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Tombamento e função socioambiental da propriedade

Um estudo jurídico a partir da Operação Patrimônio

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19/04/2017 às 15:50
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1 INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como principal foco a abordagem acerca do meio ambiente cultural, direito fundamental do homem. Verifica-se a função socioambiental da propriedade através da análise dos bens imóveis tombados no centro histórico de São Luís que foram objeto de uma operação denominada “operação patrimônio”, desenvolvida pelos órgãos municipais, estaduais e federais para evitar a degradação dos casarões do Conjunto Arquitetônico que, em sua maioria, estavam sendo transformados em estacionamentos, de forma irregular.

Nesse compasso, o engendramento do presente trabalho se perfaz com uma pesquisa de campo nos seguintes órgãos: Ministério Público Estadual; Ministério Público Federal; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e Superintendência da Polícia Federal no Maranhão.

Um dos escopos da presente pesquisa monográfica é de se constatar na prática como o poder público, em conjunto com a comunidade ludovicense, atua na defesa e promoção do direito fundamental ao meio ambiente cultural, fazendo, para tanto, um panorama dos principais órgãos que tutelam o centro histórico de São Luís, destacando-se o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico – IPHAN, organismo de proteção federal de proteção ao patrimônio, cuja criação obedece ao princípio normativo constante no artigo 216 da Constituição Federal de 1988, definidor do patrimônio cultural.

Frise-se que a real necessidade de se investigar a respeito desse tema decorreu da problemática existente entre a adequada tutela do centro histórico de São Luís e a importância das propriedades cumprirem uma função socioambiental. Enfatiza-se, nesse aspecto, o instrumento do tombamento, que pode ser balizado como uma forma de intervenção estatal na propriedade, visando o cumprimento da mencionada função a partir do momento em que impõe aos proprietários determinadas limitações.

Nesse pesar, destaca-se que um dos objetivos do presente estudo é averiguar a atuação dos órgãos públicos através da utilização do tombamento nos bens do centro histórico, de modo a verificar se este é eficaz em prol da sociedade no que toca ao cumprimento da função socioambiental, ou seja, se realmente garante que bens artísticos e históricos, sob a égide do tombamento, sejam conservados e utilizados de maneira adequada.

Nesse sentido, a metodologia utilizada para subsidiar a pesquisa abarca técnicas de pesquisa que compreendem a coleta de dados por intermédio de entrevistas e pesquisas de campo nos órgãos citados em linhas pretéritas, como também far-se-á pesquisas bibliográficas, de modo a fundamentar o estudo sobre o meio ambiente cultural. Outrossim, ressalte-se que o método utilizado é o hipotético dedutivo, a partir do momento em que é testada, através da pesquisa de campo, a eficácia da operação patrimônio no que cinge à garantia do cumprimento da função social da propriedade tombada.

Desta forma, vê-se que o primeiro capítulo da presente pesquisa traça um apanhado geral acerca do direito fundamental ao meio ambiente, insculpido no seio da Carta Magna em vigor, destacando sua conceituação jurídica, que abrange, dentre outros aspectos, o patrimônio cultural. Nessa vertente, oportuno analisar os princípios do direito ambiental para a tutela do meio ambiente cultural, enfatizando o princípio da função socioambiental da propriedade, de modo a destacar a relevância do título de patrimônio cultural concedido a São Luís pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - UNESCO.

No segundo capítulo, examina-se a tríplice atuação para a tutela do meio ambiente cultural, envolvendo comunidade, proprietários e poder público, especificando de que modo os órgãos estatais, através de suas políticas de proteção, interferem na propriedade privada, e por conseguinte, na preservação do patrimônio cultural, impondo obrigações e estabelecendo direitos aos proprietários de bens imóveis tombados.

Assim, analisam-se os aspectos do tombamento, instrumento jurídico mais apto para o acautelamento do patrimônio cultural, uma vez que é amplamente utilizado pelo poder público para a proteção do patrimônio histórico e artístico, limitando o direito de propriedade, garantindo um caráter coletivo aos bens, verificando-se, a partir daí, a função socioambiental que deve envolver a propriedade.

Considerando a aptidão dos órgãos públicos para solucionar questões ambientais, destaca-se em especial a problemática dos estacionamentos no centro histórico de São Luís, que, além de ser um aspecto deveras degradador ao patrimônio, é uma demanda da própria população que sofre com a falta de estacionamentos. Para tanto, deve haver uma interação entre a proteção dos casarões e a demanda populacional no que tange aos estacionamentos, buscando-se soluções que preservem o Conjunto Arquitetônico tombado e, ao mesmo tempo, tutelem a estrutura urbana, favorecendo, destarte, a comunidade.

Na tentativa de solucionar essa questão, faz-se no último capítulo uma explanação sobre a “operação patrimônio”, realizada pelo poder público no ano de 2008, com o objetivo de embargar o funcionamento de estacionamentos que prejudicam e descaracterizam o Conjunto Arquitetônico de São Luís.

Há, portanto, um levantamento dos bens imóveis tombados utilizados para tal finalidade, bem como uma pesquisa para esclarecer se a operação teve impacto positivo para o meio ambiente cultural, enfatizando-se as possíveis soluções mencionadas pelos representantes dos órgãos públicos na tentativa de resolver a problemática da carência de estacionamentos no centro da cidade, sem que seja necessário degradar os bens ali presentes.


