casamento, mas somente por uma vez, sendo que essa determinação foi abolida pela Lei nº 7.841/89, possibilitando os divórcios sucessivos.

A Constituição da República de 1988, conhecida também como Carta Cidadã, provocou uma profunda mudança de paradigma no Direito de Família. A instituição casamento cede espaço ao afeto. O princípio da afetividade passa a figurar como pilar de todas as relações familiares, ao lado dos princípios da dignidade da pessoa humana e da personalidade.

A Constituição da República fez com que passássemos de um modelo único e hierárquico de família para um modelo plural e democrático.

Por seu turno, abandonou-se o conceito de família enquanto “instituição-fim em si mesmo” e se passou a adotar outro modelo, o conceito de “família instrumental ou funcional, ou seja, como um instrumento (provavelmente o principal) para o desenvolvimento dos indivíduos e para a realização de seus projetos existenciais. Não é mais o indivíduo que deve servir à família, mas a família que deve servir ao indivíduo.”

Além disso, a nossa Magna Carta estabeleceu a igualdade entre homem e mulher (inciso I, do art. 5º, §5º do art. 226, inc. IV do art. 2º), e a igualdade entre os filhos (§6º, do art. 227, arts. 1.596 e 1.834, ambos do Código Civil), ampliando o conceito de família, que passou, como dito anteriormente, de um modelo único e hierárquico para um modelo plural e aberto.

Em dezembro de 1994 foi editada a Lei nº 8.971, de 29/12/1994, conferindo ao companheiro ou à companheira, o direito a alimentos e à sucessão; no entanto, estabeleceu no seu art. 1º a necessidade de comprovação de 5 (cinco) anos de união ou da existência de prole da aludida união, devendo o outro companheiro comprovar o estado civil de desquitado, solteiro, separado, divorciado ou viúvo.

Em maio de 1996 foi publicada a Lei nº 9.278, que estabeleceu o fim do prazo de 5 (cinco) anos para comprovação da união estável, o fim da obrigatoriedade de comprovação do estado civil do companheiro (ser solteiro, desquitado, separado, divorciado ou viúvo), criou o direito real de habitação para o companheiro ou para a companheira sobrevivente, determinou a competência da Vara de Família para dirimir questões atinentes à união estável, bem como estabeleceu a presunção legal de comunicação dos aquestos, em relação aos bens adquiridos de forma onerosa, durante a união estável (ou seja, pôs fim à discussão da teoria da contribuição direta e da indireta).

Vale lembrar que no ano de 2001, o INSS expediu a Instrução Normativa nº 50, concedendo ao companheiro ou à companheira homossexual a concessão da pensão por morte e o auxílio-reclusão.

No ano de 2002 nos deparamos com o Novo Código Civil, que, a meu ver, provocou um enorme retrocesso em relação aos direitos dos companheiros, ao não incluir o companheiro no rol dos herdeiros necessários, limitando e diferenciando o direito sucessório, além de não conferir o direito real de habitação aos companheiros. Entretanto, essa distorção foi corrigida  pelos diversos precedentes jurisprudenciais, REsp 1118937/DF, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 24/02/2015, DJe 04/03/2015; REsp 1124859/MG, Rel Ministro Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão Ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 26/11/2014, DJe 27/02/2015; AgRg nos EDcl no REsp 1095588/MG (decisão monocrática) Rel. Ministro Raul Araújo julgado 07/10/2015 DJe 09/11/2015. (Vide Informativo de Jurisprudência nº 556) e do Enunciado 117 da CJF.

Na contramão desse retrocesso, mais uma vez a Justiça brasileira, por meio de uma corajosa decisão proferida pelo então juiz da 2ª Vara de Órfãos e Sucessões, atualmente Desembargador da 25ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Luiz Felipe Francisco, homologou acordo inédito ao conceder à ex-companheira da cantora Cássia Eller, Maria Eugênia Vieira, a tutela definitiva do menor Chicão, que estava sendo disputada pelo avô paterno, Altair Eller.

No entanto, o fundamento daquele acordo, smj, para que a tutela fosse concedida à ex-companheira da cantora Cássia Eller, foi a aplicação do princípio do melhor interesse do menor, apesar de já ter sido introduzido no nosso mundo jurídico, de forma ainda incipiente, desde o ano de 1992, o reconhecimento da filiação socioafetiva, que, a meu ver, aplicar-se-ia de maneira muito mais consentânea àquela situação.

