8. ABORDAGEM CRÍTICA DOS PARÂMETROS ADOTADOS PELA DOUTRINA
Até aqui, buscou-se demonstrar que, dentre os critérios utilizados pelos processualistas para compreender o alcance das aplicações supletiva e subsidiária, destaca-se a superioridade do parâmetro baseado na diferenciação entre lacunas primárias e secundárias.
Sua prevalência funda-se em argumentos diversos, minudenciados em linhas passadas: a) extração do parâmetro a partir da interpretação histórica e teleológica da norma; b) consonância com o fenômeno da filtragem constitucional, por maximizar a concretização de princípios constitucionais; c) compatibilidade com a interpretação evolutiva do art. 769 da CLT; d) incremento da autonomia do processo do trabalho.
A análise comparativa revela que a prevalência do critério da natureza sistêmica se justifica, também, pela superação de vicissitudes observadas nos demais prismas doutrinários[35].
As posições fundadas estritamente nas relações de sinonímia e continência, por exemplo, além de possuírem esteio na interpretação lexical, que não provê base sólida para o enfrentamento da questão, pecam por não apresentar a melhor solução diante do preceito que afasta a presunção de palavras inúteis na lei (Verba cum effectu, sunt accipienda).
Além disso, a crítica limitada à falta de técnica legislativa pode acabar por desprestigiar, em alguns casos, a oportunidade de construir na zona cinzenta criada pelo legislador o espaço útil para a modernização da heterointegração entre os ramos processuais.
Nesse contexto, o critério que associa a aplicação supletiva às lacunas ontológicas e axiológicas segue caminho mais profícuo, aproveitando o debate para consolidar visão evolutiva que permite o enfrentamento das lacunas secundárias.
No caso do parâmetro da imperatividade da integração, seu mérito é perceber que a aplicação supletiva abre espaço para um maior protagonismo dos julgadores, já que a verificação da ancilose ou iniquidade da norma exige uma análise complexa do sistema jurídico, permitindo ao juiz manusear mais elementos no ato de interpretar/aplicar a norma.
De fato, o preenchimento de lacunas secundárias envolve juízo valorativo do magistrado sobre as normas em um caso concreto, conferindo-lhe, por via oblíqua, maior espaço de decisão.
Contudo, a ideia de que a aplicação supletiva se submete a um juízo de conveniência não parece ser a mais correta, permissa venia. Verificada a lacuna de qualquer espécie, sua colmatação será sempre imperiosa. Se o juiz concluir pela desatualização da norma, por exemplo, não poderá insistir em sua aplicação, sob pena de ofensa ao devido processo legal em seu sentido substantivo ou material.
Inexiste, pois, espaço de conveniência do magistrado quando o ordenamento jurídico viabiliza o aprimoramento do processo por meio da heterointegração. A aplicação supletiva, na hipótese, é também cogente, ainda que a lacuna que a evoca seja de mais complexa verificação.
As correntes que elegem a amplitude da integração ou da lacuna locupletada como fator distintivo, apesar de endossadas por grande parcela dos juristas, têm em seu desfavor o recurso aos conceitos ambíguos de “lacuna parcial” ou de “incompletude da norma”, que abrem espaço para dissensos geradores de insegurança jurídica.
A perspectiva viabiliza ainda posições restritivas do potencial modernizador do dispositivo, tendo em vista que sua abordagem é, na maioria das vezes, limitada ao enfrentamento de lacunas normativas, deixando sem solução o urgente problema das lacunas ontológicas e axiológicas.
Outro ponto negativo é o fato de que tal prisma induz à falsa percepção de que a colmatação das ditas lacunas parciais envolve uma operação heterointegrativa mais simples, de menor repercussão processual[36].
Em contraposição, o critério que considera a natureza da lacuna sistêmica, além de atentar para a questão das lacunas secundárias, aproveita-se do aparato teórico já construído pelos adeptos da interpretação evolutiva do art. 769 da CLT para empregar conceitos razoavelmente consolidados, reduzindo o dissenso em torno do alcance da aplicação supletiva.