2 MEIO AMBIENTE E CULTURA: DIMENSÕES JURÍDICAS DA TUTELA DO PATRIMÔNIO CULTURAL

No presente capítulo, far-se-á uma análise jurídica acerca do conceito de meio ambiente, estabelecendo-se, para tanto, os aspectos que o compõe, denotando neste patamar o histórico e a importância da tutela deste para a garantia da sadia qualidade da vida humana, englobando o patrimônio cultural como seu aspecto.

Nessa senda, infere-se que um estudo do direito ao ambiente sadio e ecologicamente equilibrado como direito fundamental deverá partir do seu viés constitucional, embasado principalmente no artigo 225 da Carta Magna, analisando-se, a partir deste, o traço de fundamentalidade do meio ambiente (Bello Filho, 2006, p. 226).

Ademais, esboça-se um rascunho dos princípios norteadores do direito ambiental pertinentes ao tema em relevo, destacando-se o título de patrimônio cultural concedido à cidade de São Luís, bem como a relevância da sua tutela para as gerações presentes e futuras, tendo em vista que é um direito fundamental garantido a todos, exatamente em função disso, deve ser preservado visando à equidade intergeracional.

Inicialmente, traçando-se um parâmetro entre o direito ambiental e os direitos inerentes a cada indivíduo no aspecto do meio ambiente, é lícito afirmar, sob a ótica da Carta Magna de 1988, que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo e como bem essencial à sadia qualidade de vida.

Conforme pontua Varella (1998, p. 52), a preocupação jurídica do ser humano com a qualidade de vida e a proteção do meio ambiente como bem difuso é tema recente, só alcançando maior interesse por parte do Estado com a percepção da deterioração da qualidade ambiental com a crise ambiental e o desenvolvimento econômico.

Nesse rumo, nota-se que a Constituição Federal do Brasil passou por um processo de esverdeamento ou ecologização gerado pela crise ambiental após a Segunda Guerra Mundial. Anteriormente a esta, a Lei nº 6938/81, da Política Nacional do Meio Ambiente, sistematizou uma política ambiental tutelando os elementos que viabilizam a existência humana, regulamentando questões ecológicas no âmbito jurídico, definindo o conceito meio ambiente, o que ocasionou uma ampliação desse conceito no ordenamento jurídico brasileiro (BENJAMIN, 2007, p. 59-64).

Trazendo à baila o conceito estabelecido no artigo 3º da Lei nº 6938/81, entende-se o meio ambiente como “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”1.

A par do conceito acima declinado, é possível perceber a importância da preservação, recuperação e revitalização do meio ambiente, tanto por parte do poder público quanto de toda a sociedade, de modo a garantir um equilíbrio do mesmo, assegurando, portanto, boas condições de vida relativas ao desenvolvimento humano.

Nesse diapasão, observa-se a necessidade de proteção do meio ambiente, cujo desdobramento acarreta em quatro principais aspectos, quais sejam, artificial, natural, laboral e cultural, analisados a seguir com mais cautela.

2.1 O patrimônio cultural como aspecto do meio ambiente

Em meados do século XX surgem os direitos de terceira dimensão, que abrangem os direitos difusos e coletivos, tutelando-se, pois, o direito ao consumidor, o meio ambiente e a qualidade de vida, o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural, dentre outros (SARLET, 2003, p. 51).

Por meio da ADIN 3540/2003, o então Ministro do STF, Celso Antonio Bandeira de Melo, deixou claro em seu voto que o meio ambiente é um direito de terceira geração, que assiste a todo o gênero humano, incumbindo ao Estado e à coletividade a sua defesa2.

Tais direitos são inerentes à preservação de bens coletivos, visto que esses valores e interesses são de relevância para a coletividade, transformando-se em bens jurídicos. Conforme aduz Alexy:

Para converter-se em um bem coletivo de um sistema jurídico, o interesse puramente fático tem que se transformar em um interesse juridicamente reconhecido e, neste sentido, justificado. Porém, um interesse justificado não é outra coisa que algo cuja persecução está ordenada prima facie ou definitivamente. Com isso, o interesse adquire um status normativo (ALEXY, 2008, p. 187).

Nesse passo, faz-se mister a análise de cada ordenamento jurídico enquanto expressão política, tendo em vista que o processo de reconhecimento de valores como bens jurídicos traduz opções políticas, o que acarreta na possibilidade de se constatar de que forma a cultura é tutelada.

Segundo Marchesan (2006, p. 26), a cultura brasileira é protegida através da Constituição Federal como um fenômeno social e fator de emancipação humana, que limita a tutela dos bens com referência na norma constitucional, não amparando a cultura em sua extensão antropológica.

Além disso, existem duas vertentes de valores culturais: uma referente às normas jurídico-constitucionais, como os direitos culturais, a garantia de acesso à cultura, dentre outros; já a outra diz respeito a própria matéria normatizada, como cultura, patrimônio cultural, sendo que a Constituição não ampara a cultura na sua extensão antropológica, limitando-se a tutelar os bens que possuem uma significação referencial da norma constitucional (SILVA, 2001, p. 35).

Dessa maneira, os objetos tutelados pela Carta Magna só terão significação constitucional a partir do momento em que forem elevados ao sentido referencial da norma, ou seja, quando tiverem destaque para a sociedade quanto ao aspecto revelador de sua cultura, é o caso do centro histórico de São Luís, como se verá adiante.