Retornando ao nosso Código Civil, o §1º, do art. 1.723, estabelece, de forma expressa e estreme de dúvidas, que a união estável poderá existir ainda que o companheiro seja casado. Impõe, todavia, que o mencionado companheiro esteja separado de fato.

Enfatize-se que o nosso direito rechaça veementemente as relações concomitantes.

Para tanto, basta compulsarmos a vasta jurisprudência do STJ, que, por sua vez, se fundamenta em julgado do STF, RE 397.762-8/BA, j. 03/06/2008, que se baseou no art. 1.727, do nosso Código Civil.

Por outro giro, o nosso Judiciário persistindo na tentativa de corrigir os retrocessos representados pela edição do Código Civil de 2002, mormente em relação aos direitos sucessórios do companheiro, deverá, em breve, publicar o acórdão RE 878.694-MG, com o voto brilhante do nosso Ministro Roberto Barroso. No referido voto, o Ministro Roberto Barroso concedeu ao companheiro direitos sucessórios idênticos aos do cônjuge, previstos no art. 1.829, do CC/02.

Segundo o nosso ínclito Ministro, o art. 1.790, do CC/02 “é incompatível com a Constituição Federal. Além da afronta à igualdade de hierarquia entre entidades familiares extraída do art. 226 da Carta de 1988, violou três princípios constitucionais, (i) o da dignidade da pessoa humana, (ii) da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente, e (iii) o da vedação ao retrocesso.”

Em relação ao divórcio e à separação, vale, igualmente, destacar a edição da Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007, que permitiu a realização desses atos pela via administrativa, desde que não haja interesse de menores ou de incapazes.

E, após a Emenda Constitucional nº 66/10, tornou-se desnecessária a prévia separação judicial e o decurso do prazo de 2 (dois) anos para o divórcio direto (o novo CPC prevê expressamente a separação judicial – art. 693, pondo fim a discussão se a separação judicial havia ou não sido abolida do nosso sistema jurídico).

Outra importante evolução do nosso direito de família, desta vez, no entanto, não decorrente de uma lei, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal de maio de 2011, que reconheceu as uniões entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.

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Vale dizer, que as uniões entre pessoas do mesmo sexo trilharam o mesmo caminho que a união estável entre homem e mulher. A princípio houve a negação de qualquer direito; passamos depois para uma segunda fase, em que somente eram reconhecidos os direitos previdenciários; em seguida, essas uniões eram tratadas pelo nosso Judiciário como sociedades de fato, a elas se aplicando o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, a Súmula nº 380, do STF e com as ações direcionadas às Varas Cíveis. Para finalmente, chegarmos à quarta e última fase que reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.

A memorável decisão do STF, no julgamento da ADI nº 4.277 e na ADPC nº 132, baseou-se nos seguintes princípios e fundamentos para reconhecer as uniões entre pessoas do mesmo sexo, como união estável albergada pelo art. 226, da nossa Constituição da República.

a) proibição da discriminação (homem/mulher, orientação sexual);

b) direitos fundamentais do indivíduo, autonomia da vontade;

c) proibição do preconceito;

d) silêncio normativo – norma geral negativa – segundo o qual, o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido;

e) princípio da dignidade da pessoa humana (direito à busca da felicidade e direito à liberdade sexual);

f) interpretação não reducionista ou ortodoxa do conceito de família;

g) interpretação do art. 1.723, do Código Civil, conforme a Constituição da República.

Logo após a memorável e histórica decisão do STF, no dia 27 de junho de 2011, em Jacareí, São Paulo, foi prolatada a sentença que converteu a união estável em casamento, sendo este o primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil.

A mencionada sentença, proferida pelo douto Juiz da 2ª Vara de Família de Jacareí, Fernando Henrique Pinto, valeu-se do seguinte raciocínio, se o STF reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, como a união digna de proteção do Estado; se a Constituição da República determina no seu § 3º, do art. 226, que a lei deverá facilitar a conversão da união estável em casamento, logo o casamento é consectário da união estável.

O silogismo foi inevitável.

Sem dúvida esse casamento causou um enorme frisson e resistência por grande parte da nossa sociedade. Muitos se manifestaram: união estável tudo bem, casamento já é demais!

