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Interpretação criativa ou propositiva no controle jurisdicional de constitucionalidade: reflexões sobre o alcance e os limites das decisões manipulativas

15/05/2017 às 14:16
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Análise sobre os aspectos jurídico-constitucionais acerca da interpretação criativa ou propositiva no controle jurisdicional de constitucionalidade, procurando identificar o alcance e os limites das decisões normativas ou manipulativas.

A interpretação criativa constitui fenômeno intrinsecamente relacionado a postura mais ativa do Poder Judiciário ante a insuficiente, anacrônica e embotada atuação dos Poderes Legislativo e Executivo, bem como uma atuação mais intensa e substantiva do Poder Judiciário na concretização de direitos constitucionais. 

O crescente inconformismo dos anseios do povo com as decisões políticas e a atuação insuficiente dos Poderes Executivo e Legislativo em atender as legítimas expectativas do cidadão, especialmente no tocante a concretização de direitos fundamentais, criou um cenário propício para uma atuação mais vigorosa da Corte Constitucional.

Nesse sentido, houve uma gradativa transferência das expectativas e anseios do cidadão, no plano político, para o seio do Poder Judiciário, cuja razão se sustenta no dever de promover a concretização das prerrogativas, liberdades, direitos e garantias fundamentais, assegurando meios para realização, no plano fenomenológico, dos direitos dotados de fundamentalidade e relevância constitucional.

Nesse cenário, diante da qualificada omissão legislativa inconstitucional que impeça o exercício de prerrogativas e liberdades constitucionais do cidadão ou mesmo de decisões políticas completamente desproporcionais, desarrazoadas e ilegítimas responsáveis por afetar gravemente direitos e interesses coletivos e individuais, terá o Poder Judiciário o dever jurídico-constitucional de enfrentar referidas lesões ou ameaças, por força da garantia constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional e da necessidade da prestação da tutela jurisdicional justa, célere e efetiva.   

A inércia do Poder Legislativo e a atuação desproporcional e desarrazoada do Poder Executivo, por certo, apresenta-se determinante para uma atuação mais ativa e intensa do Poder Judiciário, especialmente em função da nova ótica lançada pelo neoconstitucionalismo sobre a Constituição, cujas bases teóricas evidenciam a superação do positivismo jurídico, o reconhecimento da força normativa da Constituição, a necessidade de efetivação das prerrogativas, direitos e liberdades constitucionais, a expansão da jurisdição constitucional e o papel relevante da Corte Constitucional que, irrevogavelmente, deverá garantir a supremacia e unidade da Constituição, além da efetividade das normas constitucionais.

Nesse novo cenário histórico, político e jurídico, o Supremo Tribunal Federal, no intuito de cumprir a missão constitucional de garantir a supremacia e unidade à Constituição, bem como promover a efetiva concretização dos direitos, prerrogativas e liberdades constitucionais, começa a atribuir aos seus julgamentos, especialmente no controle concentrado de constitucionalidade, uma interpretação criativa.

Nesse contexto, a Suprema Corte tem assumido papel relevante na vida política, social, econômica e jurídica do país, na medida em que a última palavra sobre como deve ser interpretada a Constituição será conferida exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que atua como guardião da Constituição.

Surgem, nesse ínterim, as decisões interpretativas com efeitos modificativos ou corretivos em sede de controle de constitucionalidade, permitindo-se uma interpretação que venha a adequar as leis à Constituição, emergindo, daí, as decisões manipulativas ou normativas de efeitos aditivos.

Com efeito, convém destacar o entendimento de Ricardo Guastini, citado na obra de Gilmar Ferreira Mendes[1] sobre o tema, cujo escólio se passa a transcrever:

“A doutrina italiana considera manipulativa a decisão mediante a qual o órgão de jurisdição constitucional modifica ou adita normas submetidas a sua apreciação, a fim de que saia do juízo constitucional com incidência normativa ou conteúdo distinto do original, mas concordante com a Constituição”.  

