RESUMO: Atualmente, a doutrina contempla a aplicação do princípio da anterioridade (também denominado como não-surpresa) para revogações das isenções tributárias. No entanto, esse entendimento não é ratificado pelo Supremo Tribunal Federal, que sempre emana decisões em sentido diverso, pois entende que a revogação de isenções não qualifica a criação ou majoração de tributo, mas sim a volta de uma situação que já existia e, portanto, já era conhecida entre o contribuinte e o Fisco. O presente artigo tem o objetivo de esclarecer a polêmica proveniente deste assunto e debater sobre a possibilidade da aplicação do princípio como forma de norma protetiva para o contribuinte.
PALAVRAS CHAVE: Revogação, Isenção, Tributário.
INTRODUÇÃO
O Estado tem como obrigação fomentar a ordem e a manutenção de sua estrutura, e também garantir ao contribuinte os serviços originalmente públicos. Para que isso aconteça, se faz necessário arrecadar receita, através da cobrança de tributos. Para que se mantenha o equilíbrio, é preciso definir limitações ao poder de tributar do Estado, coibindo assim a prática de abusos por este, no momento de cobrança dos tributos necessários.
A Carta Magna, em seus artigos 150 a 152, traz os princípios constitucionais tributários como forma de limitação ao poder de tributar. Dentre eles, destaca-se o princípio da anterioridade tributária, também conhecido como não surpresa ao contribuinte. O referido princípio possui duas vertentes: a anterioridade do exercício e a anterioridade nonagesimal. A primeira determina que os entes tributantes não podem cobrar tributos no mesmo exercício financeiro, ou seja, no mesmo ano em que tenha sido publicada a lei que institui ou aumenta o tributo. Entretanto, tal instituto apresentava uma peculiaridade, que por vezes trazia dúvidas quanto sua efetiva aplicabilidade, uma vez que um tributo que era criado nos últimos dias do ano, já poderia entrar em vigor no ano seguinte. Diante deste impasse, tornou-se essencial a criação da anterioridade nonagesimal, a segunda vertente, que proíbe a cobrança de tributos antes de decorridos 90 (noventa) dias da data que tenha sido publicada a lei instituidora ou que majorou a alíquota do tributo.
O significado de isenção refere-se a dispensa legal de pagamento de algum imposto. No caso concreto o fato gerador ocorre, porém, há expressa norma legal, autorizando a não-realização do pagamento, bem como da cobrança do tributo. Portanto, a isenção consiste sim no exercício da competência tributária, mas o ente opta, por algum tipo de motivo, pela dispensa do pagamento.
Assim, forma-se uma polêmica sobre o fato da revogação de uma isenção acarretar efeito surpresa para o contribuinte. A interpretação da maioria da doutrina moderna adota medida benéfica ao contribuinte ao entender que deve haver a aplicação do princípio constitucional da anterioridade nos casos em que ocorre a referida revogação, enquanto a doutrina tradicional e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sustentam que não se aplica esse princípio na revogação dessa espécie de isenção, o que implica na cobrança imediata do tributo.
Diante deste cenário, o presente artigo visa analisar os aspectos do princípio constitucional e a incidência, ou não, do mesmo em situação de revogação de uma isenção.
1. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ANTERIORIDADE
Está expresso no artigo 150, inciso III, alíneas “b” e “c” da Constituição Federal, in verbis:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...]
III - cobrar tributos: [...]
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; [3]
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; [4]
O princípio da anterioridade tributária disciplina que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios estão vedados a cobrar qualquer tributo no mesmo exercício financeiro ou antes de noventa dias da data de publicação da lei que os institui ou aumentou.
A Carta Magna enuncia expressamente os casos em que se pode afastar da anterioridade, a não observância deste princípio, cláusula pétrea[5] por excelência é completamente inconstitucional.
O objetivo da aplicação da anterioridade é evitar a surpresa do contribuinte, em pagar algo que não era de seu costume, modificando por muitas vezes seu planejamento financeiro, o que consequentemente fere outro princípio constitucional: A segurança jurídica. Não por acaso, este princípio é também denominado de princípio da não-surpresa.