A consequência disso tudo foi que alguns registradores, juízes e promotores admitiam o casamento gay, outros não, gerando uma enorme insegurança no nosso sistema jurídico.

Em outubro de 2011, por ocasião do julgamento do REsp nº 1.183.378/RS, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua 4ª Turma, considerou juridicamente possível o casamento entre duas mulheres do Rio Grande do Sul que viviam em união estável há alguns anos.

Segundo o voto do Ministro Relator do caso, Luis Felipe Salomão: “a igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito a auto afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença.”

Não obstante, foi preciso que o CNJ interviesse, a meu ver, com a necessária mão de ferro, nessa grande confusão para uniformizar os entendimentos.

Nesse diapasão, o CNJ editou a Resolução nº 175, de 14 de maio de 2013, que diz o seguinte:

“Art. 1º - É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.”

Vale lembrarmos que não existe, até o presente momento, no Brasil, uma lei que permita o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esse avanço foi uma conquista do Poder Judiciário.

Só que os avanços não param por aqui!

Em agosto de 2012, foi noticiado na 1ª página do Jornal “O Globo”, que a Tabeliã de Tupã, Claudia Domingues, lavrou uma escritura pública de união poliafetiva, envolvendo um homem e duas mulheres.

Agora o frisson alcançava todos! Jovens, idosos, gays... Aí já é demais!

Por esse motivo, resolvi escrever um artigo sobre esse tema, com o intuito de ser solidária com a minha colega de Tupã, que, pelo que soube, estava sendo quase apedrejada!

O nome do artigo é União Poliafetiva. Por que não?

E eu lhes pergunto. Por que não? Já que estão presentes todos os fundamentos e princípios da lendária decisão do STF. Vocês se lembram dos fundamentos? Não é o AFETO o pilar do novo direito de família? O conceito de família não é plural e aberto?

Então o que falta à união poliafetiva para que seja reconhecida como um novo modelo de família? Já que ela ostenta todos os requisitos para que isso ocorra, tais como partes capazes, relação pública, contínua e duradoura, com o objetivo de constituir família e sem que haja qualquer impedimento legal, previsto no art. 1.521, do Código Civil.

Entendo que o debate sobre a possibilidade ou não do reconhecimento da união poliafetiva como um novo modelo de família reside fundamentalmente na indagação se essas relações merecem o mesmo respeito e reconhecimento que a sociedade outorga às demais uniões.

Ou seja, se essas uniões cumprem o propósito da instituição social do casamento ou da união estável.

Melhor explicando, falta-lhes, nesse momento, RECONHECIMENTO SOCIAL.

Sem dúvida, nesse tipo de situação a questão moral e religiosa estará implícita inevitavelmente.

E, na minha visão, não podemos impor a nossa moral a quem quer que seja, mormente quando estamos na qualidade de um delegatário de um serviço público.

O delegatário de um serviço público deve se restringir a dar forma legal aos atos que lhes são submetidos, é o que determina o inciso II, do art. 6º, da Lei nº 8.935/94.

Acredito que a grande dificuldade para que haja esse reconhecimento social é que vivemos numa sociedade em que tanto o dever de fidelidade presente no matrimônio (vide inciso I, do art. 1.566, do CC) quanto o dever de lealdade da união estável (vide art. 1.724, do CC) têm ligação direta com o princípio da monogamia.

Como já vimos anteriormente nesse trabalho, as uniões simultâneas são fortemente rechaçadas pelo nosso ordenamento jurídico e pelos tribunais.

Para muitos, a ruptura desses paradigmas é muito perigosa.

Outro ponto que entendo ser igualmente relevante para que essas uniões poliafetivas não tenham maior visibilidade é o desconforto e o constrangimento que, normalmente, as pessoas vivenciam quando assumem esse tipo de relacionamento.

Lamentavelmente, hoje ao ler o jornal “O Globo”, deparei-me com o renomado jurista Luiz Edson Fachin tendo que se defender das acusações de que seria favorável à poligamia, perante o Senado, para que sua indicação a ministro fosse aceita pelo STF.

Em que espécie de país nós vivemos onde um cidadão não pode manifestar as suas ideias? Será que retornamos à época de Galileu Galilei?

E caso ele seja realmente a favor da poligamia?