Segundo Gilmar Ferreira Mendes[2], as decisões normativas ou manipulativas possuem duas espécies, sendo a primeira decisão manipulativa de efeito aditivo quando declara inconstitucional certo dispositivo legal não pelo que expressa, mas pelo que omite, alargando o texto da lei ou seu âmbito de incidência, e a decisão manipulativa de efeito substitutivo aplicada às situações em que a Corte Constitucional não apenas invalida a norma, mas também a substitui por outra, criada pelo próprio tribunal, conforme escólio abaixo:

“Ulterior esforço analítico termina por distinguir as manipulativas de efeitos aditivos das manipulativas com efeito substitutivo. A primeira espécie, mais comum, verifica-se quando a corte constitucional declara inconstitucional certo dispositivo legal, não pelo que expressa, mas pelo que omite, alargando o texto da lei ou seu âmbito de incidência.

As manipulativas com efeitos substitutivos, por sua vez, são aquelas em que o juízo constitucional declara a inconstitucionalidade da parte em que a lei estabelece determinada disciplina ao invés de outra, substituindo a disciplina advinda do poder legislativo por outra, consentânea com o parâmetro constitucional”.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado de constitucionalidade, por meio de interpretação criativa, conferiu interpretação conforme a Constituição aos artigos 124 ao 128, ambos do Código Penal, acrescentando mais uma excludente de punibilidade ao abordo na situação envolvendo a antecipação terapêutica de feto anencéfalo, fixando flagrante decisão manipulativa de efeitos aditivos, consoante ementa do julgado proferido na ADPF 54[3]:

FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA.

Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

Observou-se, também, que o Supremo Tribunal Federal, por meio de interpretação criativa, veio a reconhecer a união homoafetiva estável como família, assegurando o mesmo tratamento jurídico patrimonial e sucessório conferido as uniões estáveis heteroafetivas às uniões homoafetivas estáveis, adicionando ao dispositivo infraconstitucional previsto no artigo 1.723, do Código Civil, novos destinatários que, se fossem excluídos, violariam o princípio da isonomia.

Nesse sentido, vislumbrando evidenciar mais uma decisão manipulativa de efeitos aditivos, formada por evidente interpretação criativa do Plenário do Supremo Tribunal Federal, transcreve-se, ainda que parcialmente, a ementa do julgamento realizado na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277/DF[4], cujo texto se transcreve:

INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES.

Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.

Em sede de controle difuso de constitucionalidade, há também decisões manipulativas de efeitos aditivos, como o reconhecimento do direito a greve a todo servidor público, aplicando-se, no que couber, a Lei nº 7.783/89, que disciplina o exercício do direito de greve na iniciativa privada, conforme ementa do julgado proferido em sede de Mandado de Injunção Coletivo nº 712/PA[5], cujo texto se transcreve parcialmente:

9. A norma veiculada pelo artigo 37, VII, da Constituição do Brasil reclama regulamentação, a fim de que seja adequadamente assegurada a coesão social.

10. A regulamentação do exercício do direito de greve pelos servidores públicos há de ser peculiar, mesmo porque "serviços ou atividades essenciais" e "necessidades inadiáveis da coletividade" não se superpõem a "serviços públicos"; e vice-versa.

11. Daí porque não deve ser aplicado ao exercício do direito de greve no âmbito da Administração tão-somente o disposto na Lei n. 7.783/89. A esta Corte impõe-se traçar os parâmetros atinentes a esse exercício.

12. O que deve ser regulado, na hipótese dos autos, é a coerência entre o exercício do direito de greve pelo servidor público e as condições necessárias à coesão e interdependência social, que a prestação continuada dos serviços públicos assegura.

13. O argumento de que a Corte estaria então a legislar --- o que se afiguraria inconcebível, por ferir a independência e harmonia entre os poderes [art. 2º da Constituição do Brasil] e a separação dos poderes [art. 60, § 4º, III] --- é insubsistente.

14. O Poder Judiciário está vinculado pelo dever-poder de, no mandado de injunção, formular supletivamente a norma regulamentadora de que carece o ordenamento jurídico.

15. No mandado de injunção o Poder Judiciário não define norma de decisão, mas enuncia o texto normativo que faltava para, no caso, tornar viável o exercício do direito de greve dos servidores públicos.

16. Mandado de injunção julgado procedente, para remover o obstáculo decorrente da omissão legislativa e, supletivamente, tornar viável o exercício do direito consagrado no artigo 37, VII, da Constituição do Brasil.

