Quando o Judiciário pode anular questões de concursos públicos?

24/03/2017 às 11:43
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Aborda-se as possibilidades de anulação de questões de concursos públicos pelo Judiciário e o recente julgamento do STF sobre o tema na Reclamação 26300/RS.

Recentemente chamou atenção a decisão proferida pelo Ministro do STF Ricardo Lewandowski em Reclamação ajuizada na Suprema Corte (Rcl 26300/RS) pela União, no sentido de que o Judiciário vai além do controle de legalidade quando faz interpretação de questão de concurso público, sendo cabível tão somente uma análise de compatibilidade entre o conteúdo das questões e o previsto no edital do certame.

Cabe advertir que o presente artigo não tem por objetivo comentar a correção ou não da decisão proferida no caso concreto julgado no STF, até mesmo porque não dispomos dos autos e de todas as provas e alegações ali produzidas. O que importa aqui e que nos leva a elaboração deste artigo é o posicionamento manifestado pelo Ministro Lewandowski no sentido de que cabe aos julgadores, em casos como esse, “o mero juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital”.  

Dito isso, importante também esclarecer que é firme o entendimento dos tribunais pátrios no sentido de que é possível a intervenção do judiciário em concursos públicos quando a banca examinadora descumpre o edital do certame, seja elaborando questão com conteúdo não previsto no edital, seja também quando a banca deixa de cumprir o rito procedimental fixado no mesmo (nesse sentido: RE 632.853/CE, STF; AgRg nos EDcl no AREsp 244.839/PE e RMS 39.635/RJ, STJ).

Contudo, a interrogação que o julgado citado acima despertou no pensamento deste articulista é a seguinte: tendo como premissa uma questão de concurso com conteúdo compatível ao previsto no edital, quando é possível ao Judiciário anulá-la?

O posicionamento mais conservador adotado pelo Ministro Lewandowski diverge, por exemplo, do posicionamento que prevalece atualmente no Superior Tribunal de Justiça, admitindo a possibilidade de intervenção do Judiciário não só quando o conteúdo da questão não está previsto no edital, mas também quando a questão contiver flagrante ilegalidade, conforme os arestos que seguem:   

    

ADMINISTRATIVO. AGRAVOS REGIMENTAIS NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CONCURSO DA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL. EVIDENTE ERRO MATERIAL NA FORMULAÇÃO DA QUESTÃO IMPUGNADA. POSSIBILIDADE DE ANULAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO DE QUESTÃO OBJETIVA MACULADA COM VÍCIO DE ILEGALIDADE. PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR DE JUSTIÇA. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE DO PEDIDO DE NOMEAÇÃO E POSSE NO CARGO POR AUSÊNCIA DE PEDIDO NA PETIÇÃO INICIAL E DE ELEMENTOS SUFICIENTES A AFERIR A CLASSIFICAÇÃO DO AGRAVANTE NO CERTAME. AGRAVOS REGIMENTAIS DA UNIÃO E LUCIANO DE ALBUQUERQUE LEAL DESPROVIDOS.

1.  Firmou-se no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que, em regra, não compete ao Poder Judiciário apreciar critérios na formulação e correção das provas, tendo em vista que, em respeito ao princípio da separação de poderes consagrado na Constituição Federal, é da banca examinadora desses certames a responsabilidade pelo seu exame (EREsp. 338.055/DF, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, DJU 15.12.2003).

2.  Excepcionalmente, contudo, havendo flagrante ilegalidade de questão objetiva de prova de concurso público, bem como ausência de observância às regras previstas no edital, tem-se admitido sua anulação pelo Judiciário por ofensa ao princípio da legalidade e da vinculação ao edital.

3.  No caso em apreço, a questão 2 da Prova de Língua Portuguesa, Caderno 36, do Concurso da Polícia Rodoviária Federal, regulado pelo Edital 1/2009, está contaminada pelo vício de ilegalidade, que a macula de forma insofismável, tornando-se, assim, suscetível de invalidação na via judicial. É importante ressaltar que aqui não se cuida de controle de mérito, nem de substituição da valoração reservada ao administrador; cuida-se, isto sim, de controle de legalidade, sendo, pois, permitido ao Judiciário exercê-lo em toda a sua plenitude.

(...)

6.  Agravos Regimentais da UNIÃO E LUCIANO DE ALBUQUERQUE LEAL desprovidos.

(AgRg nos EDcl no AREsp 244.839/PE, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/11/2014, DJe 11/11/2014) (grifo nosso)

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CARGO DE FISCAL DE RENDA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. A ANÁLISE DA POSSIBILIDADE DE ANULAÇÃO PELO PODER JUDICIÁRIO DE QUESTÃO DE CONCURSO PÚBLICO SE RELACIONA COM O CONTROLE DE LEGALIDADE. QUESTÃO COM POSSIBILIDADE DE DUAS RESPOSTAS CORRETAS. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.

1.   Não compete ao Poder Judiciário apreciar critérios de formulação e correção das provas, em respeito ao princípio da separação de poderes, tendo ressalvado os casos de flagrante ilegalidade de questão objetiva de concurso público e ausência de observância às regras do edital, em que se admite a anulação de questões por aquele Poder, como forma de controle da legalidade.