Ao abordar sobre a questão da transdisciplinariedade no direito ambiental sob o enfoque jurídico, José Rubens Morato Leite e Patrick Araújo Ayala destacam que:

Observadas as complexas questões que envolvem a questão ambiental é importante para os juristas avaliar se a abordagem jurídica do ambiente constitui apenas uma refração dos ramos tradicionais do direito ou se, por oposição, pode-se afirmar a existência de um novo ramo do direito: o Direito Ambiental ou Direito do Ambiente (...). Nestes contornos, a proposta de transdisciplinaridade proporciona a revisão da tendência paralisante que a imposição de leituras dogmáticas de disciplinas afins ou mesmo o Direito, frequentemente, realizam sobre a questão ambiental, ao mesmo tempo em que oportuniza o desenvolvimento da essencialidade do princípio democrático, ao constituir discurso de interação/integração, dialógico e ontologicamente aberto (LEITE; AYALA, 2010, p. 71-72).

A rigor, a categoria meio ambiente apresenta-se como pleonasmo, tendo em vista que as expressões meio e ambiente são tidas como equivalentes. A respeito disso, o entendimento de Milaré:

Tanto a palavra meio quanto o vocábulo ambiente passam por conotações, quer na linguagem científica quer na vulgar. Nenhum destes termos é unívoco (detentor de um significado único), mas ambos são equívocos (mesma palavra com significados diferentes). Meio pode significar: aritmeticamente, a metade de um inteiro; um dado contexto físico ou social; um recurso ou insumo para se alcançar ou produzir algo. Já ambiente pode representar um espaço geográfico ou social, físico ou psicológico, natural ou artificial. Não chega, pois, a ser redundante a expressão meio ambiente, embora no sentido vulgar a palavra identifique o lugar, o sítio, o recinto, o espaço que envolve os seres vivos e as coisas. De qualquer forma, trata-se de expressão consagrada na língua portuguesa, pacificamente usada pela doutrina, lei e jurisprudência de nosso país, que, amiúde, falam em meio ambiente, em vez de ambiente apenas (MILARÉ, 2001, p. 63).

Ocorre que para reafirmar o bem jurídico a ser tutelado, a Constituição Federal de 1988 abrangeu tal expressão, de modo a denotar tudo que está ao redor do ser humano. Assim, resguarda-se a vida, viabilizando a tutela jurídica dos bens que compõem o meio em que se vive, representando o fundamento da existência da vida humana (LEITE, 2010, p. 71).

Conforme citado anteriormente, o conceito legal de meio ambiente é fornecido pela Lei nº 6938/81, em seu artigo 3º, inciso I, que trata a respeito da Política Nacional do Meio Ambiente, como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.

Com isso, o legislador brasileiro optou por conceituar a interação e a interdependência entre homem e natureza, denotando tal proteção jurídica do meio ambiente como um bem unitário (LEITE, 2010, p. 79).

Destarte, o meio ambiente apresenta-se como uma complexidade de seus elementos, devido a suas estruturas e o modo como se relacionam. Há, portanto, uma integração e interação entre a natureza e o homem, havendo uma relação de interdependência (LEITE, 2010, p. 72).

A complexidade nas relações dos elementos que compõem o ecossistema deve inserir a pessoa humana, isso porque tal inserção na análise ecológica gera uma maior complexidade, sendo esta transdisciplinariedade o fundamento do desafio ecológico jurídico.

Ressalte-se que o conceito de meio ambiente pode ser descrito através de duas denominações: macrobem e microbem ambiental. Os microbens são os elementos que, isoladamente, abrangem e compõem o meio ambiente.

Por outro lado, a expressão macrobem é a abrangida juridicamente pela Carta Magna em seu artigo 225, sendo o ecossistema visto como um todo, ou seja, é o meio ambiente de forma globalizada, em sua integridade. Além de ser um macrobem que é incorpóreo e imaterial, o meio ambiente configura-se como um bem difuso, de uso comum do povo (LEITE, 2010, p. 82-83).

Através deste conceito globalizante do meio ambiente, percebe-se que o ecossistema é visto como um todo, ou seja, em sua integralidade, e seu conceito define toda a natureza, sendo a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que garantem o desenvolvimento equilibrado da vida. Exatamente em razão disso é considerado como substância que viabiliza a existência humana (SILVA, 2002, p. 20).

A classificação de meio ambiente, conforme se depreende da referida lei e da própria Constituição de 1988, refere-se a três principais aspectos, a saber: meio ambiente natural, meio ambiente artificial ou urbano e o meio ambiente cultural ou patrimônio histórico-cultural, sendo tal interação fundamental para que haja o desenvolvimento de maneira equilibrada da vida em suas diversas formas (SILVA, 2002, p. 20).

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Há quem entenda a existência de um quarto aspecto, qual seja, o meio ambiente do trabalho, estribado no artigo 200, VIII da Constituição Federal. Ao arremate de tal assertiva:

O meio ambiente do trabalho merece consideração específica, sendo o local em que se desenrola boa parte da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso, em íntima dependência da qualidade daquele ambiente. É um meio ambiente que se insere no artificial, mas digno de tratamento especial, tanto que a Constituição o menciona explicitamente no art. 200, VIII, ao estabelecer que uma das atribuições do Sistema Único de Saúde consiste em colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho [...] O ambiente do trabalho é um complexo de bens imóveis e móveis de uma empresa e de uma sociedade, objeto de direitos subjetivos e privados e de direitos invioláveis da saúde e da integridade física dos trabalhadores que o frequentam. Esse complexo pode ser agredido e lesado tanto por fontes poluidoras internas como externas, provenientes de outras empresas ou de outros estabelecimentos civis de terceiros (SILVA, 2010, p. 22).

