SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO – 2. TERMINOLOGIA – 3. PLANEJAMENTO FISCAL – 4. CRÍTICA DA DOUTRINA – 5. DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS – 6. DOS PRINCÍPIOS EM JOGO – 7. LEGALIDADE, CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, IGUALDADE – 8. DA DISSIMULAÇÃO – 9. TIPICIDADE TRIBUTÁRIA, UMA NOVA CONCEPÇÃO. – 10. NORMA ANTIELISÃO E ANALOGIA – 11. CONCLUSÃO
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo analisar a validade do parágrafo único do artigo 116 do CTN, introduzido pela Lei Complementar n° 104/2001.
A nosso ver o dispositivo em questão é compatível com o sistema jurídico-constitucional brasileiro, bem como com as normas e princípios vazados na Lei Maior.
Tal conclusão é fruto de interpretação da norma orientada por um critério que busca o equilíbrio de valores como a liberdade, a segurança jurídica e a justiça. A postura interpretativa aqui defendida está, inclusive, em sintonia com a jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal, quando se vale da técnica da interpretação conforme a Constituição.
Os tempos atuais demandam uma nova visão do Direito Tributário, dissociada do positivismo formalista que vem predominando na doutrina pátria. Os princípios da legalidade e da tipicidade não devem ser encarados como dogmas, mas como garantias do contribuinte, que podem ceder em determinadas circunstâncias, desde que presentes critérios de razoabilidade, necessidade, utilidade.
Sem que se abandone o primado da legalidade a ponderação de princípios poderá ocorrer, sendo que a sua caracterização de forma absoluta deve ser relativizada, notadamente em face da capacidade contributiva.
2. TERMINOLOGIA
Adotamos a conceituação mais comum na doutrina, que confere ao termo evasão o significado de condutas ilícitas do contribuinte no sentido de eliminar, reduzir ou retardar o pagamento de tributo.
O termo elisão fiscal exprime aquelas condutas lícitas praticadas pelo contribuinte visando evitar, minimizar ou adiar a ocorrência do fato gerador.
Diz-se, ainda, que o momento de tais condutas é determinante da licitude ou ilicitude dos procedimentos. Na evasão o contribuinte age no instante ou após a ocorrência do fato gerador, enquanto que na elisão a ação do contribuinte é prévia à ocorrência do fato gerador.
Segundo aqueles que defendem essa noção cronológica, os limites entre elisão e evasão afiguram-se na anterioridade da ação ou omissão do sujeito passivo em relação ao fato gerador e na conformidade de sua conduta com o ordenamento jurídico.
3. PLANEJAMENTO FISCAL
Ao conceito de elisão fiscal liga-se o de planejamento tributário. Este seria a atuação preventiva dos contribuintes, de forma lícita, objetivando evitar ou minimizar a carga tributária.
Em defesa do planejamento fiscal alega-se que o contribuinte tem direito de adotar condutas que tornem menos onerosos, do ponto de vista fiscal, os negócios jurídicos que realiza, desde que atue de forma lícita.
Diversos argumentos também existem para aqueles que advogam a necessidade de uma norma geral antielisão, dentre os quais a diminuição do déficit fiscal, a correção de desigualdades entre contribuintes em situação semelhante, o dever de que todos contribuam de acordo com a sua capacidade econômica para o custeio da máquina estatal, etc.
A Lei Complementar n° 104/2001 procurou dar instrumentos à Administração Tributária de combater não o planejamento tributário em si, mas a elisão fiscal.
Segundo o parágrafo único, do artigo 116, do CTN, a elisão fiscal não deixa de ser uma prática lícita. Apenas permite-se ao Fisco a desconsideração de atos ou negócios jurídicos com finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
Assim, a interferência estatal não vai ao ponto de vedar as práticas lícitas do contribuinte, dentro da sua liberdade de iniciativa, que objetivem a redução ou a eliminação de tributos, mas possibilita a desconsideração destas práticas ou de seus efeitos, para fins fiscais.
Não obstante, conforme ensina Marco Aurélio Greco [1], o direito de o contribuinte valer-se de meios juridicamente lícitos postos a sua disposição, para organizar sua situação tributária frente ao fisco de acordo com a sua capacidade contributiva não é absoluto e incontrastável em seu exercício, pois a experiência pós-moderna de convívio em sociedade é fundamentada primordialmente pelo princípio da solidariedade social e não pelo individualismo exacerbado.
4. CRÍTICA DA DOUTRINA
O parágrafo único introduzido no artigo 116 do Código Tributário Nacional pela Lei Complementar n° 104, de 10 de janeiro de 2001, tem a seguinte redação:
"Art. 116...
Parágrafo único. A autoridade administrativa poder desconsiderar atos ou negócios jurídicos com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária."
O citado dispositivo vem sendo muito criticado pela doutrina positivista formalista. Os adeptos desta linha doutrinária consideram o preceito ofensivo ao princípio da legalidade e à tipicidade fechada, esta a materialização daquele na esfera tributária.