2.   A análise pelo Poder Judiciário da adequação de questão objetiva em concurso público não se relaciona com o controle do mérito do ato administrativo mas com o controle da legalidade e a incapacidade ou a impossibilidade de se aceitar que, em uma prova objetiva, figurem duas questões que são, ao mesmo tempo corretas, ou que seriam, ao mesmo tempo, erradas.

3.   Recurso Ordinário provido para anular a Questão n. 90, atribuindo a pontuação que lhe corresponde, qualquer que seja, a todos os competidores, nesse certame, independentemente de virem a ser aprovados ou não e de virem a obter classificação melhor.

(RMS 39.635/RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, Rel. p/ Acórdão Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/06/2014, DJe 15/10/2014) (grifo nosso)

Parece-me claro que o raciocínio efetuado pelos Ministros do STJ nos julgados acima é no sentido de que, sendo o erro encontrado na questão tão evidente, flagrante, insofismável, este erro vicia a própria legalidade da questão.

Imperioso destacar que, não se trata aqui de interpretar a questão com o fito de avaliar qual alternativa é correta ou incorreta, divergindo ou concordando com o entendimento da banca examinadora, pois isto configuraria uma intervenção do Judiciário no mérito administrativo. Em verdade, cuida-se de verificar se a questão possui condições de ser lida e respondida adequadamente pelos candidatos, ou seja, se ela não contém, por exemplo, erros de digitação, de impressão ou de português que afetam a sua compreensão, ou se ela não contém mais de uma ou nenhuma alternativa correta, seja por equívoco ou por desconhecimento de quem a elaborou.    

São casos nos quais a banca examinadora, no uso da liberdade conferida pela discricionariedade para a prática do ato, extrapola os limites fixados em lei, sendo a questão anulada por razões de ilegalidade e não por razões de mérito.    

Ressalte-se que situações como essas acontecem com bastante frequência em concursos públicos e têm sido repelidas pelo Judiciário em muitos casos, como mostram os arestos que colacionamos abaixo, todos oriundos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

RECURSO INOMINADO. CONCURSO PÚBLICO PARA DELEGADO DE POLÍCIA. ACADEPOL. PROVA OBJETIVA. QUESTÃO INCORRETA. OCORRÊNCIA DE NULIDADE. O entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 632.853, submetido à sistemática da Repercussão Geral, é no sentido de que não compete ao Poder Judiciário substituir banca examinadora no controle de legalidade, para avaliar respostas, sendo permitido, excepcionalmente, o juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital do certame. Por essa razão, cabe ao Judiciário tão somente analisar a legalidade do certame, sendo vedado adentrar nos critérios de correção e interpretação dada às questões pela Banca Examinada, em razão da discricionariedade administrativa, exceto nos casos de erro grosseiro na elaboração das questões. Na hipótese em comento, porém, ficou evidenciado que a questão de nº 37, da Lingua Portuguesa, dada como correta, é nula, posto que não há nenhuma assertiva correta para tal questão, de forma que deve ser mantida a anulação, em observância do princípio da isonomia. Destarte, com o escopo de evitar desnecessária tautologia adoto como razões de decidir os argumentos da sentença, a qual mantenho por seus próprios e jurídicos fundamentos, consoante faculta o art. 46 da Lei nº 9.099/95. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. (Recurso Cível Nº 71006310981, Segunda Turma Recursal da Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator: Rosane Ramos de Oliveira Michels, Julgado em 07/03/2017) (grifo nosso)

RECURSO INOMINADO. CONCURSO PÚBLICO DA SUSEPE. CARGO DE AGENTE PENITENCIÁRIO. PROVA OBJETIVA. ANULAÇÃO DA QUESTÃO Nº 08. CABIMENTO. OCORRÊNCIA DE NULIDADE.

(...) Na hipótese em comento, foram consideradas duas respostas como corretas na questão nº 08, de modo que caberia à Banca Examinadora anular a referida questão e atribuir pontuação a todos os candidatos do certame, em observância ao princípio da isonomia. Sentença mantida por seus próprios fundamentos, nos termos do art. 46 da Lei nº 9.099/1995. RECURSO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Recurso Cível Nº 71006018295, Segunda Turma Recursal da Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator: Rosane Ramos de Oliveira Michels, Julgado em 13/12/2016)

APELAÇÕES CÍVEIS E REEXAME NECESSÁRIO. CONCURSO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MUNICÍPIO DE BENTO GONÇALVES. EDITAL Nº 001/2009. CARGO DE ECONOMISTA. ANULAÇÃO DA QUESTÃO DE Nº 23 SEM QUALQUER MOTIVAÇÃO. FAVORECIMENTO DO CANDIDATO NOMEADO EM PRIMEIRA COLOCAÇÃO. ANULAÇÃO DO CERTAME EM RELAÇÃO AO CARGO DE ECONOMISTA QUE SE IMPÕE. OBSERVÂNCIA AO INQUÉRITO CIVIL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. NÃO CONHECIMENTO DA APELAÇÃO DO CANDIDATO ROBERTO FACE AO RECONHECIMENTO DA DESERÇÃO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. NÃO CONHECERAM DA APELAÇÃO DE ROBERTO ANTÔNIO CAINELLI E NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO DA CÂMARA MUNICIPAL DE BENTO GONÇALVES. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70065076143, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Matilde Chabar Maia, Julgado em 28/04/2016)