De outra ponta, promove a equivalência entre as lacunas no que tange aos efeitos no ordenamento jurídico, reconhecendo que lacunas normativas, ontológicas ou axiológicas resultam igualmente em vazios no sistema jurídico, diante da relação de interdependência existente entre os subsistemas normativo, fático e valorativo. Deste modo, tal critério permite a imediata percepção de que a aplicação supletiva pode ser tão complexa, dificultosa e relevante quanto a subsidiária.
As posições alicerçadas na complementaridade entre os termos, além do esteio na pouco eficiente análise gramatical, acabam por olvidar que o objetivo da inovação legal foi ampliar o espaço para a importação normativa, conforme interpretação histórica e teleológica do artigo.
A necessária associação entre as aplicações supletiva e subsidiária relega a uma delas um efeito limitador da heterointegração, contrariando a declarada intenção ampliativa do legislador.
Nesse sentido, vale frisar que a barreira fundada nas exigências de compatibilidade e melhoramento do sistema trabalhista é inquestionável, mas deve ser extraída do art. 769 da CLT, e não dos conceitos de supletividade ou subsidiariedade.
Tal distorção não macula o parâmetro da natureza da lacuna do sistema jurídico, visto que os distintos campos de atuação das aplicações supletiva e subsidiária são bem delimitados e independentes.
Também o entendimento que relega à aplicação supletiva uma função meramente interpretativa é igualmente discutível, pois faz letra morta da expressão "ausência de normas", contida no texto do art. 15 do NCPC. O dispositivo deixa claro que a aplicação supletiva somente pode ser acionada em hipótese de vazio normativo, sendo certo que não se pode interpretar uma norma inexistente.
Mais uma vez, cuida-se de censura que não se aplica ao critério da lacuna sistêmica, que atribui um significado mais flexível à expressão referida, sem, contudo, anulá-la.
No caso das posições jurídicas que buscam compatibilizar diferentes parâmetros, nota-se que, além de reproduzir alguns dos aspectos já aqui criticados, tais arranjos sincréticos podem ainda gerar novas situações problemáticas.
É o caso da difundida associação entre os critérios da amplitude da lacuna/integração e o critério da natureza da lacuna do sistema jurídico. Segundo este pensamento, as lacunas ontológicas e axiológicas seriam lacunas parciais, colmatadas por meio da aplicação supletiva do NCPC ao ramo principal.
Esta posição não é compatível com a teoria das lacunas. Conforme escólio de Maria Helena Diniz, já aludido em diferentes passagens deste trabalho, a lacuna do sistema jurídico decorre de quebra da isomorfia entre os subsistemas. Assim, as lacunas axiológicas e ontológicas geram vazios sistêmicos tão profundos e amplos quanto aqueles criados pela inexistência da norma em si.
Há, pois, impropriedade na afirmação de que uma lacuna ontológica ou axiológica seria “parcial” ou “relativa”, enquanto a lacuna normativa seria “integral” ou “absoluta”, pois qualquer falha na correlação entre os sistemas produz lacunas de igual abrangência no sistema jurídico. Pode-se dizer, em suma, que a lacuna, em qualquer destas três hipóteses, será sempre “integral”.
9. SUPERAÇÃO DAS OBJEÇÕES AO PARÂMETRO DA NATUREZA DA LACUNA DO DIREITO
Não se pode ignorar que também o parâmetro da lacuna sistêmica sujeita-se a objeções.
De partida, a adoção do critério leva a uma tautologia, em razão do uso da expressão "na ausência de normas" na redação do art. 15 do CPC/15. Se as aplicações supletiva e subsidiária têm por premissa a existência de lacunas, a referência ao vazio normativo é redundante. Bastaria ao legislador ter dito que o NCPC se aplica supletiva e subsidiariamente aos demais ramos processuais.