Assim, sendo vedadas pela Constituição a instituição e a majoração de tributos sem lei anterior, não haveria espaço, em nosso ordenamento, para a chamada norma antielisiva genérica.
E mais, a possibilidade de desconsideração dos atos e negócios de que trata o parágrafo único do art. 116 do CTN, ao amesquinhar o princípio da legalidade, implicaria em sacrifício da segurança jurídica, valor fundamental a ser preservado pelo Direito.
Outros autores propugnam pela absoluta inutilidade da norma inserta no parágrafo único do art. 116 do CTN, visto que o conceito de dissimulação traduziria uma conduta ilícita, idêntica à noção de simulação prevista no Direito Civil, cujos efeitos tributários já constavam do artigo 149 do CTN.
5. DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Sem dúvida, a introdução da norma geral antielisão no Brasil, não poderia ocorrer sem abalo da arraigada tradição doutrinária que eleva a legalidade e a tipicidade fechada a um patamar acima de quaisquer outros princípios constitucionais.
Diversos são os valores que fundamentam a ordem jurídica. A segurança jurídica é um desses valores. Mas também podem ser apontados a justiça, a igualdade, a liberdade, a solidariedade.
Costuma-se dizer que os princípios encontram-se em posição intermediária entre as regras e os valores.
As normas jurídicas podem ser divididas em princípios e regras. Os primeiros, segundo a lição de J.J. Canotilho [2], são normas jurídicas impositivas de uma optimização que, em si mesmos, são insuscetíveis de aplicação, enquanto as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência.
Os princípios, por possuírem grau de abstração elevado, são ponderáveis, admitindo o balanceamento de valores e interesses. Já as regras, sendo normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem), em sendo antinômicas, excluem-se, não podendo coexistir simultaneamente de forma contraditória.
A Constituição é uma unidade. O seu conjunto forma um sistema. Portanto, não pode conter antinomias. O que, muitas das vezes, conduzirá a que, diante do aparente conflito entre princípios, uma causa constitucional justa, um valor, venha a prevalecer.
Na lição de Alexy [3], a solução da colisão demandará o estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios. Isto é, em face do caso e de suas circunstâncias, são fixadas condições sob as quais um princípio precede ao outro. Diante de outras condições, a questão da precedência poderá ter solução diversa.
6. DOS PRINCÍPIOS EM JOGO
A discussão sobre a validade da norma antielisiva genérica ou de sua compatibilidade com o ordenamento jurídico constitucional não pode prescindir da análise de alguns princípios, expressos ou implícitos no texto da Constituição.
A capacidade contributiva, a isonomia, a legalidade e a livre iniciativa, de plano mostram sua relevância, mas também é preciso ter em mente que outros princípios podem trazer reflexos sobre a apreciação a ser feita, como a razoabilidade, a supremacia do interesse público sobre o particular, dentre outros.
Mas não há dúvida de que o embate central é entre os princípios da legalidade e da capacidade contributiva; o primeiro liga-se ao valor segurança jurídica e o segundo inspira-se no valor justiça.
A nosso ver, a posição de alguns doutrinadores, que afastam qualquer possibilidade de existência válida de uma norma geral antielisão em nosso sistema normativo, é equivocada, já que esta espécie de norma tem fundamento em um valor tão importante quanto a legalidade e também amparado por nossa Constituição.
Outras questões são a validade da norma antielisão ora em vigor (parágrafo único do artigo 116 do CTN), a sua aplicação no caso concreto, bem como a limitação de eventuais excessos cometidos pelo Fisco. O que não pode ocorrer é a negação a priori de qualquer espécie de norma geral antielisão, sob o pretexto de que o texto constitucional não comporta essa espécie normativa.
7. LEGALIDADE, CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, IGUALDADE.
A Legalidade Tributária, segundo lição de Luciano Amaro [4], não se conforma com a mera autorização de lei para a cobrança de tributos; requer-se que a própria lei defina todos os aspectos pertinentes ao fato gerador, necessários à quantificação do tributo devido em cada situação concreta que venha a espelhar a situação hipotética descrita na lei.
A capacidade contributiva é prevista no parágrafo primeiro do art. 145 da CF/88. Expressa a idéia de que cada um deve contribuir para o custeio das despesas do Estado de acordo com as suas possibilidades. É, pois, decorrência ou corolário de valores como a igualdade e a justiça. Possui um aspecto objetivo, que impõe a tributação apenas de fatos que denotem um conteúdo econômico, e um aspecto subjetivo, relativo ao poder de contribuir individual do sujeito passivo.
Eis o conflito que se coloca: o princípio da legalidade tributária admite, em face da existência de princípios outros, como os da igualdade e da capacidade contributiva, a ponderação de modo a conferir validade a uma norma geral antielisiva?
Entendemos que sim, mas não de maneira absoluta. A norma geral antielisão encontra um campo fértil no nosso sistema normativo e não deve ser descartada, sob a alegação de que representa amesquinhamento da segurança jurídica.