O Supremo Tribunal Federal, por meio de decisão liminar, em controle concentrado de constitucionalidade, em verdadeira interpretação criativa, veio a proferir decisão manipulativa de efeitos substitutivos no julgamento da Medida Cautelar na ADI nº 2332[6], vindo a alterar o artigo 15-A, do Decreto-Lei nº 3.365/41, modificando o percentual dos juros compensatórios recaídos sobre o valor da diferença eventualmente apurada no mercado e o valor ofertado em juízo, na desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse social, em situação de imissão prévia na posse, substituindo a taxa de juros de 6% ao ano para 12%, baseando-se no princípio constitucional do prévio e justo preço indenizatório.

Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 1º da Medida Provisória nº 2.027-43, de 27 de setembro de 2000, na parte que altera o Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, introduzindo o artigo 15-A, com seus parágrafos, e alterando a redação do parágrafo primeiro do artigo 27. - Esta Corte já firmou o entendimento de que é excepcional o controle judicial dos requisitos da urgência e da relevância de Medida Provisória, só sendo esse controle admitido quando a falta de um deles se apresente objetivamente, o que, no caso, não ocorre. - Relevância da argüição de inconstitucionalidade da expressão "de até seis por cento ao ano" no "caput" do artigo 15-A em causa em face do enunciado da súmula 618 desta Corte. - Quanto à base de cálculo dos juros compensatórios contida também no "caput" desse artigo 15-A, para que não fira o princípio constitucional do prévio e justo preço, deve-se dar a ela interpretação conforme à Constituição, para se ter como constitucional o entendimento de que essa base de cálculo será a diferença eventualmente apurada entre 80% do preço ofertado em juízo e o valor do bem fixado na sentença. - Relevância da argüição de inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º do mesmo artigo 15-A, com fundamento em ofensa ao princípio constitucional da prévia e justa indenização. - A única conseqüência normativa relevante da remissão, feita pelo § 3º do aludido artigo 15-A está na fixação dos juros no percentual de 6% ao ano, o que já foi decidido a respeito dessa taxa de juros. - É relevante a alegação de que a restrição decorrente do § 4º do mencionado artigo 15-A entra em choque com o princípio constitucional da garantia do justo preço na desapropriação.

Observa-se, claramente, que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas situações acima discriminadas, modifica diretamente o ordenamento jurídico, adicionando ou substituindo normas, em verdadeira interpretação criativa, sob o fundamento de adequá-lo à Constituição.

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A atuação do Supremo Tribunal Federal em declarar a inconstitucionalidade de certo dispositivo legal de forma a alargar o campo de incidência da norma (decisão manipulativa de efeitos aditivos), quando omissa ou violadora da isonomia, ou mesmo promovendo a substituição por outra regra, essencialmente diferente, criada pelo próprio tribunal, sob a justificativa de adequá-la a Constituição (decisão manipulativa de efeitos substitutivos), evidencia, de forma clara, o emprego de atividade interpretativa criativa na formação de seus precedentes, em situação de verdadeiro protagonismo judicial, também conhecida como fenômeno próprio do “ativismo judicial”.  

Essa atuação rigorosamente ativa do Poder Judiciário, denominada por muitos como “ativismo judicial”, tem gerado duras e relevantes críticas, com efeito, Lenio Luiz Streck destaca que decisões judiciais fundamentadas em política, moral ou convicções pessoais, substituindo o direito por juízos subjetivos do julgador afetam demasiadamente a democracia, na medida em que a moral ou a política não podem corrigir o Direito, muito menos os juízes podem se apoiar em referidas bases para fundamentar suas decisões, pois o cidadão estaria sujeito a decisões com elevada carga de subjetivismo.

Com efeito, vislumbrando melhor compreensão quanto às críticas ao ativismo judicial, transcreve-se a entrevista concedida por Lenio Luiz Streck[7] sobre o tema ora abordado, conforme disposição abaixo:

“Os juízes (e a doutrina também é culpada), que agora deveriam aplicar a Constituição e fazer filtragem das leis ruins, quer dizer, aquelas inconstitucionais, passaram a achar que sabiam mais do que o constituinte. Saímos, assim, de uma estagnação para um ativismo, entendido como a substituição do Direito por juízos subjetivos do julgador”.

O cidadão tem sempre o direito fundamental de obter uma resposta adequada à Constituição, que não é a única e nem a melhor, mas simplesmente trata-se da resposta adequada à Constituição. Cada juiz tem convicções pessoais e ideologia própria, mas isso não significa que a decisão possa refletir esse subjetivismo. O juiz precisa usar uma fundamentação que demonstre que a decisão se deu por argumentos de princípio, e não de política, de moral ou convicções pessoais. A moral ou a política não corrigem o Direito. Juiz nenhum pode pensar assim.

