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Tombamento e função socioambiental da propriedade

Um estudo jurídico a partir da Operação Patrimônio

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19/04/2017 às 15:50
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3 ATORES E POLÍTICAS DE ACAUTELAMENTO DOS BENS TOMBADOS: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE CRÍTICA

O meio ambiente é bem de interesse público, possuindo bens com um regime jurídico especial, essenciais à sadia qualidade de vida e vinculados, portanto, ao interesse coletivo (SILVA, 2002, p. 10)

Com a promulgação da Carta Magna de 1988, o meio ambiente ecologicamente equilibrado foi consagrado como direito fundamental de todos, merecendo destaque especial os artigos 215, 216 e 225, que impõem ao poder público e à coletividade o dever de preservar e proteger o meio ambiente, englobando o patrimônio cultural.

O §1º do artigo 216 da Constituição Federal determina que o poder público, com a colaboração da comunidade, deve proteger o patrimônio cultural brasileiro. No mesmo sentido, o artigo 225 impõe ao Estado e também à coletividade o dever de proteger e preservar o meio ambiente para que este seja considerado ecologicamente equilibrado.

Em virtude disso, urge aclarar que o poder público e os proprietários não podem agir isoladamente para conservar e proteger os bens inseridos no meio ambiente. Para tanto, diversos instrumentos foram criados para a tutela em face de lesões ao ambiente, de modo que haja uma adequação das ações do Estado às exigências e necessidades da população, como é o caso das associações civis de defesa do meio ambiente, de moradores de bairros, sindicatos, dentre outros que limitam o poder do Estado em prol da coletividade (MILARÉ, 2007, p. 184).

Em consonância ao artigo 225 da Constituição, observa-se o princípio da participação comunitária, referente à integração entre a comunidade no que se refere aos processos de definição, implantação e execução de políticas públicas relacionadas à proteção ambiental, o que fortalece a democracia participativa. Essa democracia significa a interação dos indivíduos de uma sociedade no processo de formação e desenvolvimento das atividades estatais, legitimando-as (COSTA NETO, 2003, p. 39-47).

Sobre a participação popular na proteção do meio ambiente, Mirra aponta os meios pelos quais o grupo social pode atuar:

A participação na seara do meio ambiente pode se dar das seguintes formas: a) participação nos processos de criação do direito do meio ambiente; b) participação na formulação e execução de políticas ambientais; c) atuando por intermédio do Judiciário (MIRRA, 1989, apud MILARÉ, 2007, p. 185).

No tocante à participação nos processos de criação, é possível constatar a importância da iniciativa popular na apresentação de projetos de leis por determinado número de cidadãos, bem como a realização de referendo sobre uma lei.

Através disso, as entidades ambientalistas e a comunidade científica passam a contribuir para a solução de questões ambientais e na evolução do direito ambiental. Ademais, pode a comunidade participar de órgãos colegiados dotados de poderes normativos atuando efetivamente na criação da tutela do meio ambiente, como por exemplo, o Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA. Destaca-se que a sociedade pode participar das ações e iniciativas de preservação do patrimônio cultural, através da aplicação dos instrumentos legais de proteção; da elaboração e execução dos serviços de manutenção e conservação, obras ou construções, dentre outras formas.

Outro meio pelo qual pode atuar a coletividade é na formulação e execução de políticas ambientais, malgrado Mirra considere ser essa a atuação mais deficiente, levando-se em conta que não há um canal que ligue a comunidade aos órgãos da Administração Pública ou pela falta de composição nos órgãos colegiados que atuam na elaboração e execução dessas políticas (MIRRA, 1989, apud MILARÉ, 2007, p. 186).

Por fim, a participação pode ocorrer através da defesa judicial do meio ambiente. Sob esse aspecto, a Constituição Federal elencou mecanismos capazes de assegurar à cidadania essa defesa, quais sejam, a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo (artigos 102, I, a, 103 e 125, § 2º); ação civil pública (artigo 129, III c/c § 1º); ação popular constitucional (artigo 5º, LXXIII); mandado de segurança coletivo (artigo 5º, LXX) e mandado de injunção (artigo 5º, LXXI).

Destarte, é possível aventar a natureza jurídica de bem ambiental com caráter difuso, posto que o patrimônio cultural é direito pertencente a todos os indivíduos de uma determinada geração, mas que também deve ser estendido às gerações vindouras, sendo imprescindível o papel da coletividade para que os bens culturais sejam tutelados. Vale destacar que o dever da coletividade é também um direito, uma vez que para cumprir o dever que lhe é imposto, deve exigir do poder público e dos proprietários dos bens a preservação dos mesmos.

Assim sendo, toda a população ludovicense tem o dever e o direito de zelar pelo patrimônio histórico, levando-se em consideração que este é composto por bens de uso comum, exigindo dos órgãos públicos uma atuação em prol da tutela cultural. Porém, percebe-se que na prática essa atuação não é proativa, sendo necessária, em grande parte dos casos, a atuação do poder público, conforme se verá adiante.

Ressalte-se que a sociedade brasileira está cada vez mais atenta às questões ambientais, participando e exigindo adoção de medidas por parte do Poder Público, por meio de representação político-partidária, das audiências públicas, da mobilização popular, do ordenamento jurídico, dentre outros meios (MILARÉ, 2007, p. 186-187).

Ocorre que, apesar da existência dos instrumentos que viabilizam a participação popular, esta não é efetiva, devendo haver uma colaboração comunidade-proprietários-poder público na tentativa de solver os conflitos socioambientais de determinado lugar.