Misabeu Derzi, em nota à obra de Aliomar Baleeiro [5], ensina que a capacidade contributiva é a espinha dorsal da justiça tributária. É o critério de comparação que inspira, em substância, o princípio da igualdade.
A capacidade contributiva é voltada em primeiro lugar ao legislador determinando que este escolha como fatos geradores de tributos fatos ou situações que denotem algum potencial econômico.
Mas, sendo afim da igualdade, ela induz a que a lei tributária busque alcançar todas as capacidades econômicas individuais e em suas devidas medidas. Isto é, deve a legislação fiscal tender a tributar a todos aqueles que tenham capacidade econômica semelhante. Os valores justiça e igualdade, bem como o conteúdo do art. 3º, I, da Constituição Federal de 1988, que estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, justificam a existência de um instrumento de justiça fiscal que é a norma geral antielisão.
Mas não podemos nos esquecer que um dispositivo legal é o que os interpretes do direito, notadamente o Judiciário, disserem que é, e que, ademais, a norma antielisão, em sua aplicação demandará a técnica de ponderação de interesses no caso concreto a fim de impedir qualquer lesão ou ameaça a direito.
8. DA DISSIMULAÇÃO.
A norma antielisiva genérica deve ser entendida como um instrumento posto à disposição do Fisco para ser utilizado em condições definidas em lei e de acordo com os procedimentos legalmente previstos. Não representa, portanto, um fator de insegurança jurídica.
A Lei Complementar n° 104/2001 apenas permite a desconsideração de atos ou negócios jurídicos com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
Não andou bem o legislador, pois não explicitou o que deve se entender por dissimulação, deixando a tarefa aos intérpretes do direito.
Mas não podemos concordar com aqueles que consideram que a norma do parágrafo único do artigo 116 do CTN nada acrescentou em nosso ordenamento jurídico, entendendo que a dissimulação ali referida nada mais é do que a simulação do artigo 149, VII, do CTN.
Essa linha interpretativa implicaria olvidar a lição de Carlos Maximiliano: "Deve o Direito ser interpretado inteligentemente, não de modo a que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis". [6]
Ora, não se mostra inteligente uma interpretação que atribua a um novo dispositivo de um código, a mesma finalidade ou o mesmo sentido de um outro já existente e não revogado pela lei nova.
Neste ponto, estamos de acordo com Ricardo Lodi Ribeiro [7] quando afirma que o conceito de dissimulação adotado pela LC n° 104/2001 a partir do aproveitamento da cláusula francesa é bem mais amplo do que o de simulação contido no Código Civil, que se traduz em fazer parecer real o que não é, não estando, portanto, no campo da elisão, mas da evasão. Deste modo, a dissimulação engloba também condutas como encobrir, ocultar, disfarçar, atenuar os efeitos de algum fato, ações que envolvem o abuso de direito, a fraude a lei e o negócio indireto.
Ainda segundo o referido autor, a dissimulação é um conceito que abriga não os atos ilícitos, como o dolo, a fraude e a simulação, mas todas as condutas que, embora sejam formalmente lícitas, revelem o exercício abusivo do ato, revelado pelo descompasso entre a sua motivação econômica e os efeitos por ele produzidos, com o intuito único ou preponderante de obter uma economia de imposto, em violação à isonomia e à capacidade contributiva.
Esta noção está relacionada à de abuso de direito que, no campo do direito tributário, diz respeito a condutas do agente, formalmente permitidas, mas realizadas com uma finalidade diversa daquela que a norma jurídica visava tutelar. O contribuinte se vale de um negócio, formalmente lícito, mas cuja intenção é diversa deste, voltando-se em realidade para a economia de tributo.
A legalidade, em realidade, não é ofendida. O tributo como ente legal já existe, mas pela utilização da dissimulação, em princípio, o fato não estaria abarcado na norma de incidência.
A norma antielisiva funciona como um ajuste que tornará possível ao Fisco, atendidas as condições legais e cumprido o procedimento legal, a desconsideração, no caso concreto e para fins fiscais, do ato ou negócio.
Assim, embora a descrição da norma não preveja, em tese, o fato como tributável, permite-se, desde que verificada a dissimulação, um segundo momento de verificação, onde a conduta poderá ser desconsiderada.
Não se trata de interpretação econômica porque não se abre mão da legalidade, apenas se lhe confere certa e limitada elasticidade, em atenção à capacidade contributiva do sujeito passivo, à isonomia, à razoabilidade (compreendida como a noção de que a legalidade deve ser razoável), dentre outros princípios, desde que presente um fator permissivo que é aquele previsto na cláusula antielisiva.
Porém, essa desconsideração não é, e nem pode tornar-se arbitrária, já que pressupõe sempre a dissimulação a que se refere o parágrafo único do artigo 116 do CTN, a qual está ligada a idéia de abuso de direito.
A desconsideração estará submetida, outrossim, ao procedimento previsto em lei ordinária, e quaisquer excessos porventura cometidos pelo Fisco deverão ser contidos pelo Poder Judiciário.