Esse fato o desmerece de alguma forma?

Agora, vamos falar de outra questão que, a meu ver, representa um entrave ao reconhecimento da união poliafetiva, a questão financeira.

Pois alguém acreditaria que o INSS, a Receita Federal ou os planos de saúde invocariam questões morais ou religiosas para negar o pagamento da pensão previdenciária; negar a dedução de mais de um companheiro na declaração de renda daquele contribuinte, que vive em regime de união poliafetiva ou acrescer um dependente no seu plano de saúde?

Lembrem-se de que a Receita Federal somente admitiu a inclusão de dependentes homoafetivos em 2010, por meio do Parecer PGFN nº 1.503.

Nessas três hipóteses, a questão, no meu entendimento, é puramente financeira.

Prova disso é que, no ano de 2014, no apagar das luzes, foi publicada a nefasta Medida Provisória nº 664, de 30/12/2014, convertida na Lei nº 13.135 de 17.06.2015, que, na minha ótica, ao arrepio da lei e representando inegável retrocesso, determinou que o benefício da pensão por morte somente poderia ser conferido após comprovação de 2 (dois) anos de casamento ou de união estável.

Apenas a título de ilustração, entendo, também, pertinente trazer à baila a discussão que existe atualmente nos Estados Unidos da América do Norte, sobre o reconhecimento ou não de determinados tipos de relações, que fogem do modelo tradicional.

Nesse intuito, o analista político Michael Kinsley traz como solução para essas tormentosas questões, que a ver dele trata-se de um conflito sem perspectiva de solução, a ideia da “desestatização do casamento”, deixando, portanto, de ser uma instituição sancionada pelo Estado.

Melhor explicando, o Estado não reconheceria nenhum tipo de casamento ou união estável, deixando esse papel para as associações privadas.

Ainda segundo Kinsley, “se o casamento fosse uma questão apenas privada” “todas as discussões sobre o casamento gay seriam irrelevantes”.

Entretanto, tanto os conservadores como os liberais não apoiaram a proposta da “desestatização do casamento” de Kinsley, e, pela última notícia que tivemos, apenas dois deputados do Congresso americano apoiam essa ideia.

Agora, vamos enfrentar outra questão. O tabelião poderá lavrar uma escritura de união poliafetiva?

A minha resposta é: claro que sim! Por que não poderia?

A escritura pública é um ato praticado perante o tabelião, que contém a manifestação de vontade das partes em realizar um negócio jurídico ou declarar uma situação juridicamente relevante.

Para que eu possa lavrar uma escritura, tenho que observar a “Escada Ponteana”, ou seja, os requisitos de existência e validade, previstos no art. 104, do nosso Código Civil.

Quanto à eficácia, o ato poderá ou não produzir efeitos.

Isso quer dizer que, uma vez lavrada a escritura de união poliafetiva, esta poderá produzir ou não os efeitos pretendidos nos órgãos competentes.

Resumindo, o ato existe, é válido, porém ineficaz.

Aliás, o ato poderá ser ineficaz neste momento e não mais sê-lo num futuro próximo.

Nós, tabeliães, praticamos inúmeros atos ineficazes no decorrer da nossa vida profissional, como, por exemplo, o testamento, a venda de um bem penhorado, a cessão de direitos hereditários, entre outros.

E, por fim, entendo e reitero que eu, na qualidade de delegatária de um serviço público, tenho obrigação de atender ao público nas suas demandas, observando-se única e exclusivamente a legalidade do ato a ser praticado.

Como diriam os administrativistas, eu tenho um poder-dever!

E quais os benefícios e a importância da realização dessa escritura neste momento?

Entendo que os benefícios seriam os seguintes:

Sendo o notário dotado de fé pública, ele conferirá àquela escritura, a condição de prova pré-constituída e todo o seu conteúdo é acatado como verdadeiro, conferindo às partes maior segurança jurídica.

Além disso, podemos nessa escritura:

  1. estabelecer direitos patrimoniais, estipulando o regime de bens, se for o caso;
  2. determinar a data do início da relação, posto que, se futuramente, esse tipo de relação for reconhecida, inúmeros direitos já estariam naquele documento assegurados:
  3. facilitar ao juiz, diante do caso concreto, o julgamento de eventual lide;
  4. pleitear pensão previdenciária;
  5. pleitear admissão no plano de saúde;
  6. pleitear que se faça declaração do IR conjunta junto à Receita Federal.