3.1 A tríplice atuação na tutela do patrimônio cultural

O artigo 215 da Constituição de 1988 estabelece que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoiando e incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais. Para tanto, deve haver uma atuação conjunta entre União, Estados e Municípios no que pertine à proteção e conservação do centro histórico de São Luís.

Nesse pesar, percebe-se uma tríplice atuação para a tutela do patrimônio cultural envolvendo a comunidade, os proprietários de imóveis e o poder público na tentativa de dirimir as questões sociais e ambientais decorrentes da degradação do centro histórico da cidade.

3.1.1 O trabalho do poder público na conservação do patrimônio cultural

A Constituição Federal de 1988 elencou deveres negativos e positivos em seu corpo normativo, dividindo-os em quatro categorias (BENJAMIN, 2007, p. 114-116).

Inicialmente, ao analisar o caput do artigo 225, observa-se a imposição ao poder público e à coletividade de um dever de defesa e preservação do meio ambiente, sendo esta uma obrigação explícita, genérica, substantiva e positiva de defesa e preservação desse meio. Adiante, há uma obrigação genérica, substantiva e negativa, explícita, de não degradar o meio ambiente, também contida no caput do artigo 225.

Diante disso, há um conjunto de deveres explícitos e especiais do poder público, sendo ele degradador ou não, dispostos tanto no caput quanto no §1º deste mesmo artigo. Nesse patamar, espera-se que o Legislativo aprove leis e aperfeiçoe as existentes, ao passo que do Judiciário aguarda-se uma aplicação da lei e interpretação, conforme a melhor solução para a proteção do meio ambiente.

Os parágrafos 2º e 3º do supracitado artigo estabelecem deveres explícitos e especiais, exigíveis de particulares ou do próprio Estado, em que este passa a ser visto como degradador ao praticar condutas lesivas ao meio ambiente.

Na proteção dos bens existentes no Centro Histórico de São Luís atuam os seguintes órgãos: Fundação Municipal do Patrimônio Histórico – FUMPH, no âmbito municipal; o Departamento do Patrimônio Histórico, Artístico e Paisagístico do Maranhão – DPHAP-MA, no âmbito Estadual, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, no âmbito Federal.

A FUMPH é uma instituição vinculada a Secretaria Municipal de Planejamento e Desenvolvimento – SEPLAN, sendo que sua finalidade é executar a política de tutela e proteção do patrimônio cultural no município de São Luís, através do desenvolvimento de restaurações, manutenções e revitalizações no centro histórico da cidade. A DPHAP é o Departamento da Superintendência do Patrimônio Cultural da Secretaria do Estado do Maranhão, funcionando desde 1973 em São Luís, tendo como atribuições a proteção, preservação e revitalização do patrimônio histórico, artístico e arqueológico protegidos pelo tombamento estadual.

A melhor maneira de obter uma efetiva proteção do Conjunto Arquitetônico de São Luís é com a atuação harmônica e integrada entre as esferas do poder público, por intermédio de uma gestão participativa nos níveis federal, estadual e municipal, decorrente da competência material comum estabelecida pelo artigo 23 da Constituição Federal (MILARÉ, 2007, p. 185).

Ocorre que, na prática, cada órgão atua separadamente, conforme sua competência. Assim, o IPHAN é responsável pela área tombada pelo Governo Federal e intitulada pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade, o DPHAP fiscaliza e conserva a parte tombada pelo Governo Estadual. Já o Município regula as questões de interesse local, bem como o que lhe competir subsidiariamente.

Conforme aduz Leme Machado (2009, p. 282), mister destacar que a relação entre proprietário e o órgão público do patrimônio cultural tem como finalidade harmonizar o interesse público e o privado, firmando êxito na política do bem comum cultural. Vislumbrando essa harmonização entre proprietários e órgãos públicos, analisar-se-á, especificamente, a atuação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, entidade vinculada ao Ministério da Cultura, responsável pela preservação e proteção dos bens protegidos pelo Governo Federal e reconhecidos como patrimônio mundial pela UNESCO.

3.1.1.1 A atuação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN

O instituto do tombamento foi instituído no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto-lei nº 25/37, que criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, atual Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.

No âmbito federal, a missão de tombar os bens imóveis é confiada ao IPHAN, órgão cuja finalidade institucional é proteger, fiscalizar, promover, estudar e pesquisar o patrimônio cultural brasileiro, nos termos do artigo 216 da Carta Magna, conforme o artigo 2º do Decreto nº 6.843, de 7 de maio de 2009, referente à estrutura do mencionado órgão.

Segundo dados do próprio IPHAN, a 2ª Diretoria Regional foi criada e instalada na cidade de São Luís no ano de 1980, por determinação de Aloísio Magalhães, presidente da Fundação Nacional Pró-Memória, instituição vinculada ao IPHAN. A Jurisdição do órgão abrangia o Maranhão, o Piauí e Ceará, tutelando e fiscalizando o patrimônio cultural desses Estados6.

Sua sede foi instalada em 1988 no Sobrado da Baronesa de Anajatuba, localizado no centro histórico de São Luís, que até hoje acomoda o trabalho da Superintendência. Em 1990, transformou-se na 3ª Coordenação Regional do Instituto Brasileiro, atual Superintendência Regional do Maranhão, IPHAN – MA, mas foi apenas no ano de 2002 que sua jurisdição limitou-se ao Estado do Maranhão.