A era dos princípios não veio para transformar o Direito em um império de decisões baseadas na consciência individual de cada julgador. Princípios têm a função de resgatar o mundo prático no Direito. Por outro lado, decisionismos e/ou ativismos não são bons para a democracia.

Luigi Ferrajoli[8], nessa linha de raciocínio, apresenta elevadas críticas ao ativismo interpretativo, na medida em que as lacunas e o anulamento das normas inválidas deverão ser confiados à legislação, pois as lacunas estruturais deverão ser supridas pela necessária interpositivo legis, não se admitindo que juízes criem direitos, contrapondo-se, assim, a abordagem normativista de forma a substituir a ótica do “direito como norma” para um “direito como fato”, minando os fundamentos juspositivistas e aproximando-se dos fundamentos jusnaturalistas com retorno ao que denomina “neopandectismo”, conforme lição:

No modelo normativo por mim teorizado, o preenchimento das lacunas e a resolução das antinomias nas quais elas se manifestam não são confiados ao ativismo interpretativo dos juízes, mas somente à legislação – e, por isso, à política –, no que diz respeito às lacunas e ao anulamento das normas inválidas; e à jurisdição constitucional, no que diz respeito às antinomias. Certamente, os juízes devem interpretar as leis à luz da Constituição, ampliando ou restringindo o seu alcance normativo de acordo com os princípios constitucionais. Mas é ilusório supor que eles possam colmatar aquelas que denominei “lacunas estruturais” e suprir a necessária interpositio legis. Eles podem, no máximo, evidenciar as lacunas: os juízes constitucionais cientificam o Parlamento, como previsto no art. 103, §2, da Constituição brasileira; e os juízes e tribunais, determinando, no caso concreto submetido a sua apreciação, uma forma qualquer de satisfação ou reparação.

“Este constitucionalismo, de nítida matriz anglo-saxã, caracteriza-se então, como disse Prieto Sanchís, por dois elementos: o ataque ao positivismo jurídico e a tese da separação entre direito e moral; e o ativismo judicial promovido pela tese de que os direitos constitucionalmente estabelecidos não são regras, mas sim princípios, objetos de ponderação e de imediata argumentação jurídica, sem a necessidade de interpositio legislatoris. Sob todos estes aspectos, pode-se registrar uma singular convergência do neconstitucionalismo com o realismo e com aquele que podemos chamar “neopandectismo” ao minar os fundamentos juspositivistas do direito sobre a base de uma tese comum: o direito, na verdade, é aquele que é produzido pelos juízes, consistindo, em última análise, nas suas práticas interpretativas e argumentativas. Esta tese, que certamente registra a fenomenologia do direito vivente, vem frequentemente assumida não apenas como descritiva, mas também como prescritiva, confundindo, assim, a eficácia com a validade. E, por isso, contrapõe-se à abordagem normativista, unindo o neoconstitucionalismo tanto ao realismo como ao neopandectismo, que igualmente enfatiza o papel dos juízes e das suas práticas, isto é, o “direito como fato” ao invés do “direito como norma”, e propõe, em alternativa à crise considerada irreversível da lei, um renovado “papel dos juristas” e da ciência jurídica, inspirado em uma nítida opção jusnaturalista. Uma concepção análoga, como se verá, é justamente aquela que subjaz às interpretações neoconstitucionalistas do paradigma constitucional, que também se caracterizam pelo papel criativo associado, na forma da ponderação, à ciência jurídica e à jurisdição constitucional”.

A pesada crítica deduzida por Luigi Ferrajoli sobre o papel criativo desempenhado pelo Poder Judiciário consiste na substituição da abordagem juspositivista pela tese comum do direito concebido como aquele construído a partir das práticas interpretativas e argumentativas de juízes (neopandectismo), migrando, indevidamente, a concepção do “direito como norma” para um “direito como fato”, promovendo a ruína da abordagem normativa do direito e o consequente retorno ao jusnaturalismo, realismo e neopandectismo.

Em retomada à crítica do papel criativo da Corte Constitucional, Lenio Luiz Streck[9] compreende que o constitucionalismo democrático se mostra incompatível com o ativismo interpretativo, manifestado por meio da criação de novas normas pelo Poder Judiciário, pois, em sua visão, o magistrado está obrigado a aplicar a lei, sempre que não a considerar, no todo ou em parte, inconstitucional, até mesmo em função da aplicação da lei representar um direito fundamental do cidadão.  