Mancuso o define como “o habitat laboral (...) tudo que envolve e condiciona, direta e indiretamente, o local onde o homem obtém os meios para prover o quanto necessário para a sua sobrevivência e desenvolvimento, em equilíbrio com o ecossistema” (MANCUSO, 1997, p. 59).

O meio ambiente natural, ou físico, constitui-se pela atmosfera, por elementos da biosfera, pelas águas, pelo solo, pelo subsolo, pela fauna e flora, e, por ser considerado natural, deve existir um equilíbrio entre os seres vivos e o ambiente em que vivem, não uma dominação do homem em face da natureza.

O artificial constitui-se pelo espaço urbano construído ou modificado pelo ser humano, sendo consubstanciado no conjunto de edificações denominado de espaço urbano fechado, como também dos equipamentos públicos (espaço urbano aberto), que abrange ruas, praças, áreas verdes, dentre outros (SILVA, 2002, p. 21).

Por sua vez, o meio ambiente cultural, também denominado de patrimônio cultural, é conceituado pelo artigo 216 da Carta Magna, senão vejamos:

Art. 216. Os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Nesse sentido, consideram-se patrimônio cultural brasileiro os bens elencados no artigo 216 da Constituição Federal de 1988, mas este não constitui rol taxativo de elementos, o que admite a existência de outros.

A respeito deste conceito, Helita Barreira Custódio enfatiza:

(...) considera-se patrimônio cultural o conjunto de bens móveis ou imóveis, materiais ou imateriais, decorrentes tanto da ação da natureza e da ação humana como da harmônica ação conjugada da natureza e da pessoa humana; de reconhecidos valores vinculados aos diversos e progressivos estágios dos processos civilizatórios e culturais de grupos e povos. Integrado de elementos básicos da civilização e da cultura dos povos, o patrimônio cultural, em seus reconhecidos valores individuais ou em conjunto, constitui complexo de bens juridicamente protegidos em todos os níveis de governo, tanto nacional como internacional (CUSTÓDIO, 1997, p. 17-39).

Corroborando este pensamento, Mirra (1994, p. 180) assevera que a defesa do meio ambiente cultural implica não só a preservação do meio físico (monumentos de valor artístico, histórico, turístico ou paisagístico), como também a memória social humana. No mesmo liame de pensamento, Souza Filho (2006, p. 47) acrescenta que o que une os bens em um conjunto para formá-los como patrimônio é o reconhecimento dos mesmos, visando revelar determinada cultura, notando-se a afirmação do caráter histórico do bem tutelado.

Outrossim, José Rubens Morato Leite, em análise ao meio ambiente cultural, pondera que este diz respeito às manifestações que derivam das culturas dos povos, das condicionantes culturais de cada comunidade. Sendo assim, a tese do direito relacionado ao multiculturalismo ganha força com o reconhecimento do ambiente cultural (LEITE; FERREIRA, 2004, p. 97).

De acordo com Souza Filho (2006, p. 15-16), a cultura é o elemento identificador das sociedades humanas construindo as histórias de um povo, englobando ainda o modo de agir e suas crenças, sendo imprescindível que haja uma relação entre cultura e ambiente, tendo em vista que a cultura não existe isoladamente. Assim, a própria ocupação territorial brasileira afirma essa indissociabilidade entre cultura e ambiente, a partir do momento em que outros povos implantaram suas diferentes culturas nos povos aqui dominados, modificando o patrimônio ambiental brasileiro, composto por uma gama de diversidades.

Cumpre ressaltar que, apesar de também ser artificial por ser criação humana, o meio ambiente cultural é diferente do natural, tendo em vista que adquiriu um valor especial, qual seja, a importância para a cultura de determinada sociedade. Neste panorama, determinado bem cultural à ser tutelado decorre da transformação humana, o que afirma seu caráter artificial, mas também deve ser protegido pelo homem, uma vez que sem essa proteção degrada-se com o tempo, perdendo sua importância histórica.

Nesse passo, o objeto de proteção que decorre da tutela do meio ambiente cultural é o patrimônio cultural dos indivíduos, que abarca a história dos mesmos, traduzindo, deste modo, os elementos que identificam sua cidadania. A partir daí, nota-se que o meio ambiente como um todo é princípio fundamental norteador da República Federativa do Brasil, considerado direito fundamental.

2.2 A fundamentalidade da norma constitucional do meio ambiente

O marco inicial referente à preocupação internacional com o meio ambiente foi a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano, que ocorreu em 1972, pois abordava o meio ambiente como um todo, sendo este objeto de preocupação por parte de toda a humanidade, uma vez que tal questão foi considerada fundamental, justamente por afetar todos os seres humanos e o desenvolvimento econômico mundial (GAVIÃO FILHO, 2005, p. 21).

Com efeito, a comunidade internacional passou a valorizar e destacar a inseparabilidade entre meio ambiente e desenvolvimento, permitindo que o direito internacional ambiental absorvesse os princípios do direito do desenvolvimento sustentável.