Conforme Laura Rita Mendes Miranda, Procuradora Federal do IPHAN, esse órgão preocupa-se puramente com a preservação dos bens tombados, observando o cumprimento da função social da propriedade. Porém, caso ocorra, por exemplo, a desapropriação de um bem tombado visando o cumprimento da função social, é papel de outros órgãos estatais, como o Ministério Público, a fiscalização e verificação do cumprimento da função socioambiental da propriedade7.

Atualmente, o Governo Estadual tem cerca de 5.500 (cinco mil e quinhentos) imóveis tombados e o Governo Federal tem aproximadamente 1.000 (mil) através do IPHAN, que só possui competência de preservação dos bens, uma vez que se não houver preservação, não há como garantir uma função social destes bens. Pode-se dizer, portanto, que este órgão tem um “poder de polícia administrativo” no trato de preservação dos bens.

Considerando que o IPHAN atua juntamente com o DPHAP/MA e o FUMPH no que concerne à preservação do patrimônio cultural do Maranhão, cumpre salientar que, na prática, as Autarquias e os Órgãos Públicos têm função individualista, de modo que uma atuação com maior relacionamento por parte destes seria imprescindível para o cumprimento da função social dos bens tombados.

Observa-se que mesmo com a importância do patrimônio cultural, a efetivação da proteção dos bens tombados enfrenta uma série de problemas intrínsecos a cada órgão supracitado. Destaca-se a questão estrutural dos mesmos, cujas condições são precárias para a proteção do meio ambiente, levando-se em conta o reduzido quadro de funcionários, a fiscalização insuficiente, a falta de consciência da sociedade e o descaso dos proprietários com seus imóveis.

A partir das pesquisas realizadas no IPHAN, é possível afirmar que um dos principais fatores de destruição das edificações é o descaso dos proprietários para com seus casarões, visto que muitas vezes os abandonam ou os depredam, alegando o desconhecimento das obrigações e proibições impostas pelo poder público no que tange aos bens tombados.

3.1.2 Obrigações e proibições inerentes aos proprietários de imóveis tombados

Conforme Cristiane Derani, possuindo a propriedade uma função social, acarretará em um ônus ao proprietário privado perante a sociedade. Assim, sua atuação deve garantir um resultado vantajoso para a coletividade (DERANI, 2002, p. 59)

O Decreto-lei nº 25/37 elenca os deveres e direitos dos proprietários privados no que concerne à gestão dos imóveis tombados. Inicialmente, os proprietários têm o dever de comunicar que o bem tombado necessita de reparos, conforme o artigo 19 do Decreto. Ocorrerá quando o proprietário não dispuser de recursos para conservar ou reparar o bem, devendo comunicar o IPHAN ou órgãos públicos competentes, sejam os estaduais ou os municipais. Caso não haja essa comunicação, o indivíduo fica sujeito a multa equivalente ao dobro do valor em que for avaliado o dano da coisa tombada.

Percebe-se que na maioria dos casos os proprietários recorrem ao poder público, pois não possuem condições de arcar com os gastos. Registre-se ainda a dificuldade no pagamento dessa multa, uma vez que, não possuindo condições para pagar os reparos, consequentemente não poderão pagar esse valor em dobro referente à multa.

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Outro dever refere-se a não destruição, demolição, deterioração, mutilação ou inutilização da coisa tombada, de acordo com o artigo 17 do Decreto c/c o 165 do Código Penal. Destruir significa eliminar, estragar; demolir é arruinar; fazer desaparecer. Ambos retiram a função do bem, por isso Leme Machado entende que são termos semelhantes (LEME MACHADO, 2009, p. 977).

Existe o dever de solicitar ao poder público uma autorização para reparar, pintar ou restaurar o bem. É preciso que o proprietário peça autorização ao IPHAN ou aos órgãos competentes. Caso solicite autorização, mas inicie a obra sem recebê-la, o órgão público deverá determinar a demolição dessa reforma. Outro dever é o de solicitar autorização para a colocação de cartazes, tendo em vista que isso dificulta a visibilidade do imóvel. Assim, o artigo 18 do Decreto estabelece que o proprietário deve solicitar essa autorização, e se não o fizer, deverá haver a retirada do objeto, bem como o pagamento de multa de 50% do valor do mesmo objeto.

Ademais, o proprietário tem o dever de comunicar ao poder público a intenção de vender a coisa tombada. Há aqui um direito de preferência, pois o proprietário do bem deverá oferecê-lo previamente à União, ao Estado e ao Município, respectivamente, devendo este direito ser exercido em um prazo de 30 dias. Nesse caso, o proprietário deve provar que notificou o poder público, e não notificando-o regularmente, a alienação será nula, de acordo com o artigo 22, parágrafo 2º do Decreto.

O artigo 14 do mesmo Decreto estabelece o dever de solicitar autorização para a saída da coisa tombada do país. O proprietário deve solicitar autorização ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural. Caso não obtenha essa autorização e tente enviar o bem tombado para o exterior, comete infração administrativa e crime de contrabando, conforme o artigo 15. Vale mencionar que o objeto do trabalho limita-se a bens imóveis, razão pela qual o dever do artigo 14 não é de interesse a essa pesquisa.