Agora, gostaria que ficasse bem claro que a escritura pública de união poliafetiva não tem o condão de transformar aquela união poliafetiva em união estável, merecedora de proteção do Estado, nos moldes do art. 226, da Constituição da República e do art. 1.723, do Código Civil.

 A união existe independentemente da escritura – a escritura tem efeito meramente declaratório, não constitutivo -, trata-se de uma situação de fato preexistente que será ratificada em um documento público. Quem dirá se esse tipo de relação merece ou não o status de união estável digna de respeito, de reconhecimento e de proteção jurídica, será a própria sociedade.

Poderá o tabelião lavrar escritura de instituição de bem de família, com fundamento no art. 1.711, do Código Civil?

Nessa hipótese, entendo que não será possível, posto que, como explanei anteriormente, na escritura declaratória, o tabelião simplesmente ratificará por meio do instrumento público uma situação de fato preexistente, não garantindo a eficácia do ato nos órgãos competentes.

Já, no caso da escritura de instituição de bem de família, o tabelião teria que reconhecer a união entre três pessoas como entidade familiar, outorgando-lhe eficácia, que, na minha ótica, escaparia da sua competência.

FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO INDEPENDENTEMENTE DE AÇÃO JUDICIAL. REGISTRO HOMOPARENTAL E MULTIPARENTAL.

Outra importante evolução do nosso direito de família diz respeito ao reconhecimento da filiação socioafetiva.

Vale destacar que a filiação socioafetiva é modalidade de parentesco recentemente introduzida no nosso ordenamento e nossa jurisprudência, pelo jurista e atualmente ministro do STF, Luiz Edson Fachin, no ano de 1992.

A sua base jurídica está prevista no art. 1.593, do Código Civil (ver também Enunciado nº 103 da CJF), que assim determina:

“O parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem.”

Para Maria Berenice Dias, “o ponto essencial da relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho. Toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não”.

O certo é que o reconhecimento da filiação socioafetiva e a sua consequente equiparação ou mesmo superação em relação à filiação biológica está ganhando cada dia mais adeptos nos nossos tribunais. Parece-me que esse entendimento é um caminho irreversível.

Corroborando esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou no julgamento do Resp. 1059214, sendo relator foi o Ministro Luis Felipe Salomão, o entendimento de que o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Nesse sentido, a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva.

Mas o que vamos discutir hoje é se é possível o reconhecimento da filiação socioafetiva, independentemente de se recorrer à via judicial.

A resposta é sim!

Quanto aos filhos havidos na constância do casamento, presume-se a filiação, art. 1.597, do Código Civil.

Para os filhos havidos fora do casamento, basta a declaração do pai perante o registrador, para que seja averbada a paternidade no assento de nascimento.

Ou seja, a lei não exige nenhuma outra prova, a não ser a declaração do pai, para o reconhecimento da paternidade (§ 3º, do art. 2º, da Lei nº 8.560/92).

Vale lembrar que a Lei nº 8.560/92 trata do reconhecimento de filhos fora do casamento, sem discriminar o tipo de filiação: biológica ou socioafetiva.

Consequentemente, impedir o reconhecimento da filiação socioafetiva na via administrativa seria uma inegável violação ao preceito constitucional previsto no § 6º, do art. 227, da Constituição da República.

Os estados do Ceará, do Maranhão, de Pernambuco, de Santa Catarina e Amazonas por meio das suas Corregedorias, editaram Provimentos (9, 21 e 15, todos de 2013, e 11 e 234 de 2014) autorizando o reconhecimento da filiação socioafetiva diretamente no Registro Civil competente.