De acordo com Granzieira (2009, p. 32), diversos princípios foram assentados em prol da tutela do meio ambiente, resumindo as preocupações com o desenvolvimento e o meio ambiente, considerados, portanto, fontes do direito ambiental brasileiro3.

Imperioso destacar a proclamação do “direito humano ao meio ambiente”, ventilado no princípio I da Declaração de Estocolmo, cujos elementos foram suficientes para o reconhecimento do direito fundamental ao ambiente para as gerações presentes e futuras e inspiração para o artigo 225 da Constituição Federal.

Assim, a partir da Declaração do Meio Ambiente4, adotada pela Conferência das Nações Unidas em Estocolmo, no ano de 1972, elevou-se o meio ambiente sadio à condição de direito fundamental do ser humano, por intermédio de seu princípio I (LEITE, 2010, p. 86).

Em sendo assim, as questões relativas ao ambiente passam a receber “normalização constitucional”, inspirando, posteriormente, a Carta Magna de 1988 a erigir em seu corpo artigos referentes à tutela do meio ambiente, à título de exemplos, artigos 5º, LXXIII; 129, III e o 225, sendo este último considerado “núcleo essencial da normalização do ambiente na Constituição Federal” (GAVIÃO FILHO, 2005, p. 22).

De acordo com o supracitado artigo: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Nesse sentido, percebe-se a constitucionalização do ambiente como um direito fundamental da pessoa humana de terceira geração, comandando prestações positivas do Estado e da própria sociedade. Conforme pretexta Mirra, o caput do artigo 225 da Constituição, que diz respeito ao direito que todos possuem ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é considerado:

(...) um direito fundamental da pessoa humana, como forma de preservar a vida e a dignidade das pessoas – núcleo essencial dos direitos fundamentais, pois ninguém contesta que o quadro da destruição ambiental do mundo compromete a possibilidade de uma existência digna para a humanidade e põe em risco a própria vida humana (MIRRA, 1994, p. 29).

Destarte, justifica-se o reconhecimento do direito ao ambiente como fundamental a partir do momento que a integridade ambiental é formada por um bem jurídico autônomo formado por elementos do ambiente natural relacionados à vida humana.

Ademais, o fato dessa norma vincular-se juridicamente a atuação do Legislativo, do Executivo e do Judiciário, afirma novamente esse direito como fundamental, submetendo-se o direito do meio ambiente ao controle jurisdicional (GAVIÃO FILHO, 2005, p. 35-37).

A relevância desse traço de fundamentalidade para o conceito de direito ambiental faz com que o meio ambiente seja objeto de preocupação por parte do sistema jurídico. Assim, o direito ao ambiente sadio constitui a expressão de um valor inerente à dignidade humana, ou seja, tal direito é um corolário do direito à vida, conforme análise do artigo 225 da Carta Magna (COSTA NETO, 2003, p. 34).

Nesta acepção, a proteção ambiental é vista como um direito fundamental da pessoa humana a partir do momento em que seu objetivo é tutelar a qualidade do meio ambiente em função da qualidade de vida (SILVA, 2000, p. 58).

Consoante Bello Filho (2006, p. 332), o enunciado normativo desse artigo da Constituição é tido como direito fundamental, por expressar uma norma de direito fundamental a partir do momento em que se baseia nos critérios de fundamentalidade, que devem ser formais e materiais, simultaneamente.

No que tange à fundamentalidade formal das normas, esta é observada a partir de quatro aspectos: a) que as normas sejam elevadas ao mais alto grau da norma jurídica; b) que submetam-se a processos de modificação mais agravados em relação ao direito comum; c) constituem limites materiais à revisão constitucionais e d) vinculam os poderes públicos ao seu conteúdo (CANOTILHO, 2004, p. 379).

Esse aspecto formal advém, portanto, da compatibilidade da norma expressa por um enunciado normativo com a estrutura formal de reconhecimento de um direito como fundamental. De outra banda, a fundamentalidade material diz respeito a realização de princípios constitucionais previstos na Carta Constitucional (BELLO FILHO, 2006, p. 333).

No mais, registre-se que essa norma do artigo 225 é de direito fundamental devido a existência do princípio constitucional da preservação do meio ambiente, considerado como fundamental, impositivo e conformador, bem como estrutural no Estado Democrático de direitos ambientais e que respalda o fundamento ao direito do ambiente (BELLO FILHO, 2006, p. 353).

Através dos referidos aspectos, nota-se que o artigo 225 da Constituição Federal adquire o grau de norma de direito fundamental, elevando o meio ambiente a esse status, indissociável do direito à sadia qualidade de vida.

Nesse lastro, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é condição sine qua non para a qualidade de vida, mas para haja a concretização desse direito fundamental na ordem jurídica, necessária uma orientação guiada por princípios constitucionais, os quais serão analisados a seguir.

2.3 Contribuições dos princípios do direito ambiental para a tutela do meio ambiente cultural

Insta asseverar acerca da impossibilidade de estudo e aplicação do direito ambiental sem o balizamento de seus princípios, uma vez que estes norteiam valores e interesses da sociedade, englobando, por via de consequência, a tutela do meio ambiente.

Conforme Alexy (2008, p. 494), os direitos fundamentais a prestações em sentido estrito constituem posições fundamentais jurídicas de suma importância, não podendo ser apreciados livremente por uma maioria parlamentar.