A respeito dos direitos, imprescindível afirmar que, com o tombamento, o proprietário não perde o domínio e a posse do bem tombado, tendo o direito de usar, gozar e dispor da coisa, segundo o artigo 1.228 do Código Civil. Porém, o direito de propriedade deve observar as finalidades econômicas e sociais, preservando o patrimônio histórico e artístico, como também implicando em limitações pela aplicação do princípio da função social da propriedade. Há, portanto, uma redução no poder de domínio, mas não seu esvaziamento (LEME MACHADO, 2009, p. 982).

Outro direito do proprietário é pedir o cancelamento do tombamento, situação que ocorrerá caso a coisa tombada necessite, comprovadamente, de obras de conservação ou reparação e o proprietário não tiver condições financeiras para arcar. Caso o órgão público entenda que as obras são necessárias, mandará executá-las às expensas da União (se o tombamento for federal) ou às expensas dos Estados ou Municípios. O órgão público do patrimônio cultural deverá se manifestar em um prazo de seis meses, sendo que, caso fique silente ou negue o pedido, o proprietário terá o direito de pedir o cancelamento do tombamento (LEME MACHADO, 2009, p. 893).

Após o pedido de cancelamento, deverá aguardar o deferimento administrativo. Caso este seja indeferido ou o órgão público não se manifestar, o proprietário deve pedir judicialmente o cancelamento, ficando ainda submetido a seus deveres legais de conservar o bem.

Na análise dos artigos do Decreto-lei nº 25/37 sobre deveres e direitos dos proprietários, percebe-se que as obrigações são de não fazer para não depreciar, mas não há obrigação de agir para tutelar, somente a possibilidade. Assim sendo, os proprietários, na maioria das vezes, deixam os bens à mercê de quaisquer reparos, ficando estes degradados pela ação do tempo, perdendo a função socioambiental que deveriam ter, servindo, portanto, para outras finalidades, como é o caso dos casarões transformados em estacionamentos no centro histórico de São Luís.

Far-se-á, portanto, uma análise do tombamento, instrumento específico cujo desiderato é proteger o patrimônio histórico e artístico nacional, por intermédio da intervenção estatal na propriedade, verificando seus efeitos perante os bens tombados, caso não haja o cumprimento do que imposto pelo Decreto-lei n° 25/37, bem como o cumprimento da função socioambiental perante esses bens.

3.2 Tombamento como instrumento jurídico de acautelamento do patrimônio arquitetônico

Após o advento da Constituição Federal de 1988, a proteção jurídica do patrimônio cultural passou a contar com outras formas de acautelamento e preservação por parte do poder público e da comunidade. O § 1º do artigo 216 menciona cinco instrumentos para a promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro: inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação. Ocorre que não exclui outros meios, possibilitando a criação de “outras formas de acautelamento e preservação”, que devem ser desenvolvidos e regidos pelo legislador, pela Administração Pública e pela comunidade.

Optou-se pelo estudo do instituto do tombamento pelo fato de este ser considerado uma limitação administrativa que tutela os bens considerados parte integrante do patrimônio histórico o artístico nacional de determinado local. Ademais, considerando que o direito de propriedade deve atender à sua função social, decorrente principalmente da preservação do patrimônio cultural, observa-se que este instrumento é o mais apto para tanto.

No que pertine aos aspectos jurídicos de proteção do patrimônio cultural, pode-se enfatizar a existência de diversos instrumentos que visam preservar os bens imóveis, sendo o tombamento um dos mais utilizados pelo poder público na intervenção da propriedade privada, aplicável em caso de bens materiais ou imateriais.

O termo “tombamento”, instituído no Decreto-lei nº 25/37, constante na Carta Constitucional, tem uma acepção própria no Brasil, vez que a legislação portuguesa denomina esse instituto de “classificação e inventariação”, ainda que o local em que os arquivos estatais armazenados fosse denominado de Torre do Tombo (LEME MACHADO, 2009, p. 956).

Na Constituição Federal de 1988, esse termo passa a constar nos parágrafos 1º e 5º do artigo 216, sendo referido como um dos cinco meios de proteção do patrimônio cultural brasileiro.

Segundo obtempera Souza Filho, o tombamento é:

(...) um ato administrativo da autoridade competente que declara ou reconhece valor histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, bibliográfico, cultural ou científico de bens que, por isso, passam a ser preservados, se realizando pelo fato administrativo de inscrição ou registro em um dos livros do Tombo criados pelo Decreto-Lei 25/37 (SOUZA FILHO, 2006, p. 83).

Conforme entendimento de Di Pietro:

O tombamento é a forma de intervenção do Estado na propriedade privada, que tem por objetivo a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, assim considerado, pela legislação ordinária, o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor etnográfico, bibliográfico ou artístico (DI PIETRO, 2010, p. 131).

Ademais, frise-se o entendimento de Andrade, que define o tombamento como:

[...] o conjunto de ações ou providências tutelares – em caráter provisório ou definitivo – que culminam por espelhar o reconhecimento oficial de valor cultural em bens tangíveis– móveis ou imóveis – naturais ou materializados por intervenção humana que, individual ou conjuntamente considerados, de propriedade de pessoas físicas ou jurídicas, privadas, públicas ou eclesiásticas, terminam por comportar inscrição em um dos quatro Livros do Tombo instituídos pelo Decreto-lei n. 25, de 30.11.37 estatuto de regência da matéria, o qual, em seu artigo 4°, prevê os seguintes: Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico (1°), Livro do Tombo Histórico (2°), Livro do Tombo das Belas-Artes (3°) e Livro do Tombo das Artes Aplicadas (4°) (ANDRADE, 2001, p. 398-399).