Esses supracitados Provimentos se fundamentaram, basicamente, nos seguintes argumentos:

  1. CF ampliou o conceito de família, princípio da igualdade de filiação, princípio da afetividade;
  2. Instituto da paternidade socioafetiva tem a sua existência ou coexistência reconhecidas no âmbito da realidade familiar;
  3. Ausência de hierarquia entre filiação biológica e socioafetiva;
  4. Reconhecimento voluntário de paternidade deve ser estendido às hipóteses de reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva, princípio da igualdade jurídica (Lei nº 8.560/92);
  5. A facilitação prevista no Provimento nº 12, que instituiu o “Programa Pai Presente”, e os demais Provimentos de nºs 16 e 26, do CNJ para o reconhecimento voluntário de paternidade biológica devem ser aplicados no que forem compatíveis ao reconhecimento voluntário da filiação socioafetiva;
  6. Art. 10, inciso II, do Código Civil, registro público;
  7. Enunciado Programático IBDFAM nº 06/2013, segundo o qual “do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental”;
  8. A existência de grande número de crianças e de adultos sem paternidade registral estabelecida, embora tenham relação de paternidade socioafetiva já consolidada;

No entanto, de acordo com os Provimentos mencionados acima, para que se possa pleitear a averbação no registro de nascimento da filiação socioafetiva, a mencionada certidão deverá ostentar somente o nome da mãe.

FORMAS DO RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA PERANTE O TABELIÃO

Entendo que o reconhecimento da filiação socioafetiva poderá se efetivar de duas formas: a) escritura declaratória de reconhecimento de filiação socioafetiva; b) testamento (inc. III, do art. 1.609, do Código Civil).

Nas duas situações o reconhecimento será irrevogável, vide art. 1.610, do Código Civil.

DO REGISTRO DE NASCIMENTO HOMOPARENTAL SEM INTERVENÇÃO JUDICIAL

Só que, mais uma vez, os avanços não param por aí.

Em julho de 2014, o Estado do Mato Grosso, de forma pioneira, por meio da sua Corregedoria Geral de Justiça, publicou o Provimento nº 54, que possibilitou o registro de nascimento homoparental, sem a necessidade da intervenção judicial.

Logo após, em São Paulo, ainda no ano de 2014, a CGJ paulista, por meio do Parecer 321/2014-E, de 22 de outubro de 2014, da lavra do ilustre juiz assessor Gustavo Henrique Bretas Marzagão, igualmente permitiu o registro da filiação homoparental perante o Registrador Civil diretamente, sem ter que se recorrer à via judicial.

Em seguida, no mês de novembro, o Estado da Bahia, publicou o Provimento Conjunto nº CGJ/CCI nº 008/2014, autorizando, também, o registro homoparental diretamente no Registro Civil.

A discussão sobre a possibilidade de registro homoparental teve fim com a publicação do Provimento nº 52 do CNJ, de 14 de março de 2016.

Do Registro HOMOPARENTAL E DOS filhos havidos por reprodução assistida sem intervenção judicial - Provimento CNJ Nº 52/2016

O CNJ, recentemente, em março de 2016, publicou o Provimento nº 52, que regulamenta a emissão de certidão de nascimento dos filhos, cujos pais optaram pela fertilização in vitro ou pela gestação por substituição, popularmente conhecida como barriga de aluguel, tornando mais simples o registro de crianças geradas por técnicas de reprodução assistida.

Até então, esse registro só era efetivado por meio de decisão judicial, com exceção dos Estados do Mato Grosso, São Paulo e Bahia (no que tange ao registro homoparental), já que não havia regras específicas para esses tipos de casos.

Vale ressaltar, que o CNJ além de uniformizar as regras para a efetivação do registro homoparental e da reprodução assistida, advertiu os oficiais de Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN), que, caso viessem a recusar esses pedidos seriam submetidos a processo disciplinar perante a Corregedoria dos Tribunais de Justiça nos estados.

Merece destaque, ainda, a Resolução nº 2.013/13, do CFM - Conselho Federal de Medicina, segundo a qual a cessão temporária do útero não deve ter finalidade lucrativa ou comercial e, ainda, que as doadoras temporárias devem pertencer à família de um dos parceiros num parentesco consanguíneo até o quarto grau, respeitando-se a idade limite de até 50 anos.

A MULTIPARENTALIDADE OU PLURIPARENTALIDADE

Conforme podemos verificar, a coexistência da filiação biológica e da socioafetiva é uma realidade, já exarada em diversas decisões judiciais, em que foram realizados registros de nascimento apresentando duas mães e um pai ou dois pais e uma mãe.

Sendo que o primeiro reconhecimento multiparental se deu no ano de 2012, em Rondônia.