APELAÇÃO CÍVEL. REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. MUNICÍPIO DE CARLOS BARBOSA. PROCURADOR. ALTERAÇÃO DO GABARITO INICIAL. AUSÊNCIA DE OPORTUNIDADE PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSO NA VIA ADMINISTRATIVA. IMPUGNAÇÃO DAS RESPOSTAS CONSIDERADAS CORRETAS. INOBSERVÂNCIA DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. ART. 5º, LV, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. ANULAÇÃO DAS QUESTÕES NºS 44 E 46 DA PROVA OBJETIVA. ERRO MATERIAL EVIDENCIADO.

I - Incontroversa a falta de oportunidade para a interposição de recurso na via administrativa, para fins de impugnação das respostas consideradas corretas, depois da alteração do gabarito inicial – edital nº13/2012 –, a evidenciar a mácula formal da inobservância do contraditório e da ampla defesa – art. 5º, LV, da Constituição da República.

II - Configurada de forma evidente a excepcionalidade apta a autorizar a intervenção no mérito administrativo, tendo em vista a impossibilidade de resposta correta das questões nºs 44 e 46 da prova objetiva, a revelar a ilegalidade do ato administrativo, e indução da eleição de alternativa com vício material.

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Precedentes no Recurso Extraordinário nº 632853 do STF, em sede de Repercussão Geral; no STJ, e neste TJRS.

Negado seguimento ao recurso.

No mais, sentença mantida em sede de reexame necessário.

(Apelação e Reexame Necessário Nº 70061258364, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo Delgado, Julgado em 18/04/2016) (grifo nosso)

APELAÇÕES CÍVEIS. REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CARGO DE PROCURADOR. MUNICÍPIO DE CARLOS BARBOSA. AFIRMADA NULIDADE DAS QUESTÕES Nº 15, 16, 44 E 46 DA PROVA OBJETIVA. DIREITO LÍQUIDO E CERTO VERIFICADO APENAS EM RELAÇÃO ÀS QUESTÕES 44 E 46. SEGURANÇA PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. (...) 3. Erro de impressão em questão de prova objetiva de concurso público, mormente quando o questionamento, de múltiplas assertivas, buscava reproduzir expressões constantes de texto legal, é capaz de causar perplexidade aos candidatos melhor preparados, que, percebendo o equívoco, não dispõem de qualquer chance de solver a dúvida sobre se proposital ou não a incorreção gráfica, já que a resposta exigia considerar verdadeira ou falsa a assertiva por inteiro. APELO DA PARTE IMPETRANTE PARCIALMENTE PROVIDO. APELO DO IMPETRADO DESPROVIDO, CONFIRMADA, QUANTO AO MAIS, A SENTENÇA EM REEXAME. (Apelação e Reexame Necessário Nº 70060107836, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo Uhlein, Julgado em 25/02/2015) (grifo nosso)

Nessas hipóteses, impõe-se a intervenção do Judiciário quando requerida. Entender de modo diverso e, especialmente, entender que cabe a esse Poder tão somente “o mero juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital”, é liberar a autoridade pública e a empresa responsáveis pela condução de um concurso público a fazerem praticamente o que bem entendem na elaboração das provas, sem se preocuparem com as responsabilidades cabíveis.

Note-se que tais práticas, alem de ferirem os princípios da legalidade, do concurso público, da vinculação ao edital, ferem também outros princípios constitucionais, como o princípio do devido processo legal, com o contraditório, a ampla defesa e os recursos inerentes, como o princípio da motivação dos atos do Poder Público, dentre outros que podem ser utilizados como fundamento apto a embasar eventual demanda judicial, dependendo de cada caso.     

Certo é que a legião de profissionais que hoje se dedica aos estudos visando ao tão sonhado cargo público, em diferentes áreas, não pode ser obrigada a simplesmente aceitar os desmandos praticados pelo Poder Público em concursos públicos. Não resta outra saída aos concurseiros senão a de recorrer ao Judiciário em resposta às ilegalidades praticadas nesses certames, não havendo como concordar, portanto, com o posicionamento manifestado pelo STF no sentido de que cabe a esse Poder apenas um juízo de compatibilidade entre o conteúdo das questões e o previsto no edital.

Portanto, como visto, mesmo quando verificada tal compatibilidade, é possível obter a anulação de questões de concurso pela via judicial diante da existência de flagrante ilegalidade, o que serve de alento e de esperança para todos que atualmente se dedicam aos estudos para concursos públicos.       

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Sobre o autor
Daniel Dalmás

Advogado, Pós-Graduado em Direito Público, e-mail: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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