Logo, a decisão a respeito de escolha de quais direitos fundamentais a prestações em sentido estrito podem ser exigidos é uma questão de ponderação de princípios. Assim, os problemas inerentes à realização de direitos fundamentais devem ser realizados nos moldes da colisão de princípios (GAVIÃO FILHO, 2005, p. 176).

Realça-se que a Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça possui precedentes sobre o direito fundamental ao meio ambiente como posição fundamental jurídica definitiva a prestações em sentido estrito5.

Assim sendo, havendo na Carta Magna normas que identificam o ambiente como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, assim como o direito de todos ao ambiente, inclusive para defendê-lo e preservá-lo, configura-se o direito fundamental ao ambiente, podendo ser apresentado como mandamento a ser otimizado conforme as possibilidades fáticas e jurídicas através dos princípios (GAVIÃO FILHO, 2005, p. 193).

Resta induvidoso que a Constituição Federal de 1988 buscou, através da adoção de princípios, ampliar a temática da proteção ambiental, sendo perceptível a preocupação crescente por parte da sociedade e do poder público com esse assunto, instituindo uma “ordem constitucional ambiental” (COSTA NETO, 2003, p. 14-17).

Considerando que os princípios constitucionais são o fundamento material das normas de direito fundamental, necessária uma análise da valia dos mesmos para a tutela do meio ambiente. A respeito de sua conceituação, Derani afirma:

Princípios são normas que dispõem a respeito de algo ser realizado o mais amplamente possível dentro das relativas possibilidades do direito e dos fatos. Princípios são, portanto, mandados de otimização com característica de poderem ser preenchidos em diferentes graus. A medida deste preenchimento depende não somente dos fatos como também das possibilidades abertas pelo direito (DERANI, 1997, p. 44).

Essa afirmação implica em dizer que os princípios são a base para o ordenamento jurídico e que as normas abertas são densificadas através de outras normas e atos, sendo direcionados à concretização conformadora e densificadora efetuada pelo intérprete (BELLO FILHO, 2006, p. 336).

Nesse panorama, parte-se para a análise dos princípios balizadores do direito ambiental, que devem ser observados para garantir a maneira de adequar proteção do meio ambiente com a realidade social e cultural de cada local.

O primeiro princípio a ser analisado do direito ambiental relacionado ao meio ambiente cultural é o da intervenção estatal compulsória, que decorre do dever do Estado de proteger e promover os direitos fundamentais a partir de um atuar positivo e negativo.

Esse princípio está insculpido no caput do artigo 225 da Carta Magna, que evidencia a postura que deve ser adotada pelo poder público ao estabelecer o seu dever de defender e preservar o meio ambiente em prol das gerações presentes e futuras da natureza indisponível do meio ambiente. Adiante, decorre da natureza indisponível do meio ambiente, princípio que será tratado posteriormente.

A postura positiva adotada pelo Estado refere-se à possibilidade que o mesmo tem de assegurar e proporcionar a rigidez do bem tutelado, como é o caso da implementação do instituto do tombamento para garantia do direito de propriedade, mas também da importância dos interesses públicos. No caso da postura negativa, é dever do estado não agir em desconformidade à proteção do meio ambiente (COSTA NETO, 2003, p. 38-39).

Ainda sobre a intervenção estatal compulsória, mister esclarecer a atuação do direito administrativo. Assim, a Administração Pública tutela, em verdade, as relações existentes entre o Estado e seus respectivos órgãos, como também entre aquele e a própria sociedade. Tais relações - entre administrados e administradores - são marcadas por uma desigualdade jurídica, tendo em vista que a Administração atua em nome de outrem - a coletividade - possuindo, portanto, vantagens e sujeições, diferentemente do que ocorre aos particulares.

Essa desigualdade jurídica fundamenta-se por dois princípios imprescindíveis para o Direito Administrativo, quais sejam, o da indisponibilidade do interesse público e a prevalência ou supremacia dos interesses públicos sobre os privados.

O primeiro, previsto no artigo 2º, caput, da Lei nº 9784/99 tem por conceito o interesse público como indisponível, embasando-se no que traduz o artigo 225 da Constituição Federal, ao atribuir ao meio ambiente ecologicamente equilibrado a qualificação jurídica de bem de uso comum do povo. A esse propósito, o meio ambiente pertence à coletividade, não fazendo parte do patrimônio disponível do Estado.

Nas palavras de Bandeira de Mello este princípio significa que:

(...) sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que é também um dever – na estrita conformidade do que dispuser a intentio legis (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p. 69).

Em verdade, esse princípio nada mais é do que uma limitação aos poderes conferidos ao administrador, tendo em vista que a coisa administrada não lhe pertence, e por tal motivo, este não goza da faculdade máxima sobre a coisa administrada, sendo o interesse público irrenunciável pela autoridade administrativa.

Lado outro, o princípio da supremacia do interesse público ou da finalidade pública possui amparo principalmente na esfera constitucional e administrativa, servindo de fundamento para todo o direito público, vinculando a Administração em todas as suas decisões. Esse princípio encontra-se na Lei nº 9.784/99, sendo de primordial observância para a Administração Pública, correspondendo ao atendimento à fins de interesse geral.

Nesse particular, cinge-se que esse princípio é uma posição privilegiada à Administração, que através da instrumentalização dos órgãos que a representam e desempenham suas funções, vai assegurar que os benefícios conferidos pela ordem jurídica garantam proteção aos interesses coletivos (BANDEIRA DE MELLO, 2010, p. 66-67).