Aproveito para reproduzir os dizeres da juíza Alda Maria Holanda Leite, da 3ª Vara de Infância e Juventude de Fortaleza, que assim se manifestou diante de um pedido de registro de nascimento multiparental:

“Não se trata evidentemente de criar situações jurídicas inovadoras, fora da abrangência dos princípios constitucionais e legais. Trata-se de um fenômeno de nossos tempos, da pluralidade de modelos familiares, das famílias reconstituídas, o que precisa ser enfrentado, cedo ou tarde, também pelo Direito.”

Em junho de 2016, o juiz Márcio Quintes Gonçalves, da 4ª Vara de Família do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, homologou o acordo feito por duas mulheres e um homem em Ação de Divórcio Consensual cumulada com Declaratória de Multiparentalidade. As mulheres estavam separadas de fato desde fevereiro de 2015 e buscavam formalizar o divórcio e regularizar o registro de nascimento do filho, que possui uma família formada por duas mães e um pai. No acordo, foi reconhecida a filiação socioafetiva e confirmada a guarda compartilhada.

O juiz afirmou que “sendo omisso o ordenamento jurídico, deve o juiz decidir recorrendo à aplicação da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito” e destacou na sentença, a lição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, diretores do Instituto Brasileiro de Direito de Família, segundo a qual, “os valores do Direito não são criados abstratamente, representam a expressão da vontade social. Logo, o Direito não está à disposição de conceitos eternos, imutáveis. Ao revés, tem de se adaptar aos avanços da sociedade.”

Em recente julgado do Supremo Tribunal Federal (STF) fixou no julgamento do RE 898.060, ocorrido em setembro de 2016, em ação com repercussão geral, cujo relator foi o Ministro Luiz Fux, o entendimento de que uma pessoa pode ter, em seu documento de identificação, o registro de seu pai biológico e também o do pai socioafetivo, ou seja, o STF entendeu pela coexistência da filiação biológica e da socioafetiva.

Na sessão, os ministros sustentaram que "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais.”

MUDANÇA NO MODELO DE CERTIDÃO DE NASCIMENTO

O CNJ, por meio dos Provimentos de nºs 2 e 3, de 27/04/2009 e 17/11/2009, respectivamente, procurou adequar a certidão de nascimento à nova realidade da sociedade brasileira, visando esse objetivo, aboliu expressões que, indubitavelmente, restringiam essa evolução ou representavam algum tipo de discriminação.

Na minha ótica, as alterações mais expressivas são aquelas que determinam a substituição das palavras “pai e mãe” para filiação, substituindo, igualmente, os termos “avós maternos e paternos”, para simplesmente avós, bem como a supressão da referência à cor do filho.

CONCLUSÃO

Agora, voltando ao assunto da união poliafetiva. Dentro desse novo panorama em que estamos vivendo, em que o reconhecimento e a equiparação da filiação socioafetiva com a filiação biológica é uma realidade, agora, depois da decisão do STF, indiscutível, do registro homoparental diretamente no Registro Civil, do registro multiparental, não entendo o motivo de criarmos tanta dificuldade em aceitar esse novo formato de família.

Qual seria a novidade? Ou melhor, qual seria a dificuldade?

Enfim, espero que essas atuais discussões sobre o reconhecimento ou não da união poliafetiva como um novo modelo de família, do registro homoparental (essa discussão teve fim após a publicação do Provimento nº 52, do CNJ), do registro multiparental, fiquem em pouco tempo obsoletas e, definitivamente, sedimentadas na estrada do tempo, tal qual ocorreu com o divórcio, a chefia da sociedade conjugal, o voto feminino, a própria discussão sobre a tutela do filho de Cássia Eller, entre outras.

E que efetivamente possamos ser uma sociedade livre, justa e solidária, que promova o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e que sejamos todos felizes.

Pois a felicidade é, indubitavelmente, o maior bem perseguido por todos nós seres humanos!

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Sobre a autora
Fernanda de Freitas Leitão

Bacharel em Direito em 1991 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Exerceu a advocacia na iniciativa privada, em seguida, admitida em concurso público, exerceu o cargo de Procuradora do Estado do Rio de Janeiro e, a partir de 1998, passou a atuar como Tabeliã do 15º Ofício de Notas da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITÃO, Fernanda Freitas. Evolução do direito e do conceito de família . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5441, 25 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56343. Acesso em: 5 nov. 2024.

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