Por fim, entende-se que é um ato administrativo em que o Poder Público impede a destruição ou descaracterização dos bens de valor histórico, cultural e arquitetônico, por intermédio da legislação específica, garantindo a supremacia do interesse coletivo sobre o privado.

Apesar de ser regulado por Decreto, o tombamento não possui apenas uma função abstrata da lei, visto que esta apenas dita as regras para sua efetivação. Tal procedimento é tido como ato administrativo da autoridade competente, isso porque sua realização não vai ocorrer em um único ato, mas em uma sucessão de atos que irão preparar o bem para um ato final válido, qual seja, a inscrição do mesmo no Livro do Tombo (DI PIETRO, 2010, p. 112).

À par desses conceitos, afere-se que, com o tombamento, o poder público pode intervir na propriedade privada visando à tutela do patrimônio histórico e artístico tanto nos bens materiais quanto nos imateriais, que devem ser inscritos no Livro do Tombo e suscetíveis de restrições parciais, pois mesmo pertencendo ao particular, o bem é de interesse público, reafirmando o princípio da supremacia do interesse público em detrimento do particular.

A doutrina diverge a respeito da natureza jurídica do tombamento, sendo considerado, portanto, um instituto sui generis. É através da especificação de sua na­tureza jurídica que aplica-se ao instituto as regras a ele pertinentes, delineando os efeitos jurídicos que decorrerão (RABELLO, 2009, p. 129).

Nesse trilhar, questiona-se: o tombamento é considerado uma servidão administrativa (artigo 18 do Decreto-Lei nº 25/37), uma limitação administrativa à sociedade ou instrumento específico de intervenção estatal na propriedade?

Bandeira de Mello (2007, p. 239), amparado por outros doutrinadores, considera que é uma modalidade de servidão administrativa, uma vez que incide sobre imóvel determinado, ocasionando ao proprietário deste bem um ônus elevado. Além do mais, exclui a natureza de limitação administrativa, tendo em vista que essa possui natureza geral e abstrata, diferentemente do ato administrativo, que possui caráter específico.

No mesmo sentido, Diógenes Gasparini pondera que o tombamento possui natureza jurídica de servidão, caracterizando-se por ser “a submissão de certo bem, público ou particular, a um regime especial de uso, gozo, disposição ou destruição em razão de seu valor histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico” (GASPARINI, 2006, p. 745).

O posicionamento de Di Pietro é de que o tombamento é um ato discricionário que não é compatível com o instituto da servidão administrativa tampouco com a limitação administrativa à propriedade, por isso é estabelecido como categoria própria. Ademais, o instrumento do tombamento não é uma restrição imposta em benefício do bem afetado ao fim ou serviço público, conquanto vise, em verdade, a satisfação dos interesses públicos e, de forma mais abrangente, o patrimônio histórico e artístico nacional do país, em virtude disso não pode ser concebido como servidão (DI PIETRO, 2010, p.123).

Para Carvalho Filho, o tombamento, além de não ser servidão administrativa, também não é limitação administrativa, sendo, portanto, um instrumento de intervenção restritiva utilizado por parte do Estado na propriedade privada, tendo natureza concreta e específica (CARVALHO FILHO, 2008, p. 711).

Em conformidade com o atinente entendimento, Flávio Queiroz Bezerra Cavalcanti defende que “o tombamento é um instituto de natureza híbrida, por comparecer tanto como limitação, como servidão administrativa” (CAVALCANTI, 1994, p. 53).

Ainda no que diz respeito à natureza jurídica do tombamento, mas levando em conta o ponto de vista do direito ambiental, Fiorillo estabelece que é possível elencá-lo como tombamento ambiental, visto que, conforme explanado anteriormente, sua finalidade é tutelar o patrimônio cultural de determinado local, ou seja, um bem cultural de natureza difusa (FIORILLO, 2007, p. 241).

Após uma análise dos posicionamentos doutrinários acerca da natureza jurídica do tombamento, inelutável ressaltar o posicionamento adotado neste trabalho, vale dizer, o entendimento de que este instituto não se configura como servidão ou limitação administrativa, mas sim como uma espécie de intervenção estatal na propriedade, cujo objetivo é tutelar o patrimônio histórico e artístico.

No que toca à competência para o tombamento, a Constituição Federal, em seu artigo 23, inciso III, estabelece as funções de competência concorrente entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios para proteção do patrimônio cultural, que abrange documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural.

Os Municípios têm capacidade de promover a proteção do patrimônio histórico-cultural de interesse local, conforme prescreve o artigo 30, IX da Carta Magna, não possuindo competência para legislar a respeito desta matéria, mas podendo se utilizar dos mesmos instrumentos de proteção previstos na legislação federal e estadual (FIORILLO, 2007, p. 113-114).

Assim, observa-se que a União é responsável pelo estabelecimento das normas gerais acerca do patrimônio histórico, ao passo que os outros entes legislam para suplementar tais normas.

A Constituição estabelece que ao poder público incumbe dispor sobre o tombamento de bens em seu território, em função disso qualquer das entidades estatais podem fazê-lo. Nessa alheta, Mukai acrescenta:

[...] havendo a disposição de mais de um ente para tombar um dado bem, aquele órgão do poder público que estiver mais diretamente relacionado ao bem jurídico tutelado, terá a competência para tombá-lo. Afinal, um determinado bem de valor histórico tem mais importância para o município com o qual se relaciona, do que com todo o país (MUKAI, 1998, p. 155).