Na mesma linha de raciocínio, pode-se afirmar que a primazia do interesse público sobre o privado é inerente à atuação estatal, “dominando-a na medida em que a existência do Estado justifica-se pela busca do interesse geral, e por isso devem ser observados mesmo quando os serviços públicos forem delegados aos particulares” (MEIRELLES, 2006, p. 103).

Assim, considerando a existência de um conflito de interesse individual versus interesse público coletivo, este irá prevalecer, devido as prerrogativas conferidas à Administração Pública (pelo regime jurídico-administrativo), razão por que atua em nome dos interesses coletivos, que, como é cediço, são indisponíveis, sendo justamente essa supremacia o motivo da desigualdade jurídica existente entre a Administração e os administrados.

Outro princípio de suma importância para o direito ambiental, tratado com mais abrangência em momento posterior, é o da participação comunitária, que estabelece a necessidade de uma integração entre a comunidade e o Estado, garantindo uma democracia participativa, o que dá legitimidade aos atos estatais, considerando que estes não são exclusivos, residindo na ideia de cidadania ecológica, sendo o pilar para um Estado de Direito Ambiental (LEITE; AYALA, 2010, p. 88).

A respeito do princípio do desenvolvimento sustentável, surge a partir da percepção da inseparabilidade entre meio ambiente e desenvolvimento socioeconômico com a Conferência de Estocolmo, de 1972. Esse conceito é reafirmado pelo Relatório Brundtland, base para a segunda Conferência do Rio de Janeiro, RIO-92, que cristalizou o conceito de desenvolvimento sustentável, entendendo que este só pode ser buscado se o tamanho e o aumento da população estiverem em harmonia com o potencial produtivo do ecossistema (GRANZIERA, 2009, p. 40).

É possível encontrá-lo no caput do artigo 225 da Constituição Federal, que garante a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Nessa perspectiva, é importante destacar que deve haver uma harmonia entre economia e meio ambiente, conforme análise na relação entre o artigo 170, caput e inciso VI, que tratam, respectivamente, sobre a ordem econômica e a defesa do meio ambiente.

Vale ressaltar que existem outros dois princípios indispensáveis à preservação do meio ambiente, quais sejam, o da precaução e o da prevenção.

À respeito do princípio da precaução, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em seu artigo 15, estabelece que quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis ao meio ambiente, não se deve alegar a incerteza científica para postergar medidas viáveis para prevenir a degradação ambiental.

Conforme Milaré (2007, p. 767), invoca-se tal princípio quando houver informação científica insuficiente ou inconclusiva, bem como indicações sobre os possíveis efeitos potencialmente lesivos em face do meio ambiente, e consequentemente, da saúde humana. Portanto, visa à durabilidade da sadia qualidade de vida das gerações humanas, bem como à continuidade da natureza.

Sob outro aspecto, o princípio da prevenção de danos e degradações ambientais decorre da constatação que as agressões ao meio ambiente são de difícil ou impossível reparação. O atuar preventivo objetiva, portanto, impedir a ocorrência de danos ao meio ambiente impondo medidas acautelatórias antes da implantação de empreendimentos e atividades potencialmente degradadores (MILARÉ, 2007, p. 767).

No Decreto-lei nº 25/37, tal princípio é vislumbrado a partir do momento em que o parágrafo 3º do artigo 19 propicia que o IPHAN projete e execute as obras necessárias, evitando que o bem tombado pereça, ainda que o proprietário não o tenha comunicado. Assim, o princípio da prevenção visa tutelar o patrimônio histórico de determinado local, considerando que um bem cultural perece com o tempo, não podendo retornar ao status quo ante após sua deterioração, passando, portanto, por um processo de restauração que o modificará.

Outro princípio a ser ponderado é o do poluidor-pagador, que visa a responsabilização das condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Para analisá-lo, parte-se do pressuposto que as medidas preventivas são limitadas, o que acarreta no desequilíbrio ecológico. Nessa vertente, para que o sistema de preservação e conservação do meio ambiente seja completo é necessário que haja a responsabilização dos causadores do dano, devendo-se observar a atuação das três esferas de responsabilidade, a saber: civil, penal e administrativa (OLIVEIRA JUNIOR, 1996, p. 118-119).

Enfatiza-se que o mencionado princípio não tolera a poluição mediante um determinado preço, tampouco a compensação devido aos danos causados, mas visa inibir que estes sejam causados ao meio ambiente.

Cumpre ressaltar, por fim, que a responsabilização erigida por esse princípio abrange tanto o poder público quanto o particular que, através de uma ação ou omissão, contribui ou permite a ocorrência de danos causados aos monumentos históricos de um patrimônio cultural.

Posto isso, observa-se a relação entre os princípios da precaução, prevenção e do poluidor-pagador, cujos objetivos são evitar a ocorrência de um dano em face do meio ambiente (cultural).

Merece análise mais específica, portanto, o princípio da função social da propriedade, basilar para a tutela do bem tombado, uma vez que sem utilidade social a propriedade perde sua essência, devendo ainda abarcar uma função ambiental, posto que o direito de propriedade tem como pressuposto o cumprimento da função socioambiental.