Como contraponto, afirma-se que a repetição teve o objetivo de reforçar o sentido colmatador das expressões, o que se mostra salutar em um texto polissêmico.
Mais denso é o argumento de que o parâmetro amplia sobremaneira a ingerência de normas exógenas no processo do trabalho, ensejando a desconfiguração do ramo especial.
A preocupação é relevante, mas não se sustenta diante do diálogo que o art. 15 do NCPC deve manter com os arts. 769 e 889 da CLT.
A mais importante barreira para a heterointegração do processo do trabalho continua sendo a compatibilidade entre norma absorvida e o sistema receptor. A importação somente pode alcançar normas civilistas que avigorem o caráter protetivo do processo laboral, aperfeiçoando e enriquecendo a tutela do direito material do trabalho.
O maior influxo de normas exógenas poderá, unicamente, ressaltar a peculiar eficácia do processo do trabalho na tutela de direitos sociais, robustecendo sua autonomia científica.
Adotado este ponto de vista, a crítica perde força.
A terceira objeção é quanto à ofensa ao princípio da separação dos poderes, pois, ao preencher lacunas secundárias, o juiz estaria invadindo espaço legislativo por extirpar do ordenamento jurídico normas ainda vigentes.
Também aqui a crítica não subsiste, pois a colmatação da lacuna é feita no caso concreto. A lacuna não é resolvida em absoluto, apenas superada no bojo de um processo, em observância a ditames constitucionais, dentre eles o princípio do devido processo legal em seu viés substancial.
Ademais, a atuação do magistrado na aplicação supletiva é alicerçada na proibição do non liquet. Constatada a ausência de previsão adequada para situação específica no sistema jurídico, não poderá o julgador aplicar norma ultrapassada ou injusta, sob pena de amparar um vazio sistêmico. Dizendo de outro modo: julgar deliberadamente com fundamento em norma falha, desprezando a existência de solução adequada obtida a partir da heterointegração, equivale a não julgar, o que é vedado pelo princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, XXXV da CRFB).
Em acréscimo, é de se notar que o comportamento do juiz tem autorização na própria lei. O legislador, por meio de normas como o art. 15 do NCPC e do art. 769 da CLT, legitima a atuação do magistrado na colmatação de lacunas secundárias. Há, portanto, uma harmonização entre as funções jurisdicional e legislativa.
Finalmente, o mais espinhoso problema é o da subjetividade envolvida no reconhecimento das lacunas ontológicas e axiológicas.
Argumenta-se que a análise do ancilosamento ou da iniquidade da lei envolve juízo de valor, instigando a arbitrariedade judicial (decisionismo) e promovendo insegurança jurídica.
É inegável que o espaço de decisão acaba ampliado no caso da aplicação supletiva. A lacuna puramente normativa é mais fácil de ser constatada, pois a norma costuma ser expressa[37]. Já as lacunas ontológicas e axiológicas exigem que se vislumbre aquilo que está além do texto legal, empreitada cujo resultado depende, em certo grau, da percepção pessoal do intérprete/aplicador do direito.
Apesar disso, a heterointegração alicerçada na teoria das lacunas não concede ao juiz ampla discricionariedade para manipular o ordenamento jurídico.
Mauro Schiavi lembra que, ao aplicar o Código de Processo Civil, o juiz do trabalho "não está criando regras, está apenas aplicando uma regra processual legislada mais efetiva que a Consolidação das Leis do Trabalho, e é sabido que a lei é do conhecimento geral (art. 3º, LICC)"[38].
Na trilha deste pertinente raciocínio, constata-se que a liberdade do juiz na atividade heterointegrativa é restringida, pois a fonte normativa supridora é delimitada pela própria lei. Além disso, a fonte subsidiária ou supletiva é de conhecimento geral, de modo que fica minimizada a insegurança jurídica causada por sua aplicação.