É possível, portanto, que qualquer um desses entes tombe o que outro já havia tombado, reforçando a eficácia do tombamento ou visando evitar que a outra se omita no que tange a fiscalização ou que conceda permissões contrárias ao interesse revelado (PONTES DE MIRANDA, 1976, p. 375).

O procedimento do tombamento varia conforme a sua modalidade. Fiorillo classifica esse instituto sob três aspectos: quanto à origem da sua instituição, quanto à eficácia e quanto ao bem a ser tombado (FIORILLO, 2007, p. 242-244).

Sob o primeiro aspecto, pode ser instituído por lei, por ato do Executivo ou pela via jurisdicional. O aludido autor destaca que é vantajoso o tombamento instituído por lei, uma vez que este só poderá ser desfeito se a medida tiver sua gênese em ato do Poder Legislativo, observada a competência legislativa de cada ente.

No que se refere à eficácia do ato, o tombamento pode ser provisório ou definitivo. É provisório quando há notificação do proprietário e quando for instituído por via jurisdicional (o ato irá advir de uma liminar) ou executiva (quando o processo tiver inicio pela notificação). Noutro extremo, o tombamento será definitivo quando concluído o procedimento pela inscrição do bem no Livro do Tombo, conforme o artigo 10 do Decreto-lei 25/37, sendo possível nas três vias: executiva, legislativa e jurisdicional.

Na via executiva ocorre quando o processo tiver sido concluído pela inscrição dos bens no Livro do Tombo competente para tal. Na via legislativa com o início da vigência da lei que o instituiu. Por seu turno, ocorrerá na via jurisdicional quando pairar a autoridade da coisa julgada sobre a sentença que determinou a inscrição do bem no Livro do Tombo (FIORILLO, 2007, p. 243).

No que concerne ao último aspecto, o tombamento pode ser de ofício, voluntário ou compulsório, dependendo a quem pertença o bem. Assim, será de ofício quando o bem for difuso ou de domínio público, sendo este procedimento regulado pelo artigo 5º do Decreto-lei 25/37. Caso o bem seja de proprietário particular, o artigo 6º dispõe que o tombamento será voluntário ou compulsório.

Será voluntário quando o proprietário requerer o tombamento ou concorda, por escrito, com a notificação que lhe for dirigida. Caso haja anuência tácita (devido à inércia do proprietário à notificação) ou não impugnação no prazo de 15 dias; ou quando, após impugnação tempestiva à notificação a decisão do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural for desfavorável ao proprietário, efetiva-se o compulsório.

O tombamento, sob a ótica de ato do Poder Executivo no exercício do seu poder de polícia, visa delimitar as propriedades, tutelando-as em virtude de seu valor cultural. Para que essa proteção seja efetivada por parte do poder público, é imprescindível a identificação do momento a partir do qual a tutela passará a operar, exigindo-se, posteriormente, as obrigações decorrentes dela (CASTRO, 2009, p. 101).

O parágrafo 1º do artigo 1º do Decreto-lei 25/37 esclarece o momento de surgimento da tutela e a natureza constitutiva desse ato, assim estabelecendo:

Art. 1º (...)

§ 1º - Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tom­bo, de que trata o art. 4º desta Lei.

De mais a mais, nota-se que com a inscrição o bem fará parte do patrimônio, produzindo-se os efeitos jurídicos da proteção definitiva, não necessitando apenas dos pressupostos fáticos de valor cultural, mas que estes sejam reconhecidos por processo administrativo, através de manifestação do poder público e da inscrição do bem no Livro do Tombo, passando a fazer parte do patrimônio cultural nacional (CASTRO, 2009, p. 97).

Vale ressaltar que o tombamento provisório também gera efeitos sobre o bem, a partir do momento em que o proprietário é notificado. O artigo 10 do Decreto em alusão disciplina que essa forma de tombamento produz os mesmos efeitos do tombamento definitivo, com exceção da ne­cessidade de averbação do ato junto ao registro de imóveis e, consequen­temente, não operando as restrições à alienabilidade previstas na lei.

Destarte, o Decreto, em seus artigos 11 a 21, estabelece os efeitos do tombamento. Para Souza Filho (2006, p. 101) o principal efeito é a alteração do próprio bem, tendo em vista que acarreta em um sistema de proteção para garantir que não haja alterações ou deteriorações no mesmo, gerando, portanto, obrigações aos proprietários no que tange à conservação dos bens. Insta frisar que deste efeito se desmembra um secundário, qual seja, a aceitação por parte dos proprietários da fiscalização realizada pelo poder público.

Outro efeito gerado pelo tombamento é o direito à indenização pelo proprietário quando houver despesas extraordinárias, tendo em vista a conservação do bem, nos casos de interdição do uso do bem tombado ou de prejuízo à sua normal utilização.

No mais, pode-se citar o denominado “entorno do bem tombado”, elencado no artigo 18 do Decreto-Lei 25/37. Este efeito cria uma limitação ao exercício de propriedade dos vizinhos, que ficam proibidos de realizar obras ou construções que retirem a visibilidade do bem tombado, bem como a impossibilidade de colocar anúncios ou cartazes no imóvel.