2.3.1 O princípio da função socioambiental da propriedade

O último princípio a ser analisado é o princípio da função social da propriedade, presente nos artigos 5º, inciso XXIII, 170, inciso III e 186, II da Constituição Federal de 1988, e pode ser entendido, nas palavras de Costa Neto, como:

(...) atrelar o exercício da propriedade à satisfação de outros valores (por vezes estranhos aos do proprietário) imersos no contexto social em que tal direito é exercido (...). Nessa linha, é intuitivo que esta função se materialize na medida em que for capaz de proporcionar uma existência pautada por parâmetros de dignidade (COSTA NETO, 2003, p. 53).

Conforme se extrai da análise dos supracitados artigos da Constituição Federal, a propriedade deverá cumprir uma função social a partir do momento em que garantir ao bem imóvel uma função útil, seja em área urbana ou em área rural. Tal função afirma o dever do proprietário de exercer o seu direito de propriedade, atuando positivamente em prol da coletividade no momento em que a mesma for utilizada.

Desse modo, nota-se que o cumprimento da função social de um bem é um dos fundamentos do direito de propriedade, relacionando-se à satisfação dos interesses públicos, visando, desta maneira, o bem estar da coletividade.

Conforme dito anteriormente, a Carta Magna vigente, em seu artigo 5º, inciso XXIII, não estabelece a propriedade como absoluta, tendo em vista a necessidade de esta cumprir funções de cunho social e político. Este artigo em cotejo deve ser observado na íntegra e com aplicabilidade imediata, sendo que para que a propriedade corresponda aos preceitos jurídicos deve cumprir tais funções. Nesse diapasão, a característica “absoluta” atribuída ao direito de propriedade no inciso XXII torna-se relativa a partir do momento em que a Constituição estipula limitações para a existência deste direito no inciso XXIII.

O artigo 186 da Constituição Federal, por sua vez, ao elencar os deveres do proprietário rural, estipula como dever o exercício do seu direito de propriedade em conformidade com a preservação da qualidade ambiental, considerando que se ele não o fizer, tal direito será ilegítimo. Por conseguinte, o artigo 182, parágrafo 2º da Carta Magna estabelece que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (MIRRA, 1994, p. 183).

Dessarte, o Plano Diretor de uma cidade é de suma importância para que se efetive o cumprimento da função social da propriedade no que tange ao patrimônio histórico, cultural e paisagístico; do acesso à moradia; ao meio ambiente sadio, dentre outros direitos considerados fundamentais aos indivíduos, mas seu cumprimento deve ser fiscalizado pelos Órgãos Públicos (ARAÚJO, 2007, p. 22-25).

Sobre o plano diretor da cidade de São Luís, este é estabelecido pela Lei nº 4.669/2006, no artigo 2º, II, que baliza:

a função social é atendida quando o uso e a ocupação da propriedade urbana e rural correspondem às exigências de ordenação do Município, ampliando as ofertas de trabalho e moradia e o atendimento das necessidades fundamentais dos cidadãos, proporcionando qualidade de vida, justiça social e desenvolvimento econômico sem comprometimento da qualidade do meio ambiente urbano e rural.

Ademais, imprescindível observar o Estatuto da Cidade - Lei nº 10.257/01 – que, conforme Marchesan (2006, p. 140), ingressou no ordenamento legislativo pátrio justamente com o propósito de fazer cumprir a função social da propriedade no meio urbano, definindo, em seu artigo 2º, a política urbana como aquela que objetiva ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, tendo como uma das diretrizes a adoção de padrões com limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; e tutelando o meio ambiente natural e construído do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico.

Os bens imóveis do centro histórico de São Luís devem observar estes parâmetros para atender à função social, observando-se, ainda, os outros princípios relacionados ao direito ambiental.

Fiorillo (2007, p. 239) destaca que um bem é efetivamente preservado se continua evocando a cultura, a história de um determinado lugar, de modo que as gerações futuras possam conhecê-lo. No mesmo sentido, afirma Souza Filho (2006, p. 28-29), que a função social dos bens socioambientais está na dimensão de proteção dos mesmos, evocando a cultura da cidade e garantindo a biodiversidade.

Para tanto, deve-se fazer a manutenção daquilo que foi adquirido com o passado, juntamente com a vivência e a construção do presente, para constituírem valores que serão preservados futuramente.

Nesse escopo, ao ser tombado como patrimônio cultural, um bem imóvel de moradia urbana passa a preservar a memória e evocar a manifestação cultural, agregando e ampliando a função social da propriedade. A respeito disso, entende-se que, apesar de alterar o conceito do direito de propriedade, essa função não atinge a essência dos bens, mas apenas uma parcela, qual seja, a utilização destes.

Pode-se afirmar que os princípios acima citados são considerados balizadores do direito ambiental e administrativo, uma vez que têm como finalidade cotejar a preponderância existente sobre os interesses públicos perante os particulares. Norteiam, portanto, a atividade do legislador e do administrador, inclusive nas questões de proteção do meio ambiente (COSTA NETO, 2003, p. 36).

Após a percepção da importância dos princípios para a tutela do patrimônio cultural, imprescindível uma análise dos instrumentos utilizados pelo poder público em colaboração com a comunidade no que toca à proteção desse patrimônio, bem como os atores responsáveis pelo acautelamento dos bens tombados, quais sejam, comunidade e poder público.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Natália Lago. Tombamento e função socioambiental da propriedade: Um estudo jurídico a partir da Operação Patrimônio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5040, 19 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56941. Acesso em: 25 abr. 2024.

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