Sem embargos das críticas científicas acima abordadas, parece-me que a solução se mostra mais complexa, especialmente diante dos multifacetários aspectos jurídicos acima abordados, havendo clara tensão entre a ótica juspositivista e o jusnaturalismo, bem como choque entre a concepção do “direito como norma” e “direito como fato”.

Logicamente, o afastamento completo do sistema jurídico-positivo para um jusnaturalismo neopandectista traz, de fato, sério risco às bases de fundamentação do Estado de Direito, uma vez que a criação de um direito judicial, em toda e qualquer situação, estaria desprovido do necessário debate, discussão e votação pelo parlamento, gerando, assim, um déficit de representatividade das normas aí criadas, na medida em que os representantes do povo não participaram de sua formulação.

Ocorre também que não se pode mais aceitar a perniciosa inércia do Poder Legislativo capaz de gerar omissões legislativas inconstitucionais que impeçam o exercício de prerrogativas, direitos e liberdades constitucionais do cidadão, até porque referida situação deslegitima a força normativa de Constituição, como também impede a efetividade das normas constitucionais.

Não se admite, da mesma forma, o abuso do Poder Legislativo ao criar leis deficitárias, omissas e não isonômicas capaz de deflagrarem situações notoriamente contrárias aos princípios, valores e regramentos constitucionais, já que também corromperia a unidade e a supremacia da Constituição.

A solução para as questões acima lançadas, portanto, não se encontra nos extremos, mas sim na possível conformação e coordenação entre os diferentes sistemas e concepções teóricas, mantendo-se a higidez do Estado Constitucional de Direito com suas bases de sustentação no próprio regime jurídico-positivo, permitindo, contudo, em face da qualificada inércia ou insuficiência do legislador, geradora de situações inconstitucionais, a incursão de decisões interpretativas com efeitos modificativos aditivos ou substitutivos capazes de assegurar a unidade e supremacia Constituição, bem como garantir a efetividade das normas constitucionais, especialmente diante da situação de lesão ou ameaça aos direitos fundamentais de índole individual, coletiva e social.


Notas

[1] Apud. MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p.1272.

[2] Mendes, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2013. P. 1272-1273.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54/DF – Distrito Federal. Relator: Marco Aurélio. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 12 de abril de 2012. Disponível em<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%2854%2ENUME%2E+OU+54%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/j2pnhe7>. Acesso em: 04 dez. 2016.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 42774/DF – Distrito Federal. Relator: Carlos Ayres Britto. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 05 de maio de 2011. Disponível em < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%284277%2ENUME%2E+OU+4277%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/zoq2xfm>. Acesso em 04 dez. 2016.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Manado de Injunção Coletivo nº 712/PA – Distrito Federal. Relator: Eros Grau. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 25 de outubro de 2007. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28712%2ENUME%2E+OU+712%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/j25ycbp>. Acesso em 04 dez. 2016.

[6]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2332/DF – Distrito Federal. Relator: Moreira Alves. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 05 de setembro de 2011. Disponível em < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%282332%2ENUME%2E+OU+2332%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/zjfflmt>. Acesso em 04 dez. 2008.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Justiça Lotérica: ativismo judicial não é bom para a democracia. Entrevista.  [15 de março de 2009]. Porto Alegre: Revista Consultor Jurídico. Entrevista concedida a Aline Pinheiro. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-mar-15/entrevista-lenio-streck-procurador-justica-rio-grande-sul#author,>. Acesso em 04 de dezembro de 2016. 

[8] FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo Garantista e Neoconstitucionalismo. Tradução por André Karam Trindade. In: Simpósio Nacional de Direito Constitucional, X. 2010. Curitiba: Academia Brasileira de Direito Constitucional, 2010. p. 98-99 e 102-103. Disponível em: < http://abdconst.com.br/revista3/luigiferrajoli.pdf>. Acesso em: 04 de dez. 2016.

[9] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 561-562.

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Sobre o autor
Hércules Carvalho Lima

Professor Universitário e Assessor Jurídico do Ministério Público da União.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Hércules Carvalho. Interpretação criativa ou propositiva no controle jurisdicional de constitucionalidade: reflexões sobre o alcance e os limites das decisões manipulativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5066, 15 mai. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56984. Acesso em: 7 mai. 2024.

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