Há também o direito de preferência, constante no artigo 22 do mesmo Decreto, através do qual o poder público (União, Estado e Município, nesta ordem) tem prioridade na compra dos bens tombados, a partir do momento em que o proprietário quiser vendê-los. Caso o proprietário descumpra com esta ordem de oferta, a venda será nula e passível de venda forçada, acrescido de uma multa de vinte por cento (20%), que deverá ser paga tanto pelo vendedor quanto pelo comprador do bem.

Decorre ainda do tombamento a sua anotação no registro de imóvel competente, através do qual os indivíduos devem comunicar o órgão competente caso adquiram ou transfiram um bem. Não bastasse isso, a União tem a faculdade para vigiar os bens tombados, podendo inspecioná-los a qualquer momento, sem que haja interferência do proprietário (SOUZA FILHO, 2006, p. 103).

Por fim, o principal efeito desse instrumento é conservar a integridade dos bens sob sua égide, transformando em interesse jurídico os valores culturais contidos nos mesmos. A partir desse interesse, infere-se a importância do estudo das funções social e ambiental das propriedades tombadas.

3.2.1 A função socioambiental do bem tombado

A partir da Constituição de 1988, a propriedade passa a ser vista como direito e dever individual e coletivo, condicionada ao cumprimento da função social, conforme roga os artigos 5º, incisos XXII e XXIII, 170, III e 186, II. Sendo assim, a propriedade privada e a defesa do meio ambiente são postos como princípios gerais da atividade econômica.

O artigo 5º, inciso XXII assegura o direito de propriedade, elencando-o como direito individual, sendo considerado uma cláusula pétrea, núcleo intangível da Carta Magna. O inciso XXIII restringe esse direito a partir do momento em que estabelece a necessidade de cumprimento de funções de cunho social, político e ambiental.

Esse artigo constitucional deve ser observado na íntegra e com aplicabilidade imediata para que a propriedade corresponda aos preceitos jurídicos e cumpra tais funções. Nesse pesar, a característica absoluta atribuída ao direito de propriedade no inciso XXII torna-se relativa com as limitações impostas no inciso XXIII para que esse direito possa existir.

Para melhor definir o conceito de função social, deve-se observar o caput do artigo 170 da Constituição Federal, que acentua como objetivo da ordem econômica “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. É possível afirmar que, para o cumprimento da função social de determinado bem, mister a promoção de uma existência pautada por parâmetros de dignidade.

No que diz respeito à correlação entre tombamento e função social da propriedade, traz-se à baila as palavras de Paulo Affonso Leme Machado:

O tombamento é uma forma de implementar a função social da propriedade, protegendo e conservando o patrimônio privado ou público, através da ação dos poderes públicos, tendo em vista seus aspectos históricos, artísticos, naturais, paisagísticos e outros relacionados à cultura, para a fruição de presentes e futuras gerações (...) O regime jurídico do tombamento estrutura a interação do interesse individual e social da propriedade. As formas de gestão público/privada dos bens tombados devem traduzir a função social da propriedade cultural (LEME MACHADO, 2009, p. 958).

Sob o mesmo enfoque, Cavedon aduz:

A constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao qualificar a propriedade como portadora de uma função social e de uma função ambiental, visa à solução dos conflitos entre interesse individual do proprietário e os interesses da coletividade. Dentre eles, destaca-se o interesse em gozar de um ambiente saudável, e alcançar as finalidades sociais que almeja a sociedade brasileira, como o desenvolvimento econômico individual que traga, concomitantemente, vantagens para a coletividade (CAVEDON, 2003, p. 65.)

Em sentido similar, o artigo 1.228 do Código Civil vigente garante ao proprietário a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, como também o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. Dispõe, porém, em seu parágrafo 1º, que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais, preservando, dentre outros, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico.

Com efeito, nota-se o afastamento do caráter individualista do antigo Código Civil de 1916 e a adoção de um caráter social e ambiental por parte do Código Civil de 2002, condicionando o uso da propriedade à finalidades sociais, bem como ao equilíbrio ecológico (DINIZ, 2002, p. 101).

Assim, o regime jurídico da propriedade urbana é de natureza constitucional, inserindo-se na disciplina do direito urbanístico, e a legislação civil assegura direitos ao proprietário, estabelecendo a obrigação de ter finalidades econômicas e sociais. A propriedade cumpre, portanto, sua função social, quando for preservada visando à tutela do patrimônio cultural nela identificado (SILVA, 1997, p. 67).

Para Fernanda Cavedon, a partir da proteção que a Constituição de 1988 conferiu ao meio ambiente, verifica-se a existência da uma função ambiental inerente ao conceito de propriedade e função social, posto que há uma vinculação de ordem ambiental (CAVEDON, 2003, p. 68).

Antonio Herman Benjamin também defende a existência de uma função ambiental:

a função ambiental não é exclusivamente pública. Ou seja, seu exercício é outorgado a outros sujeitos além do Estado. Por conseguinte, o múnus ambiental (ou ofício ambiental) manifesta-se pelo comportamento do Estado e/ou do cidadão, agindo este coletiva (associações ambientais, por exemplo) ou isoladamente (BENJAMIN, 1993, p. 50-51).

Citando a obra Las Transformaciones Del Derecho Público y Privado, de Lén Duguit, Figueiredo afirma:

[...] Duguit sustenta que a propriedade não tem mais um caráter absoluto e intangível. O proprietário, pelo fato de possuir uma riqueza, deve cumprir uma função social. Seus direitos de proprietário só estarão protegidos se ele cultivar a terra ou se não permitir a ruína de sua casa. Caso contrário, será legítima a intervenção dos governantes no sentido de obrigarem o cumprimento pelo proprietário, de sua função social (FIGUEIREDO, 2004, p. 69).