Elucidando a matéria, é indispensável salientar que o princípio da anterioridade tributária tem natureza jurídica de direito fundamental, não podendo ser excluído por emenda constitucional ou lei. É o que cita o artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição da República e se ressalta no entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal.
2.REVOGAÇÃO DA ISENÇÃO
Em matéria de revogação da isenção há que se falar sobre isenções puras ou simples, já que estas são sujeitas a revogação. As isenções condicionadas ou a termo não podem ser revogadas enquanto não se estabelecer a implementação do tempo ou enquanto não for finalizada a condição imposta.
Diante da definição surge o impasse atual sobre a questão. Por uma linha de raciocínio, entende-se que a isenção é mera dispensa do pagamento, o que significa que incide a norma e nasce a obrigação de pagar o tributo, mas, em determinado momento, o contribuinte é dispensado do pagamento, apenas por benefício legal. Isto porque o contribuinte sabe da obrigação tributária que lhe foi imputada diante da norma de incidência. Logo, possui ciência que é, efetivamente devedor de um tributo.
Se, ao contrário, entendermos que a isenção é uma não-incidência, tal qual a imunidade, a revogação da isenção tem como resultado a criação de novo tributo, eis que amplia a hipótese de incidência. Neste caso, portanto, deve atender ao princípio da anterioridade.
Ademais, a revogação da isenção, também pode ser interpretada como aumento do tributo, já que repentinamente surge uma prestação pecuniária quando não havia nenhuma.
Porém o Supremo Tribunal Federal, embasado na doutrina de Rubens Gomes de Sousa e Amílcar de Araújo Falcão, ambos adotantes da posição de que na isenção haveria a ocorrência do fato gerador, surgimento da obrigação tributária, com a dispensa legal do pagamento, a revogação neste caso não incidiria a criação de tributo, razão pelo qual não haveria necessidade da aplicação do princípio da anterioridade. Esse entendimento acarretou no surgimento da Súmula 615 que enuncia que o princípio da anualidade não se aplica à revogação de isenção do ICMS.
Mesmo recebendo críticas, a Suprema Corte ratificou seu entendimento no julgamento do RE 204.062/ES, cujo acórdão transcreve-se a seguir:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISENÇÃO: REVOGAÇÃO. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE.
I. - Revogada a isenção, o tributo torna-se imediatamente exigível. Em caso assim, não há que se observar o princípio da anterioridade, dado que o tributo já é existente.
III. - Precedentes do Supremo Tribunal Federal.
III. - RE conhecido e provido.[6]
Entretanto, em 2 de setembro de 2014, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal julgou o RE 564.225/RS e se posicionou sobre o dever de observância do princípio da anterioridade, no caso do aumento indireto ICMS, tendo em vista a retirada do benefício fiscal.
IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – DECRETOS Nº 39.596 E Nº 39.697, DE 1999, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – REVOGAÇÃO DE BENEFÍCIO FISCAL – PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE – DEVER DE OBSERVÂNCIA – PRECEDENTES. Promovido aumento indireto do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS por meio da revogação de benefício fiscal, surge o dever de observância ao princípio da anterioridade, geral e nonagesimal, constante das alíneas “b” e “c” do inciso III do artigo 150, da Carta. Precedente[7]
O RE 564.225/RS trata a necessidade de observância ao princípio da anterioridade em relação aos Decretos do Estado do Rio Grande do Sul nº 39.596 e 39.967, que majoraram a base de cálculo do ICMS devido por prestadores de serviços de televisão por assinatura.