Não se pode olvidar, igualmente, que a atividade jurisdicional se submete invariavelmente aos preceitos constitucionais e princípios processuais, razão pela qual, em seu esforço para colmatar lacunas, o magistrado não poderá desrespeitá-los.
Reconhece-se, porém, que mesmo diante das balizas legais, constitucionais e principiológicas impostas ao juiz, a tarefa de colmatação de lacunas ontológicas e axiológicas propicia-lhe liberdade incomum no sistema românico-germânico (civil law). Este maior protagonismo do magistrado na heterointegração, contudo, é plenamente compatível com a visão contemporânea do Direito, fundada no paradigma do pós-positivismo.
Refere-se, aqui, ao denso e complexo tema da crise das fontes do Direito e da falibilidade do Direito positivo, cujo aprofundamento escapa às pretensões deste artigo.
Entretanto, em breves linhas, é possível constatar que as normas gerais e abstratas, típicas do civil law, não são capazes de definir com precisão todos os comportamentos futuros, razão pela qual é inevitável o ocasional desajuste da norma à regulação de situações imprevistas ou mal tratadas pelo legislador.
Diante de tal realidade, o ordenamento jurídico passou gradativamente a buscar formas eficazes de remediar sua falibilidade, depositando suas fichas na decisão judicial como solução viável, em aproximação ao commom law.
Nesse contexto de hibridização do sistema político-jurídico, há uma reconfiguração do papel do juiz, que se torna partícipe ativo da construção da norma.
É o que se constata, exempli gratia, na consagração das cláusulas gerais no ordenamento jurídico, cujo amplo campo semântico concede ao juiz delegação para complementar o sentido da norma e estabelecer seus efeitos no caso concreto. Neste método legislativo, o magistrado atua de forma criativa, porém não discricionária, já que seu poder é limitado por parâmetros trazidos pela lei.
A heterointegração do processo do trabalho a partir da teoria das lacunas, na forma prevista no art. 15 do NCPC, revela-se, igualmente, técnica que promove uma abertura do sistema, ao possibilitar atuação mais ativa do juiz diante da norma posta, sem, contudo, permitir discricionariedades.
Assim como a cláusula geral demanda do juiz um poder construtivo para locupletar seu sentido, exigência esta trazida e parametrizada pela própria lei, a aplicação supletiva do NCPC nas hipóteses de lacunas axiológicas e ontológicas exige semelhante comportamento proativo do juiz, também regulado pela legislação, agora no desígnio mais amplo de colmatar o sistema jurídico.
Portanto, a heterointegração de lacunas secundárias, se compreendida no bojo do panorama pós-positivista, mostra-se adequada ao novo papel criativo da atividade judicante, possibilitando a superação de falhas do ordenamento para, assim, viabilizar a concretização de direitos fundamentais.
Carlos Henrique Bezerra Leite analisa esta tendência no contexto do fenômeno da constitucionalização do processo, encampado pela Lei 13.105/15, que, no escopo de fomentar a adequação, tempestividade e efetividade do acesso individual e coletivo ao Poder Judiciário brasileiro, impõe ao juiz o dever de suprir a omissão legal que impede a proteção de um direito fundamental, com a consequente ampliação de seus poderes[39].
Em contrapartida, é cogente que a atividade construtiva do juiz seja exercida de forma responsável e sóbria, sob consequência de degenerar-se em arbitrariedade. Nesse desiderato, ao lado dos parâmetros legais, constitucionais e principiológicos, ganha importância o papel norteador da jurisprudência e seus instrumentos de uniformização e estabilização, consagrados em recentes alterações legislativas, como o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) previsto no art. 976 do CPC.
Assim, não apenas os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente (art. 926 do CPC/15), como os juízes devem se esforçar para reproduzir tal conformação nas instâncias inferiores, notadamente quando no exercício do poder criativo inserido na heterointegração do processo do trabalho.
Reduz-se, por este caminho, o espaço para a discricionariedade geradora de insegurança jurídica.