Nesse compasso, a propriedade, dotada de função social, contempla interesses coletivos e sociais, promovendo o bem comum. A função social da propriedade gera uma obrigação ao proprietário para que este destine sua propriedade, atendendo interesses superiores aos dele, quais sejam, os da sociedade.

Especificamente sobre a propriedade urbana, o artigo 182, parágrafo 2º da Constituição de 1998 esclarece que a mesma cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor. Considerando que o Plano Diretor contém normas ambientais que devem ser obedecidas pelo proprietário, percebe-se a relevância da função ambiental.

Por seu turno, a lei 4.669/2006, que instituo o Plano Diretor da cidade de São Luís estabelece suas diretrizes gerais, destacando, ainda, a preservação do Patrimônio Cultural:

Art. 2º (...)

II. a função social é atendida quando o uso e a ocupação da propriedade urbana e rural correspondem às exigências de ordenação do Município, ampliando as ofertas de trabalho e moradia, ampliando o atendimento das necessidades fundamentais dos cidadãos, proporcionando qualidade de vida, justiça social e desenvolvimento econômico sem comprometimento da qualidade do meio ambiente urbano e rural.

Art. 4º Compreendem as diretrizes gerais do Plano Diretor:

I. promover políticas públicas que elevem a qualidade de vida da população, particularmente no que se refere à saúde, à educação, à cultura, esporte e lazer, às condições habitacionais, à infraestrutura, saneamento básico e aos serviços públicos, promovendo a inclusão e reduzindo as desigualdades sociais;

II. garantir a qualidade do ambiente urbano e rural, por meio de ações que promovam a preservação e proteção dos recursos naturais e do patrimônio histórico, artístico, cultural, urbanístico, arqueológico e paisagístico;

VII. programar um sistema de fiscalização integrado, visando ao controle urbano, rural e ambiental que articule as diferentes instâncias e níveis de governo.

Art. 69. A Política de Preservação do Patrimônio Cultural do Município visa assegurar a proteção, disciplinar a preservação e, resgatar o sentido social do acervo de bens culturais existentes ao possibilitar sua apropriação e vivência por todas as camadas sociais que a eles atribuem significados e os compartilham, criando um vínculo efetivo entre os habitantes e sua herança cultural e garantindo sua permanência e usufruto para as próximas gerações.

Através do Plano Diretor, percebe-se o destaque dado ao aspecto social e ambiental, posto que este é o instrumento da política de desenvolvimento urbana que deve ser executada pelos Municípios com a finalidade de ordenar as funções sociais e ambientais da cidade. O planejamento urbano traça diretrizes que definem o conteúdo da função socioambiental da propriedade urbana (MUKAI, 1998, p. 29).

Outrossim, a percepção de função social de um bem é um dos fundamentos do direito de propriedade, relacionando-se à satisfação do bem estar da sociedade. Afirma Souza Filho que “a função social dos bens socioambientais está na sua dimensão de proteção, de modo a evocar a cultura da cidade e garantir a biodiversidade” (SOUZA FILHO, 2006, p. 28-29).

Nesse prisma, para que um bem seja efetivamente preservado deve evocar a cultura do lugar em que se encontra, garantindo às gerações vindouras a possibilidade de desfrutar do mesmo. Necessário que se mantenha a identidade da comunidade adquirida no passado, de modo que a vivência e a construção do presente constituam valores que serão preservados futuramente.

Por tal motivo, ao ser tombado como patrimônio cultural, um bem imóvel de moradia urbana passa a preservar a memória e evocar a manifestação cultural, agregando e ampliando a função socioambiental da propriedade.

Considerando que o Centro Histórico da Cidade de São Luís é tombado quase de forma completa, pode-se afirmar que o cumprimento da função social dos bens tombados é parcial, não havendo preservação concreta dos casarões, porquanto não são utilizados para atividades em prol da coletividade, descumprindo, por via de consequência, a restrição imposta pela Carta Magna sobre a observância do cumprimento da função socioambiental perante a propriedade.

O tombamento não é plenamente eficaz no cumprimento da função socioambiental das propriedades, posto que, isoladamente, não garante o resguardo do aspecto ambiental e cultural de São Luís.

Resta claro, portanto, a necessidade de garantia da função socioambiental da propriedade. Nesse toar, faz-se necessários investimentos e reformas por parte dos proprietários e dos órgãos públicos, de modo a amenizar os problemas ambientais decorrentes dos desgastes nos prédios, favorecendo o potencial artístico e cultural da cidade.

Sob esse aspecto, é possível estabelecer condutas por parte do poder público em parceria com a própria comunidade no sentido de viabilizar o acesso aos casarões abandonados, transformando-os em escolas, centros de projetos culturais, dentre outros espaços para a sociedade.

Para tanto, considerando a aptidão do poder público para tutelar o patrimônio cultural, bem como a importância da atuação conjunta com a comunidade (incluindo proprietários), escolheu-se avaliar a operação patrimônio, que destaca essa atuação entre diversos órgãos, mas depende do agir positivo dos proprietários para ter sua eficácia garantida.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Natália Lago. Tombamento e função socioambiental da propriedade: Um estudo jurídico a partir da Operação Patrimônio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5040, 19 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56941. Acesso em: 21 nov. 2024.

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