O Relator Ministro Marco Aurélio, em seu voto, declarou que o aumento indireto do imposto através da revogação do benefício fiscal deve verificar a aplicação do princípio da anterioridade e os Ministros Luiz Fux e Luís Roberto Barroso, seguindo o entendimento do Relator, pronunciaram seus votos ressaltando a importância de defender a previsibilidade entre agente ativo e agente passivo, impedindo que a cobrança do tributo cause sensação de surpresa para o contribuinte. Asseverou o Ministro Luís Roberto Barroso em seu voto[8]:
A ocasião é oportuna para revisitar a jurisprudência da Corte, que foi muito bem retratada pela divergência. A concepção de anterioridade que me parece mais adequada é aquela afeta ao conteúdo teleológico da garantia. O princípio busca assegurar a previsibilidade da relação fiscal ao não permitir que o contribuinte seja surpreendido com um aumento súbito do encargo, confirmando o direito inafastável ao planejamento de suas finanças. O prévio conhecimento da carga tributária tem como fundamento a segurança jurídica e como conteúdo a garantia da certeza do direito. Deve ser entendida como majoração do tributo toda alteração ocorrida nos critérios quantitativos do consequente da regra-matriz de incidência. Sob tal perspectiva, um aumento de alíquota ou uma redução de benefício relacionada a base econômica apontam para o mesmo resultado: agravamento do encargo. O que não é a diminuição da redução da base de cálculo senão seu próprio aumento com relação à situação anterior. A proteção ao contribuinte remonta à origem do próprio constitucionalismo, quando passou a constar da Carta ao Rei João Sem-Terra que o povo é quem determina a medida do seu esforço. As garantias contra o poder de tributar evoluem e hoje o povo tem o poder de decidir e o direito de se preparar. Pedindo vênia à divergência, acompanho o Eminente relator para negar provimento ao recurso.
Alguns doutrinadores possuem o entendimento de que a revogação de uma lei que concede isenção acarreta a criação ou aumento de tributo e este fato por si só deve bastar para aplicação do princípio constitucional da anterioridade. Segundo Hugo de Brito Machado[9]:
É induvidoso que a revogação de uma isenção implica aumento do tributo a que corresponde. Aumento que não deve surpreender o contribuinte, pela mesma razão que a própria criação do tributo também não deve constituir surpresa. Assim, é evidente que em face do princípio da anterioridade, estereotipado no art. 150, inciso III, alínea “b”, da vigente Constituição, a cobrança do tributo decorrente da revogação de isenção só é juridicamente possível a partir do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que for publicada a lei respectiva.
Portanto, fica claro que a utilização do princípio da proteção da confiança do contribuinte está intimamente interligada com o princípio de segurança jurídica, do qual, o doutrinador Luiz Guilherme Marinoni[10] faz uma pequena tradução sobre o conceito e sua importância:
“A segurança jurídica, vista como estabilidade e continuidade da ordem jurídica e previsibilidade das consequências jurídicas de determinada conduta, é indispensável para a conformação de um Estado que pretenda ser 'Estado de Direito ”
Fica claro assim que o princípio da anterioridade tributária é um instrumento protetivo ao cidadão, especialmente contra os excessos do Estado no seu exercício do poder de tributar.
CONCLUSÃO
Conforme analisado no presente artigo, o princípio da anterioridade forma-se da necessidade de não prejudicar o contribuinte com a cobrança de um tributo que ele não esperava, denominação esta que se define como princípio da não-surpresa que por sua vez, está interligado com o princípio da segurança jurídica. Ele se subdivide na anterioridade do exercício financeiro, que impede a cobrança dos tributos no mesmo exercício financeiro em que foi publicada a lei que os instituiu ou aumentou, e na anterioridade nonagesimal, que proíbe o recolhimento dos tributos antes de passados noventa dias da publicação da lei que os instituiu ou majorou.
A maioria dos doutrinadores defendem que a norma de isenção exclui a obrigação tributária e assim, consequentemente, suspende a incidência da cobrança, pelo que seria considerada de forma analógica uma norma de não-incidência do pagamento.
Quanto ao entendimento da jurisprudência até hoje sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, no qual a revogação da isenção não se submete ao princípio da anterioridade, já se chegou a conclusão de que é uma interpretação obsoleta e paradoxal diante do entendimento trazido pelos princípios constitucionais.
No entanto, perante a jurisprudência trazida pelo RE 564.225/RS, a atual formação da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal abriu precedentes para uma nova fase ao decidir que a aplicação de norma estadual que revogou benefício fiscal de ICMS, majorando a base de cálculo do tributo, deve ser submetida ao princípio da anterioridade.
Por todo o exposto, visto principalmente a importância da segurança jurídica, conclui-se que a revogação das isenções deve, de fato, observar a aplicação do princípio da anterioridade